Meu artigo no último JL:
O dia 6 de Agosto de 1945 – já lá vão quase 77 anos – foi um dia perturbador para a Humanidade.
Foi nessa data que explodiu nos céus da
cidade japonesa de Hiroxima uma nova bomba com um poder explosivo nunca antes visto:
mais de um milhão de vez superior ao poder dos maiores explosivos químicos. A
energia libertada vinha do núcleo atómico do urânio, conforme tinham previsto
os melhores físicos do mundo. Houve, mesmo entre os especialistas em
explosivos, quem ficasse estupefacto. Por exemplo, o almirante William Leahy, o
mais graduado chefe militar norte-americano durante a Segunda Guerra Mundial, disse
ao presidente Harry Truman, que tomou posse poucos meses antes de dar a ordem
para largar a bomba: «Esta é a coisa mais idiota que eu já vi. A bomba atómica
nunca explodirá e estou a falar como especialista em explosivos.»
De facto, a terrível realidade de Hiroxima – com mais de cem mil mortos –
«explodiu-lhe» na cara. O almirante escreveria mais tarde nas suas memórias: «Na
minha opinião, o uso desta arma bárbara em Hiroxima e Nagasaki não constituiu
nenhuma ajuda substancial na nossa guerra contra o Japão. Os japoneses já
estavam derrotados e prontos a render-se por causa do bloqueio naval eficaz e
do bombardeamento bem sucedido com armas convencionais. No meu entender, ao sermos
os primeiros a usar esses meios, adoptámos um padrão ético semelhante ao dos
bárbaros da Idade das Trevas. Eu não fui ensinado a fazer guerras dessa maneira
e as guerras não podem ser ganhas matando mulheres e crianças.»
De facto, a bomba de Hiroxima não foi a primeira bomba atómica a explodir à
superfície da Terra. A primeira, de plutónio em vez de urânio, explodiu, para
teste, no deserto do Novo México, a 16 de Julho de 1945. O diretor científico
do projeto Manhattan, em Los Alamos o físico J. Robert Oppenheimer deu-lhe o
nome de Trinity (Trindade), de um poema de John Donne. A uma distância
segura da explosão e com óculos de protecção, largou pequenos papeis cujo voo
lhe permitiu calcular a potência da explosão. Batia certo com as previsões! A
nata dos físicos da época reunidos em Los Alamos num projeto altamente secreto
tinha conseguindo alcançar os objetivos que tinham sido delineados: libertar
uma força da natureza que estava escondida não só nos átomos de urânio e
plutónio como em todos. Levantava-se um novo e grave problema ético. Oppenheimer
diria: «Com a bomba atómica, nós os físicos conhecemos o pecado».
A história da primeira bomba atómica é contada em pormenor numa banda
desenhada extraordinária que acaba de ser publicada entre nós, em dois belos volumes,
pela Gradiva. A obra, intitulada A Bomba, com o primeiro volume
subintitulado No princípio era o nada e o segundo A sombra, foi muito
bem pensada e produzida, o que torna a sua leitura viciante. Tudo o que lá vem relatado
é verdade, excepto a história da família
japonesa, que foi inventada mas que podia muito bem ser verdade, e algumas
liberdades poéticas como a própria bomba a falar. Ela tem todo o direito a
falar já que é, ao fim e ao cabo, a personagem principal. Tendo estado muito
atento aos pormenores científicos do livro, só posso dizer que os autores
tiveram uma atenção extrema aos personagens, cenários e factos reais. Esta é
não só uma obra de arte, mas também um livro didáctico, por onde podemos aprender
história e ciência.
São autores desta obra-prima da «nona arte» o argumentista belga Didier Alcante
(de seu nome verdadeiro Didier Swysen) que deixou uma carreira académica em
economia para se dedicar à banda desenhada (a sua estreia foi Pandora Box).
A ideia do livro é toda dele, como conta no posfácio. Na origem está o facto de
ele ter sido colega de escola primária de um japonês, filho de um académico que
tinha vindo estudar economia medieval para a Bélgica com o pai de Didier. Ficaram
amigos para a vida, diz ele «os melhores amigos do mundo». Em 1982, Didier e a
família visitaram os seus amigos no Japão, tendo o autor ficado marcado pela visita
que fizeram ao Museu do Memorial da Paz de Hiroxima. Impressionou-o
particularmente a sombra de uma pessoa que estava a 250 metros do hipogeu da detonação
e que morreu instantaneamente, só tendo ficado o seu perfil na pedra.
Ajudou-o a construir o argumento do que podemos chamar «romance gráfico» o
francês Laurent-Frédéric Bollée, que, além de criador de banda desenhada, é jornalista
especializado em desportos motorizados, e que se tinha distinguido ao criar o
álbum Terra Australia sobre a colonização da Austrália. Juntou-se aos
dois o desenhador canadiano Denis Rodier, que tinha trabalhado na série Superman.
Foi preciso uma disciplina de ferro para conseguir em poucos anos produzir todas
as pranchas da história, proporcionando um espectáculo fabuloso para a vista.
Os autores, obcecados com o rigor, visitaram juntos Hiroxima para apreenderem
melhor o espírito do lugar.
Valeu a pena o esforço. O livro, na edição da Glénat de 2020 (nos
75 anos da explosão), tem sido dos mais
vendidos em França e já ganhou mais de meia dúzia de prémios para obras de
banda desenhada. Estou em crer que será também um êxito em Portugal tal como está
a ser noutros países. Os leitores darão por bem entregue o preço do
livro, dado o prazer estético e a aprendizagem histórica que usufruirão. As férias
são a época ideal para ler este livro que, se é certo que perturba, não é menos
certo que consciencializa, num tempo em que voltamos a ouvir falar do uso de
armas nucleares. É tempo para pensar…
No texto que escreveu no fim do livro, Bollée lembra o filme franco-japonês
Hiroxima, Meu Amor, realizado por Alain Renais, com guião e diálogos de Marguerite
Duras. Lembra a fala da actriz Emanuelle Riva, no início do filme: «Recordarmos
bem é decisivo…». O livro A Bomba traz-nos fantasmas do nosso passado que não podemos
esquecer. A sombra do japonês desintegrado devia lembrar-nos que é nossa
absoluta obrigação evitar a repetição daquilo que o general Leahy designou por regresso
à «Idade das Trevas». Ainda dos diálogos do filme: «Vi tudo em Hiroxima – Não,
tu não viste nada em Hiroxima.» Vimos o suficiente para não querermos ver mais.
PS) Por lapso da redacção, a imagem da última «Longemira» não é do físico
italiano Sergio DeBenedetti, que passou por Portugal durante a Segunda Guerra,
mas sim de um economista homónimo também italiano. Uma fotografia do físico em
Portugal pode ser vista aqui:
https://intellettualinfuga.fupress.com/gallery/?id=193
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