sexta-feira, 29 de julho de 2022

PÁGINAS DE UM DIÁRIO POUCO COMPLACENTE

Por Eugénio Lisboa
29.07.22

Na sua coluna habitual, na última página, da última edição do quinzenário JL, Gonçalo M. Tavares refina na idiotice que usa as vestes sumptuárias de uma pitonisa cheia de segredos ominosos. As suas reflexões sobre a guilhotina, além de já terem vetustas barbas, alcançam, nesta nova formulação, uma densidade de tontice por decímetro quadrado de página, como havia muito não me era dado observar. E este senhor é publicado, patrocinado, promovido, premiado, prefaciado, traduzido, viajado e venerado. Não sei se condecorado, mas deve ser falta de informação minha. O nosso meio intelectual anda realmente a bater no fundo. A boa notícia é que, a partir daqui, só podemos melhorar.

Maria do Rosário Pedreira publicou um novo livro de poesia e deu, a esse pretexto, uma entrevista publicada nesta mesma edição de JL. A entrevista está cheia de observações sensatas, razoáveis, perspicazes e debitadas com uma modelar singeleza e humildade que não escondem cultura e inteligência. Mas, depois, nessa mesma edição do quinzenário, a recensão crítica feita ao livro é a mais completa confusão entre o “corpo humano” da poetisa e do título e conteúdo do livro criticado e a “organicidade” da poesia. Confundir o “corpo humano” da autora com um alegado corpo orgânico da poesia é um exemplo típico de falsa perspicácia crítica, que me faz lembrar a celebrada tirada do saudoso José Sesinando: “Garrett vestia calças à inglesa e ela ria-se muito enquanto ele lhas vestia.” 

Depois, o crítico agarra-se à velha resposta, deliberadamente extremista e provocante que Mallarmé deu um dia a Degas, dizendo-lhe que um poema não se fazia com ideias, mas sim com palavras. Mallarmé, obviamente, exagerou, como se faz sempre, nestes casos, por querer sublinhar bem a importância das palavras especialmente escolhidas pelo poeta, para as pendurar no necessário guião-ideia, que seria, por assim dizer, o fio condutor do colar-poema. Mas é também claro que o poema não é exclusivamente feito de palavras, embora estas tenham um valor muito especial.

O discípulo de Mallarmé, que se chamava Paul Valéry, que bem o conhecia, admirava e visitava todas as quintas feiras, percebeu muito bem a intenção do mestre e amaciou-lhe o extremismo, propondo antes a fórmula hoje célebre e mais ajustada à realidade: o poema seria “uma hesitação prolongada entre o som e o sentido”, isto é, entre as palavras e a ideia que elas veiculam. Hesita-se, prolongadamente, quer dizer, nunca, em definitivo, se escolhe entre umas e outra. Se a ideia, só por si, não faz o poema – nem ela nem qualquer paráfrase sua são o poema -, as palavras, só por si, também o não fazem. É, repito, no hesitarmos, prolongadamente, entre umas e outra, que reside a força do poema. 

Poetas como Gastão Cruz, seduzidos por proclamações extremistas e carecidas de verdadeiro sentido, não perceberam estas coisas como não perceberam muitas outras e ficaram cinquenta anos agarrados ao excesso deliberadamente provocante de Mallarmé, pretendendo fazer poesia só com palavras. 

Seria bom que os nossos críticos literários, com tribuna oficial e responsabilidades acrescentadas, dessem um banho lustral às suas ideias e não andassem a vender gato por lebre, lançando a confusão nas jovens cabeças que os frequentam 

Se o crítico literário que visitou o livro de Maria do Rosário Pedreira, visitar um pouco que seja a poesia de Mallarmé, terá ocasião de verificar que esta não é só feita de palavras: há sempre um guião que lhes dá a estrutura de um colar que, sem esse fio, não seria um colar mas tão só um amontoado de pérolas. 

Toda a recensão está cheia de coisas confusas e sempre me pareceu que uma cabeça confusa não é o melhor equipamento para clarificar as ideias dos outros. Os nossos literatos têm de interiorizar, de uma vez por todas, que o opaco e o obscuro da escrita não são um valor, muito pelo contrário. A um literato deve exigir-se, tal como a um cientista ou a um filósofo, a boa fé das ideias claras. 

Já basta a obscuridade que muitas vezes habita na própria poesia, não se lhe acrescente a de quem a escrutina. Citando o nunca assaz citado António Sérgio, um eclipse do sol é uma obscuridade, mas a explicação científica desse eclipse deve ser uma claridade. 

Não há uma escrita literária e uma escrita de ideias, há só uma escrita.

4 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

As aldeias de Portugal são todas históricas como tudo o que é cultura, mas lembram-me aldeias em que gostava de ter vivido, talvez porque nunca lá vivi, nem isso seria possível, no entanto, nas aldeias históricas pode-se viver, nas outras não.
Quão literária pode ser uma declaração formal de amor outorgada perante notário, com assinatura a rogo, porque o declarante não sabe assinar?
Quão idiota, digo, escrita de ideias, pode ser o formal “fulano de tal declara por sua honra, e, disso de esclarecido, disse estar ciente, depois do que segue lhe ter sido explicado, que ama o objecto dos seus desejos, a olhos vistos, se, sem pecado, visse”?
Considerandos aparte, julgo entender o Eugénio Lisboa, mas não me parece que prime pela clareza no último parágrafo. Se há só uma escrita, que é que isso quer dizer?

Anónimo disse...

A série de documentários RTP chamada os HERDEIROS DE SARAMAGO, tem o episódio 4 dedicado ao Gonçalo M. Tavares porque ganhou o prémio Saramago. No dia 2 de Agosto de 2022 irá passar na RTP 2 às 13:13 horas.
É um documentário interessantíssimo de um escritor que ainda jovem recebeu os maiores elogios do prémio Nobel José Saramago.

Ide levar no déficite ide disse...

ainda?

Eugénio Lisboa disse...

Respondo com muito gosto a Carlos Ricardo Soares. O que quis dizer foi isto: Não há uma escrita usada pelos filósofos e cientistas, que deve e costuma ser clara, e outra usada pelos ensaístas e críticos literários, que é frequentemente obscura e confusa, quando não completamente arbitrária. Tanto uma como outra devem ser claras, já que a clareza é a boa fé de quem pensa.
Obrigado pelo reparo.
Eugénio Lisboa

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