quinta-feira, 21 de julho de 2022

MOISÉS LEMOS MARTINS E A PORTUGALIDADE

 
Meu artigo nos "As Artes entre as Letras":


A Universidade do Minho Editora publicou recentemente, on-line (com acesso livre) e num volume em papel para quem como eu gosta de livros nas estantes, a obra Pensar Portugal. A Modernidade de um País Antigo, da autoria de Moisés Lemos Martins, professor de Ciências da Comunicação daquela Universidade, doutorado em Sociologia pela Universidade de Estrasburgo, em 1984, e autor de vários livros de sociologia da comunicação e da cultura, dos quais me permito destacar O Olho de Deus no Discurso Salazarista (1990), que contém parte da sua tese de doutoramento; Para uma Inversa Navegação. O Discurso da Identidade (1995); A Linguagem, a Verdade e o Poder (2002); e Crise no Castelo da Cultura. Das estrelas aos ecrãs (2011).

Como o próprio título indica, o tema do livro é o que se costuma chamar «portugalidade», a «qualidade de ser português». O que é, afinal, ser português? O que distingue, para além do território e da história, Portugal dos outros países? E – a pergunta é inevitável – por que razão Portugal, apesar do seu papel pioneiro na expansão marítima que teve lugar nos séculos XV e XVI, não se desenvolveu nos últimos séculos tanto como outros países europeus? Este tema tem atraído muitos e bons autores – primeiro que todos Eduardo Lourenço, um pensador vindo da literatura e da filosofia, mas também, vindos da literatura, Hernâni Cidade e António José Saraiva; da filosofia, Onésimo Teotónio de Almeida e Miguel Real; da história, Josué Pinharanda Gomes e José Eduardo Franco; e da religião, Manuel Antunes SJ e Frei Bento Domingos OP. Moisés Lemos Martins, que vem da sociologia, uma disciplina praticamente proibida nos tempos de Salazar e Caetano, afirma como título de um texto logo no primeiro capítulo que  “A portugalidade é uma fraca cantiga». Para ele as ciências sociais têm recusado tanto a portugalidade como a lusofonia, «porque ambas as figuras se cruzam com um passado de muito má memória». No entanto, o autor tem, com grande empenho, erguido projectos que se reclamam de  lusofonia: por exemplo, a Revista Lusófona de Estudos Culturais, sediada em Braga, e o Museu Virtual da Lusofonia, uma plataforma informática que visa aprofundar as relações culturais no vasto espaço de língua portuguesa. Segundo Martins, o «Museu Virtual da Lusofonia propõe um sonho de lusofonia, que é outra coisa que os seus múltiplos equívocos». É, continuando a usar as suas palavras,  «a «circum-navegação tecnológica, uma travessia a ser realizada pelos povos  de todos os países lusófonos, também pelas suas diásporas (…), no sentido do interconhecimento, e também da cooperação, cultural, científica e científica.»

O autor, expondo argumentos, contraria a tese de Miguel Tamen, professor de Literatura da Universidade de Lisboa, segundo a qual «a lusofonia é uma espécie de colonialismo de esquerda». Pode-se, de facto, pugnar pela lusofonia sem se ser neocolonial. Tenho para mim que tudo o que se puder fazer em defesa da língua portuguesa deve ser feito, por Portugal e pelos outros países de língua portuguesa, desejavelmente em cooperação, mas que qualquer projecto político construído à volta da lusofonia está condenado ao fracasso. O lugar de Portugal é a Europa, onde nunca deixou de estar, mesmo quando andou a «dar mundos ao mundo». E a visão dos outros países fora da Europa é, naturalmente, tudo menos europeia.

O livro Pensar Portugal, depois de uma introdução, está dividido em seis capítulos temáticos, começados todos eles por ensaios académicos e continuados por um conjunto de crónicas ligada ao tema do capítulo. Os títulos dos capítulos são «Portugal e a Europa», «Portugal e o espaço lusófono, «À sombra da Igreja», «A liberdade», «A cidadania e a democracia», «Ciência, Universidade e Politica Científica»  

No último capítulo, Martins faz uma forte defesa da liberdade académica, pugnando pela sua «dama» que são as ciências sociais e humanas. Vê-as ameaçadas num mundo global e mercantilista, em que a própria universidade se vê contaminada por desígnios económicos estranhos à sua natureza. Muito atento à política científica nacional (ou, melhor, à falta dela, que conduz a um «salve-se quem puder») o autor foi uma das vozes mais críticas, quando, em 2011, o governo de Pedro Passos Coelho decidiu cortar na investigação de uma forma cega, deixando alguns centros feridos de morte.

Um oponente de Martins mencionado no livro é o médico imunologista António Coutinho, que dirigiu o Instituto Gulbenkian de Ciência e, nos tempos de Passos Coelho, o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, que respaldou as políticas de corte. Foi ele que defendeu o que chamou «poda» da ciência nacional. Só que essa poda foi encomendada a quem não sabia nada dela. A razia dos centros de investigação foi um processo que não passou de um simulacro de avaliação. Coutinho achava inúteis as ciências sociais e humanas. Conforme afirmou em 2012 numa entrevista à Folha de São Paulo, para ele a «filosofia não é ciência e está fadada a desaparecer». Que a filosofia não é ciência, pouca gente duvidará, mas que esteja condenada a desaparecer só pode ser o produto de uma mente limitada, que pretende reduzir tudo à ciência. A ciência pode e deve ser pensada e essa reflexão, embora possa ser feita de dentro, deve também ser feita de fora. Percebo bem a fúria de Martins quando leu na referida entrevista: «O que é objectivo de filosofia vai ser resolvido pela ciência e a filosofia vai passar à história. (…) Eu acho que os cientistas são os únicos que resolvem problemas».

Estou do lado de Martins contra o reducionismo arrogante de alguns cientistas. Mas creio que o conflito não é entre ciências de um lado e humanidades do outro porque as ciências fazem parte da cultura, são formas de humanidade. O problema é a escolha que alguns fazem entre ciência útil, a que tem aplicações imediatas, e ciência inútil, aquela a que não vêem aplicações. O problema de Portugal tem de se resolver com mais e melhor ciência, nas várias disciplinas em que ela se espraia, mesmo as que parecem inúteis. O livro Pensar Portugal é um excelente contributo para esse futuro.



1 comentário:

Helena Areosa disse...

Recensão de excelência.

FÁBULA BEM DISPOSTA

Se uma vez um rei bateu na mãe, pra ficar com um terreno chamado, depois, Portugal, que mal tem que um russo teimoso tenha queimado o te...