Por Eugénio Lisboa
Quando eu era novo, mesmo muito novo, e vivia na periferia da cidade de Lourenço Marques, bem encostado à fronteira com a cidade do caniço (aquilo era África pobre por todos os lados), pus-me a ler o Herculano todo, muito solene e, como diria o Sena, todo fardado de bronze e de seriedade. Não havia, ali, lugar para gracinhas.
Palavra que gostei, sobretudo, dos amores proibidos do Eurico com a Hermengarda. Mas o Bobo também mexeu muito comigo. E, depois, aquilo punha-me a milhas da Estrada do Zixaxa, rua pobretana, onde eu sonhava com outros mundos. Aquela África era descomunal e tinha ali, à mão de semear, o Índico, que eu não trocava por nenhum outro. Mas o Herculano mudava-me de lugar e de época, de uma maneira quase truculenta e eu ficava para ali a sonhar com idades médias e vestimentas sumptuárias. E o estrugir de ferros em batalhas bem mais catitas do que as actuais. Em suma, o Herculano encheu-me o saco e deixou-me a pensar: “O que poderá haver depois disto?”
Eu, deprimido, achava que não ia haver mais nada. Mas havia: o Garrett. Comecei logo pelo melhor dele, as VIAGENS NA MINHA TERRA, numa edição pior que pífia, que andava por ali, esquecida e enxovalhada, numa estante do meu pai.
Pus-me a ler aquilo, um pouco aparvalhado, porque além de o livro não ter nada que ver com o Herculano, também não era carne nem peixe. Era uma mistura de viagens com uma história de amor, numa coisa que não era escrever: aquilo era uma conversa pegada e desataviada com o leitor, que, de quando em quando, se interrompia, para nos dar notícias dos amores da Joaninha dos Olhos Verdes.
Mesmo estas notícias eram dadas em tom de tu cá, tu lá com o leitor, de forma muito diferente do que acontecia nos severos romances do Herculano. Amor, sim, mas sem estardalhaço. Mais ao nosso nível, cheio de ternurinha trágica, inquietante que baste, mas sem gótico pelo meio. Acabávamos por nos ajeitar àquilo e a considerar o Garrett um cicerone viável e mesmo amigo. Um compincha, embora cheio de talento.
Saía-se daquela leitura convencido de que a literatura também podia ser uma conversa desenfastiada, que se saboreia como um copo de água fresca, num dia quente de verão. As VIAGENS, em suma, desarrumaram-me no melhor sentido dessa palavra. E comecei, desde então, a perceber que, na literatura, era como dizem que é no céu: havia lá muitas moradas, todas diferentes umas das outras.
Fiquei, para sempre, vacinado contra dogmas e normas! A literatura não é apenas isto ou apenas aquilo. Tem muitos rostos diferentes, procura sempre caminhos novos, sem precisar de deitar fora os antigos.
Aqueles que acham que ser moderno é isto e não aquilo e estão dispostos a ser modernos fazendo isto e não aquilo, estarão preocupados com muita coisa, mas não com poesia, porque nem poetas são. Falta-lhes mundo, abertura, grandeza de alma e falta-lhes saber que a poesia gosta de explorar territórios diferentes, com utensílios diferentes e constrições de natureza vária. Os que estão muito preocupados com serem muito modernos, não são, afinal, nem modernos nem antigos, porque não são poetas.
Camões é hoje um grande poeta moderno, porque é poeta. Castilho nem antigo é, por não ser poeta, mas apenas um árido e astuto versejador.
A modernidade não se consegue com protocolos fabricados em tertúlias. A modernidade é uma espantosa energia interior que torna o escritor actual, em seja que época for. Garrett é muito mais moderno do que a grande maioria dos escritores que andam por aí à procura da modernidade onde ela não habita.
Parafraseando Wilde, eu concluiria, dizendo que há duas maneiras de se não ser poeta moderno: uma é não ser mesmo, a outra é ser Ernesto de Mello e Castro.
Eugénio Lisboa
2 comentários:
E isto mesmo, a literatura pode ser de mil e uma maneiras diferentes, mas o que de facto interessa é saber se é, ou não, de qualidade. Mais uma vez, com simplicidade, Eugénio Lisboa diz uma grande verdade. É uma sorte muito grande tê-lo aqui no DNR.
Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, foi um dos livros de autores portugueses que mais me surpreenderam, numa releitura já algo tardia, depois de ter passado por essa obra, no Liceu, como um fantasma que apenas vira as páginas. Fiz o mesmo com Os Maias, de Eça de Queirós e com outras obras. Enquanto eu não tiver uma motivação particular para ler, e não incluo aqui a obrigação de ler, normalmente, também não o faço só por distração. Mas tenho noção de que existem muitas formas de leitura e que nem todas são as mais adequadas.
Não é apenas o saber ler, que é importante para descodificar a obra, é também o acto de leitura como um exercício, ou um investimento cultural, de aquisição, enriquecimento cultural, ou de mera jardinagem cultural, divertimento, ou passatempo.
Há autores que não escrevem para certos leitores. Nota-se claramente que não estão à espera (não devem esperar) que certo tipo de leitores (passe a expressão) leiam o que escrevem. Alguns livros não podem ser lidos senão por uma minoria de pessoas com muita erudição e experiência da vida. Independentemente do proveito ou do prazer, do enriquecimento ou satisfação que deem ao leitor, exigem repertórios e uma atenção que será raro encontrar. Ler, no sentido de ser capaz de ler qualquer livro, é para muito poucos.
A tentativa de escrever para o maior número possível de leitores, envolve a consideração de que a maior parte não se mete a ler para ficar mal disposto, cansado, frustrado, aborrecido.
Não vou desenvolver as veredas que nos levariam, por aí fora, acerca deste assunto já tão explorado e sempre surpreendente.
Vou apenas referir que há autores cuja leitura nos cansa quase tanto como os terá cansado a eles escrever, como se, constantemente, durante horas, tivéssemos que assistir ao suplício dos ciclistas que pedalam durante cinco minutos, para chegar ao alto de Nossa Senhora da Graça.
Outros aligeiram de tal modo as coisas que nos dão de bandeja, em duas frases, a notícia da vitória. Outros ainda, mais complacentes com a deles e a nossa preguiça, nem precisam de dar a notícia da vitória, uma vez que a vitória, nesses casos, está implícita, ou é suposto que exista.
O que é complexo não é o que escrevem é aquilo sobre o qual não dizem nada.
Quem escreve só é colocado perante o problema de escolher entre o que escrever e o que não escrever, se tiver sobre o que escrever. Depois há os poderes, ou competências, ou talentos, de como escrever e de saber se querem, ou podem, ser lidos, quando e por quem. Independentemente de terem à disposição canais de comunicação, divulgação, com potenciais leitores.
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