De João Boavida
Imaginemos que um artista plástico apresenta numa exposição um quadro em que a obra não é mais que o fundo branco e vazio que a moldura envolve, e lhe chama, por exemplo, Neblina. O fundo e a forma dessa “obra”, embora sendo a mesma coisa, não são a mesma coisa. E não são a mesma coisa porque, se a referida moldura vazia tivesse ficado esquecida num canto do ateliê e não levada para a exposição, não haveria fundo nem forma e, portanto, não havia “obra”. A única a merecer atenção seria a do artesão que produzira a moldura, no caso de ser original e ter valor artístico. Mas, sendo assim, o que devia ser exposto era a moldura, que, porém, só teria cabimento numa exposição de trabalhos artísticos de marcenaria, ferro forjado, gesso, etc.
Estamos, obviamente, num ponto extremo, mas a arte moderna chegou já a extremos destes. Embora, a propósito da intencionalidade da obra literária e da exterioridade ou interioridade dela me ocorra um poema do século IV a. C. do místico e poeta indiano Bhagavad-Gita:
«A minha forma é não-manifesta,
mas ocupo os mundos.
Todos os seres têm em mim o seu ser,
mas não repouso sobre eles.
Observai a minha técnica soberana:
Criaturas em mim e não em mim (…)».
Já aqui falei do Livro Branco, que apareceu como obra anónima nas livrarias, há alguns anos, e cujo conteúdo não era mais que um caderno de apontamentos. Visto que o conteúdo não era nenhum e a forma era o branco sucessivo das páginas, é óbvio que não era obra de arte, mas uma brincadeira. É certo que posso imaginar muitas coisas para meter naquelas páginas, mas enquanto aquilo que eu imagino não ganhar forma, não temos obra; na melhor das hipóteses teremos um convite a ela.
Contudo, quando João Cesar Monteiro fez o filme Branca de Neve, em 2000, e disse «este filme não é para ver», criou desde logo uma contradição insanável. E quando, em conformidade, durante a filmagem, colocou um pano preto em cima da objetiva da máquina de filmar, estava a fazer obra, ou não estava? O certo é que, mais tarde, os espetadores viram, durante uns largos minutos, um ecrã preto, onde era suposto haver imagens e movimentos saídos da caixa mágica. Nós podemos aceitar que o preto daquele lapso de tempo seja necessário à obra e, integrado no seu conjunto, tenha sentido e, quem sabe, até a valorize, mas também podemos pensar que foi uma forma engenhosa de acrescentar filme onde já faltaria argumento, levá-lo sem mais esforços aos noventa minutos regulamentares, ou pura e simplesmente uma malandrice de um cineasta brincalhão.
Ora, este caso, salvo melhor opinião, não me parece muito diferente do pintor de há pouco que, vamos imaginar, necessitando de um trabalho para preencher um espaço na parede, ainda vago, colocou lá o tal quadro que não era mais que uma moldura à espera da pintura e que, por inspiração (ou aflição) resolveu chamar Neblina e preencher assim o espaço devoluto.
Podemos considerar que estes artistas estavam a gozar connosco (e talvez estivessem) mas o branco da moldura que ficou esquecido não é a mesma coisa do branco do quadro depois de exposto. O ato de o expor e de lhe atribuir um nome (e certamente também um preço) transforma a simples moldura vazia numa obra. E o que nada é em termos artísticos, no primeiro caso, é matéria e forma no segundo, pois o artista terá desejado representar a neblina densa duma manhã de nevoeiro (talvez à espera que dele surja um D. Sebastião já devidamente emoldurado).
Será um caso extremo em que fundo e forma coincidem.
A arte moderna, sempre à procura de inovação e, em muitos casos, com tendência para a provocação e o escândalo, começou a utilizar materiais de toda a espécie e dando-lhe usos de todo inesperados na procura de formas de facto revolucionárias. Formas que romperam com os cânones tradicionais, num processo imenso de deriva, que alargou os domínios do artístico até pontos inimagináveis há pouco mais de um século.
A literatura não ficou atrás, e todos os movimentos de que já aqui se falou dão uma pequena ideia do quanto se transformou o processo de escrita, e as novas possibilidades que os escritores hoje têm ao seu dispor. Desde o pulverizar da narrativa, ao desaparecimento das personagens; desde o fim dos enredos à destruição da sintaxe e à multiplicação dos tempos de ação, entre muitos outros experimentalismos.
O gosto do público foi, digamos assim, obrigado a acompanhar os seus movimentos de rutura, e, nesse sentido, alargou imenso os seus parâmetros de avaliação. A arte obrigou muita gente a reconhecer que a criação artística é um manancial inesgotável de avanços e de recuos, de assimilação e de absorção, como diríamos em termos piagetianos. E também de rejeição, porque, para todos os efeitos, as pessoas ainda vão tendo bom senso e bom gosto, como se dizia na Questão Coimbrã, ainda e sempre sobre a luta entre o tradicional e o moderno.
O problema é que até para a rutura e a provocação é preciso ter talento, e talento é um metal raro. Se aceitamos uma provocação talentosa e original, já não temos paciência para muitas sem qualidade, nem originalidade, nem oportunidade. A corda da provocação e da rutura tem sido por demais posta a vibrar, e não só para quem tem ouvido e mãos para tal música como, sobretudo, por quem não tem e quer a todo o custo ter.
Tal como nas artes plásticas, em que muito do moderno resistiu ao tempo e foi já integrado nos processos criativos e nos quadros estéticos correntes, também em literatura o gosto dos leitores tem evoluído e já usufrui muito do que a modernidade nos trouxe, e que já nem identifica como contributos da modernidade. Mas há sempre quem exagere, há sempre quem tente aproveitar as ondas e quem aplauda para não perder as modas. O tempo se encarregará de decantar os resíduos e de pôr as coisas no seu lugar.
Entretanto, ainda bem que há quem tem coragem e lucidez para dizer que o rei vai nu, sempre que isso lhe parece evidente. Se tem ou não razão, o tempo o dirá, mas, para já, temos que reconhecer que é corajoso quem rema contra a corrente, sendo a coragem ainda uma preciosa virtude nos seres humanos.
João Boavida
9 comentários:
Só tenho que louvar e agradecer o texto de João Boavida, de grande discernimento e análise, sobre temas que interessam a quem se interroga sobre a realidade, natural, cultural, e nem sempre encontra respostas satisfatórias.
Neste particular, a realidade da(s) arte(s) suscita questões deveras curiosas e não há nada como questões curiosas para provocar a nossa competência, seja ela qual for. Se um cozinheiro não sabe responder à questão, mas um electricista sabe, ou se um cientista não sabe responder à questão, mas o crítico de arte, ou o leiloeiro, sabe, estamos num terreno em que ninguém gosta de ficar de fora e em que quem der parte de fraco não sai a ganhar, o que quer que isto possa significar, para além da gíria.
Não é sequer uma questão de “gostos não se discutem”, porque penso que tudo é discutível, se as pessoas quiserem.
O que constato e o que enxergo, bem ou mal, mais ou menos, é que há profissionais do gosto, como há profissionais de santidade, como há profissionais de sabedoria, de justiça, de saúde, de poesia, de romance, de pintura e, dentro de cada departamento, muitas especialidades.
Basicamente, estes profissionais estão aptos a responder a qualquer questão que se coloque, não apenas sobre a sua área de actuação, mas também a realizar/fazer algo em conformidade. A arte do discurso não é das menos “sublimes”, mas há as artes dos artefactos, ainda que o discurso não deixe de ser também, à sua maneira, um artefacto. Neste sentido, a cultura, mesmo aquela parte que não se exterioriza, que não se objectifica em nenhum suporte material, nem chega a transmitir-se porque não sai do reduto íntimo do indivíduo que a pensa, ou a sente, é artefacto, ainda que apenas representação abstracta dos neurónios.
O exemplo do quadro em branco não deixa de ser curioso, levando a reflexões inesperadas e interessantes, por exemplo, sobre a originalidade e a inimitabilidade. Não quero dizer que não tenha havido e não haja milhares, senão milhões de quadros brancos, se calhar à espera de um pincel com tinta. Mas depois de ter parecido um numa exposição de pintores, realmente, tudo muda de figura e poder-se-ia escrever muito sobre isso, convocando cientistas e pensadores de todas as áreas, para que nenhum profissional se sentisse excluído.
O quadro em branco é de tal modo “inimitável” que alguém que se atreva a repetir a façanha pode ter de pagar direitos de autor.
Também há espectáculos em que não é possível responder à pergunta “que é que isto significa?”. Uma vez participei numa espécie de dança de varredores, ao ritmo de música, que ganhou a atenção dos espectadores e que achei divertida, em que, no fim, dois intelectuais me perguntaram que é que aquilo significava. Eu perguntei-lhes se tinham achado divertido e eles disseram que tinham adorado, mas eu não seria capaz de lhes veicular significado que eles próprios não encontrassem, porque para mim não havia ali significado. Poder-se-ia, não digo que não, criar imensas hipóteses de significado, cada uma mais rica do que a outra e isso ser deveras inspirador e criativo, mas o assunto ficou por ali e o mundo continuou.
O dar que falar pode ser muito relevante e não só do ponto de vista das teorias e aperfeiçoamento, aferição, afinação da linguagem e dos conceitos, que é um trabalho e uma arte que ocorre nos bastidores mas que não deixa, por isso, de ser importante.
Quanto ao talento para criar oportunidades ou aproveitá-las, concordo que sejam talentos diferentes, cada um melhor do que o outro, mas não vejo que haja muito como alguém dominar/controlar o efeito das obras e a qualidade das obras, ainda que levássemos em conta aspectos como públicos especializados e públicos em geral, mais ou menos semianalfabetos. Muitos dos aplausos têm a ver com a emoção primária e irreflectida, abstraída de outras considerações acerca do valor da mesma e sem levar em conta critérios comparativos. Podemos não aplaudir uma grande obra que já aplaudimos até à exaustão e aplaudir muito, pela primeira vez, uma obra menor.
Há, não obstante, experiências frustrantes, para não dizer traumatizantes, ou até esclarecedoras, que todo o criador pode fazer, seja artista ou filósofo, ou cientista, acerca da relação entre valor, qualidade da obra e efeito no público, aceitação, apreço, valorização, aplauso, reconhecimento. Se, por exemplo, perante uma assembleia que desconhece (realidade muito frequente) um grande poema clássico, ou um compositor consagrado, ou um texto notável de alguém do panteão, ou mesmo um dos evangelhos mais venerados, o fizer passar por improviso do momento, ou criação sua, logo verá o efeito. A minha experiência revela que o valor de uma obra tem subjacentes, pelo menos duas ordens de considerações, o plano crítico, que se vai consolidando pelo passar do tempo, e o plano menos crítico, individual, de contacto e de fruição subjectiva, talvez muito mais difícil de justificar.
De qualquer modo, numa primeira abordagem, ou contacto, a obra de arte, texto ou outra, tende a ficar mais em suspenso quanto mais rica e profunda e inovadora for, como se causasse uma estranheza, impenetrável ao senso comum, que pode ou não valer a pena explorar e interrogar.
Senhor Professor João Boavida;
Se bem entendo o seu texto, e por aquilo que aqui neste blog se tem escrito, V. refere-se a Eugénio Lisboa como um daqueles que rema conta a corrente.
Eugénio Lisboa, remando contra a corrente - porque coragem não lhe faltou - teria por sua vontade, impedido sem razão, a atribuição do Nobel ao José Saramago.
E o Senhor Professor João Boavida sabe isso.
O melhor não é escrever um poema, mas amachucar uma folha, colocá-la em cima de um pedestal e expô-la numa galeria. Para quê darmo-nos ao trabalho de escrever, pintar ou fazer música? Tudo está no silêncio e no vazio. E, decerto, a crítica será excelente.
Não se fala dos graves condicionalismos que a economia e a sociedade atual põem ao artista e à criatividade artística.
Não se fala das pressões sobre o artista para que sirva o poder, para que sirva aqueles que têm dinheiro e poder político e que podem limitar e coagir o artista e a sua criatividade.
O que se enaltece aqui é a liberdade do critico a coagir e limitar sem cuidar de assegurar a plena liberdade do artista, onde não se exclui, evidentemente, a de poder viver da sua arte.
Meu caro Anónimo
penso efetivamente que o Professor Eugénio Lisboa é um crítico corajoso porque não se importa de remar contra a maré e dizer de livros de que não gosta que não gosta mesmo. Por outro lado, é uma pessoa com uma invulgar cultura literária e com muitos anos e obras nestes domínios. É de justiça que as suas opiniões sejam consideradas e não são decerto fúteis ou apressadas.
Quanto a Saramago, não sei se E. L. gosta ou não, mas tem todo o direito de não gostar. Eu, como disse, gosto bastante, mas conheço várias pessoas - bem de esquerda, por sinal - que não gostam, ou não gostavam, porque alguns já morreram, infelizmente. Ai do artista que não suscita controvérsias e com o qual todos estão de acordo, ou acham muito bom. Quanto ao Nobel, fiquei muito feliz que ele o tenha ganhado, mas não nos iludamos, não é por ele ter tido o Nobel que a sua obra será estudada no futuro; e eu estou convencido que vai continuar a ser.
Se amachucar o papel antes de escrever o poema, não fará obra, mesmo que ponho o embrulho num pedestal, mas se o fizer depois de escrever um belo poema, terá feito obra, mas de poesia e não de escultura.
Não falei dos condicionalismos aos artistas, porque num pequeno texto não se pode dizer tudo, e não era disso que se vinha falando. Mas condicionar os artistas, por muitos meios e alguns bem repugnantes e indignos, está a história cheia, e a nossa, a do século XX, tem dado muitos e tristes exemplos.
O exemplo do quadro em branco foi só para mostrar como a arte moderna levou a sua ânsia de inovação e de rutura ao extremo em que se pode considerar que se nega a si própria. Uma arte que é só conceção e não execução, que não solicita, porque muitas vezes nem chega a solicitar, a "mão" do artista, o seu domínio dos materiais específicos, e não consegue envolver a sua ideia nessa componente em que o artista manifesta a sua arte, pode muito bem confundir-se com simples provocação, e alguém lhe chamar uma fraude. Eu não me atrevi a tanto, mas penso que é legítimo alguém dizer, nestes casos extremos, que o rei vai nu. senão
Enviar um comentário