terça-feira, 24 de outubro de 2023

EM HARMONIA COM A NATUREZA

Texto recebido de António Galopim de Carvalho:

O nosso Planeta, velho de cerca de quatro mil quinhentos e quarenta milhões de anos, lar da biodiversidade, incluindo a humanidade inteira, não foi sempre como hoje o conhecemos. Esta nossa Terra, um ponto azul na imensidade do espaço cósmico, é o resultado de uma longa e complexa evolução, e o Homem é o fruto mais jovem dessa mesma evolução, numa cadeia imensa de inter-relações em que participaram as rochas, os solos, a água, o ar e os seres vivos. Assim, interessa ao cidadão em geral, como criatura consciente que é no quadro da Natureza, conhecê-la melhor, a fim de bem avaliar os problemas que se lhe põem no seu relacionamento com o ambiente natural. 

Na evolução da matéria, segundo Teilhard de Chardin (1881-1955), o grau de complexidade que esta assumiu foi crescente desde o início do tempo deste nosso Universo, isto é, nos treze mil e oitocentos milhões (13 800 000) de anos da sua existência. Das partículas subatómicas primordiais passou-se aos átomos e, só depois, às moléculas, cada vez mais complexas. A partir destas, a evolução caminhou no sentido das células mais primitivas que fizeram a sua aparição na Terra há mais de três mil e oitocentos milhões de anos (3 800 000 000 anos), pensa-se que através de uma cadeia abiótica de estádios progressivamente mais elaborados, onde o ensaio e erro e o sucesso ou insucesso das soluções encontradas, isto é, os produtos sucessivamente sintetizados, tiveram a seu favor tal imensidade de tempo, da ordem de 75% ou mais da idade do Universo. Dos seres unicelulares, rudimentares, aos primeiros organismos pluricelulares, surgidos há setecentos a oitocentos milhões de anos, foi consumido apenas cerca de 20% desse mesmo tempo. Restou, pois, pouco mais de 5% para que, numa nova cadeia de complexidade, sempre crescente e a ritmo cada vez mais acelerado, se caminhasse dos invertebrados primitivos ao Homem. Do nosso aparecimento na Natureza, há cerca de 2,3 a 2,5 milhões de anos, como Homo habilis, onde representamos o passo mais recente da escala evolutiva, aos dias de hoje, foi um passo de apenas 0,0001% do tempo universal da criação. 

Face à eternidade do tempo que falta cumprir a este nosso planeta, estimado em cinco a seis milhares de milhões de anos, a presença do Homem na Natureza é ainda extraordinariamente curta e insignificante à escala da evolução biológica e, portanto, passível de erro, como aconteceu com inúmeras espécies no decurso dessa mesma evolução. 

O Homem, feito dos mesmos átomos de que são feitas as estrelas, os minerais, as plantas, os outros animais e tudo o mais que existe, é matéria que adquiriu complexidade tal que se assumiu com capacidade de se interrogar, de se explicar e de intervir no seu próprio curso e no do ambiente onde foi “fabricado”. Ele é o estado mais avançado de combinação dessa mesma matéria, capaz de fazer aquilo a que chamamos Ciência, isto é, observar, descrever, relacionar, explicar, induzir, prever. O Homem, na sua possibilidade de adquirir conhecimento e de o transmitir, é a manifestação mais elaborada da realidade física do mundo que conhecemos, na qual foi consumida a totalidade do tempo do universo. Assim, a Ciência, através do Homem, pode ser entendida também como expoente máximo da matéria que se questiona a si própria. Pode dizer-se que a Natureza “pensa” através do cérebro humano e, com igual razão, pode aceitar-se que o Homem deu voz à Natureza. Tais capacidades colocam-nos a nós, humanos, numa posição de grande vantagem entre os nossos pares no todo natural. Mas teremos nós o direito de gerir a Natureza apenas em nosso proveito, agredindo-a como tem sido regra, sobretudo, a partir da Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, e em crescimento exponencial nos tempos que se seguiram? 

A Terra, no quadro em que se nos apresenta hoje, é o resultado de um sem número de agressões sofridas ao longo da sua velhíssima história. Contudo, e em consonância com James Lovelock (1919-2022), na sua hipótese “Gaia”, a Terra é um corpo que se autorregula e, como tal, sempre soube encontrar resposta a todas essas agressões e vai, sem dúvida, continuar a fazê-lo. Os danos que lhe podemos causar, no mau uso que dela fizermos, é mudar-lhe as condições que nos são favoráveis e que bem conhecemos, dando origem a outras, ainda desconhecidas, que nos poderão ser altamente adversas. Assim, ao atentar contra a Natureza, o Homem está, certamente, a atentar também contra si próprio, contra a humanidade. Acaso deixou de existir mundo natural aquando das grandes extinções em massa, como a que se verificou há cerca de 65 milhões de anos que, entre muitíssimos outros grupos biológicos, levou ao desaparecimento dos dinossáurios não avianos? 

Numa ânsia desenfreada de lucro e de prazer, a civilização industrial incontrolada pode desencadear uma nova extinção em massa que, certamente, a vitimará a ela também. Porém, o planeta – e os geólogos têm consciência disso – irá prosseguir, mesmo sem a inteligência do Homem, e acabará por encontrar novos caminhos, em obediência apenas às leis da física, incluindo as do acaso, podendo voltar a ensaiar um outro ser inteligente ou, até, mais inteligente do que esta versão moderna do Homo sapiens, que somos nós. Para tal só necessita de tempo, de muito tempo, e isso não lhe irá faltar, uma vez que como se disse atrás, estimamos em mais cinco a seis mil milhões de anos a sua existência como planeta, até que o Sol, na sua evolução como estrela, o envolva num imenso brasido. 

Perante quem deve o Homem prestar contas da maneira como decide articular-se com a Natureza? É, sem dúvida, aos outros Homens, ou seja, à Sociedade, que cada um de nós tem de responder pelo poder de decisão e pela liberdade de acção que as nossas imensas capacidades nos conferem. Se o Homem deu voz à Natureza, a Sociedade deu-lhe ética e assume-se no direito de estabelecer regras entre os seus pares no usufruto deste vasto condomínio. Sendo certo que a capacidade de intervenção de cada indivíduo, como elemento consciente desta mesma Sociedade, está na razão directa das suas convenientes informação e formação, importa, pois, incrementá-las. E incrementá-las é facultar-lhe o acesso aos conhecimentos que, desde sempre, a Ciência nos vem revelando.

António Galopim de Carvalho

4 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Sem querer ser chato e desmancha-prazeres, devo dizer que partilho da tese de que o homem é um estado da natureza em que esta adquire certa consciência e a faculdade de racionalidade e a capacidade de operar na natureza, num âmbito mais sofisticado (sem deixar de ser natural, embora cultural) do que aquele em que operam os elementos físicos que, culturalmente, distinguimos de nós, humanos. Diria que o ser humano acrescentou à tabela periódica alguns elementos que agem e reagem com aqueles de uma forma brutal e nunca vista antes. Nada disto é mis do que a natureza a funcionar. Nem acredito que haja nada fora da natureza. O que acredito, e parece constatar-se, é que a natureza (o homem) criou a cultura e criou deuses, e criou Deus e criou as bombas e faz as guerras, as leis, a ética, a moral, o direito, a concordância, a ordem e o caos, a vida e a morte. Realmente, podemos acusar a natureza de tudo, mas só estaremos a acusar-nos a nós próprios; como podemos desculpar a natureza de tudo, para nos desculparmos. Qual é a parte da natureza que não é a voz da natureza? Que não é a consciência em que a natureza culminou? Que não tem responsabilidade? A natureza cindiu-se em partes distintas? Deixou de ser uma e passou a ser múltiplas? Quantas natureza existem? E o que têm de comum entre elas? O que é que na natureza, senão o homem, pode colocar estas questões, dar-lhes sentido e tentar responder-lhes?
Se a humanidade se autodestruir e destruir o mundo que criou, podemos dizer que será a natureza a fazê-lo e nem ficará natureza que possa lamentar isso ou acusar alguma natureza disso, admitindo nós que o homem é o tal expoente da natureza capaz de fazer essa avaliação.
O ser humano não tem as faculdades e as liberdades e as capacidades de outros elementos da natureza, mas tem algumas que são únicas e que são incomparáveis, como a consciência, a racionalidade e a liberdade de escolha (dentro das possibilidades). Não temos o poder de um vulcão, ou de um tornado, ou de uma estrela que explode, mas temos a capacidade de usar ou não a bomba atómica. O quadro de possibilidades de escolha que fomos capazes de proporcionar-nos ao longo da história, não tem paralelo com o quadro, praticamente fixo, com que se deparam os outros animais.
Se não soubermos reconhecer até que ponto está nas nossas mãos preservar, não a nossa natureza geral que, independentemente da nossa vontade, será sempre transformada numa massa natural, como já agora é quando morremos, mas a nossa natureza particular de seres vivos conscientes, racionais, livres, podemos deitar a perder aquilo que, pela própria natureza das coisas e da racionalidade, teremos o poder, mas não o direito de fazer.
O Direito é a fronteira que o homem não pode ultrapassar, que o separa da sua própria natureza, sob pena de se negar a si mesmo.

Anónimo disse...

Parabéns pelo penúltimo parágrafo. Boa síntese do que eu também penso: o planeta faz falta ao homem, mas o homem não faz falta ao planeta. A Ciência que ele criou deu-lhe capacidade para decidir, mas são muito poucos os que acreditam nela e seguem os seus conselhos, que por vezes também são excessivos. Essa vanguarda talvez, desejo eu, consiga escapar-se construindo neste ou noutro planeta redomas onde a vida possa continuar, nas altas latitudes. O planeta global, que toda a humanidade partilha e disfruta, esse está a acabar, em muitos sítios já acabou, porque a humanidade se tornou uma espécie invasiva, uma erva ruim. De alguma forma tem de ser exterminada - e as guerras não estão aí por acaso.

João Boavida disse...

Belíssimo texto! Geológico, sem dúvida, mas também com profundas sugestões filosóficas.

Anónimo disse...

Não vejo onde estão as profundas sugestões filosóficas no texto do Professor Galopim de Carvalho. Creio que o significado do texto pode muito bem ser resumido nesta frase de Einstein "A ética é mais importante que a ciência.”
Aliás, e recorrendo a Einstein outra vez, “A simplicidade é a base da sofisticação.” é a simplicidade que, precisamente, o torna sofisticado. A filosofia para aqui chamada é pura basófia.

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