Meu artigo nos "As Artes entre as Letras":
A Universidade do Minho Editora publicou recentemente, on-line (com acesso livre) e num volume em papel para quem como eu gosta de livros nas estantes, a obra Pensar Portugal. A Modernidade de um País Antigo, da autoria de Moisés Lemos Martins, professor de Ciências da Comunicação daquela Universidade, doutorado em Sociologia pela Universidade de Estrasburgo, em 1984, e autor de vários livros de sociologia da comunicação e da cultura, dos quais me permito destacar O Olho de Deus no Discurso Salazarista (1990), que contém parte da sua tese de doutoramento; Para uma Inversa Navegação. O Discurso da Identidade (1995); A Linguagem, a Verdade e o Poder (2002); e Crise no Castelo da Cultura. Das estrelas aos ecrãs (2011).
Como o próprio título indica, o tema do livro é o que se costuma chamar «portugalidade», a «qualidade de ser português». O que é, afinal, ser português? O que distingue, para além do território e da história, Portugal dos outros países? E – a pergunta é inevitável – por que razão Portugal, apesar do seu papel pioneiro na expansão marítima que teve lugar nos séculos XV e XVI, não se desenvolveu nos últimos séculos tanto como outros países europeus? Este tema tem atraído muitos e bons autores – primeiro que todos Eduardo Lourenço, um pensador vindo da literatura e da filosofia, mas também, vindos da literatura, Hernâni Cidade e António José Saraiva; da filosofia, Onésimo Teotónio de Almeida e Miguel Real; da história, Josué Pinharanda Gomes e José Eduardo Franco; e da religião, Manuel Antunes SJ e Frei Bento Domingos OP. Moisés Lemos Martins, que vem da sociologia, uma disciplina praticamente proibida nos tempos de Salazar e Caetano, afirma como título de um texto logo no primeiro capítulo que “A portugalidade é uma fraca cantiga». Para ele as ciências sociais têm recusado tanto a portugalidade como a lusofonia, «porque ambas as figuras se cruzam com um passado de muito má memória». No entanto, o autor tem, com grande empenho, erguido projectos que se reclamam de lusofonia: por exemplo, a Revista Lusófona de Estudos Culturais, sediada em Braga, e o Museu Virtual da Lusofonia, uma plataforma informática que visa aprofundar as relações culturais no vasto espaço de língua portuguesa. Segundo Martins, o «Museu Virtual da Lusofonia propõe um sonho de lusofonia, que é outra coisa que os seus múltiplos equívocos». É, continuando a usar as suas palavras, «a «circum-navegação tecnológica, uma travessia a ser realizada pelos povos de todos os países lusófonos, também pelas suas diásporas (…), no sentido do interconhecimento, e também da cooperação, cultural, científica e científica.»
O autor, expondo argumentos, contraria a tese de Miguel Tamen, professor de Literatura da Universidade de Lisboa, segundo a qual «a lusofonia é uma espécie de colonialismo de esquerda». Pode-se, de facto, pugnar pela lusofonia sem se ser neocolonial. Tenho para mim que tudo o que se puder fazer em defesa da língua portuguesa deve ser feito, por Portugal e pelos outros países de língua portuguesa, desejavelmente em cooperação, mas que qualquer projecto político construído à volta da lusofonia está condenado ao fracasso. O lugar de Portugal é a Europa, onde nunca deixou de estar, mesmo quando andou a «dar mundos ao mundo». E a visão dos outros países fora da Europa é, naturalmente, tudo menos europeia.
O livro Pensar Portugal, depois de uma introdução, está dividido em seis capítulos temáticos, começados todos eles por ensaios académicos e continuados por um conjunto de crónicas ligada ao tema do capítulo. Os títulos dos capítulos são «Portugal e a Europa», «Portugal e o espaço lusófono, «À sombra da Igreja», «A liberdade», «A cidadania e a democracia», «Ciência, Universidade e Politica Científica»
No último capítulo, Martins faz uma forte defesa da liberdade académica, pugnando pela sua «dama» que são as ciências sociais e humanas. Vê-as ameaçadas num mundo global e mercantilista, em que a própria universidade se vê contaminada por desígnios económicos estranhos à sua natureza. Muito atento à política científica nacional (ou, melhor, à falta dela, que conduz a um «salve-se quem puder») o autor foi uma das vozes mais críticas, quando, em 2011, o governo de Pedro Passos Coelho decidiu cortar na investigação de uma forma cega, deixando alguns centros feridos de morte.
Um oponente de Martins mencionado no livro é o médico imunologista António Coutinho, que dirigiu o Instituto Gulbenkian de Ciência e, nos tempos de Passos Coelho, o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, que respaldou as políticas de corte. Foi ele que defendeu o que chamou «poda» da ciência nacional. Só que essa poda foi encomendada a quem não sabia nada dela. A razia dos centros de investigação foi um processo que não passou de um simulacro de avaliação. Coutinho achava inúteis as ciências sociais e humanas. Conforme afirmou em 2012 numa entrevista à Folha de São Paulo, para ele a «filosofia não é ciência e está fadada a desaparecer». Que a filosofia não é ciência, pouca gente duvidará, mas que esteja condenada a desaparecer só pode ser o produto de uma mente limitada, que pretende reduzir tudo à ciência. A ciência pode e deve ser pensada e essa reflexão, embora possa ser feita de dentro, deve também ser feita de fora. Percebo bem a fúria de Martins quando leu na referida entrevista: «O que é objectivo de filosofia vai ser resolvido pela ciência e a filosofia vai passar à história. (…) Eu acho que os cientistas são os únicos que resolvem problemas».
Estou do lado de Martins contra o reducionismo arrogante de alguns cientistas. Mas creio que o conflito não é entre ciências de um lado e humanidades do outro porque as ciências fazem parte da cultura, são formas de humanidade. O problema é a escolha que alguns fazem entre ciência útil, a que tem aplicações imediatas, e ciência inútil, aquela a que não vêem aplicações. O problema de Portugal tem de se resolver com mais e melhor ciência, nas várias disciplinas em que ela se espraia, mesmo as que parecem inúteis. O livro Pensar Portugal é um excelente contributo para esse futuro.
O livro Pensar Portugal, depois de uma introdução, está dividido em seis capítulos temáticos, começados todos eles por ensaios académicos e continuados por um conjunto de crónicas ligada ao tema do capítulo. Os títulos dos capítulos são «Portugal e a Europa», «Portugal e o espaço lusófono, «À sombra da Igreja», «A liberdade», «A cidadania e a democracia», «Ciência, Universidade e Politica Científica»
No último capítulo, Martins faz uma forte defesa da liberdade académica, pugnando pela sua «dama» que são as ciências sociais e humanas. Vê-as ameaçadas num mundo global e mercantilista, em que a própria universidade se vê contaminada por desígnios económicos estranhos à sua natureza. Muito atento à política científica nacional (ou, melhor, à falta dela, que conduz a um «salve-se quem puder») o autor foi uma das vozes mais críticas, quando, em 2011, o governo de Pedro Passos Coelho decidiu cortar na investigação de uma forma cega, deixando alguns centros feridos de morte.
Um oponente de Martins mencionado no livro é o médico imunologista António Coutinho, que dirigiu o Instituto Gulbenkian de Ciência e, nos tempos de Passos Coelho, o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, que respaldou as políticas de corte. Foi ele que defendeu o que chamou «poda» da ciência nacional. Só que essa poda foi encomendada a quem não sabia nada dela. A razia dos centros de investigação foi um processo que não passou de um simulacro de avaliação. Coutinho achava inúteis as ciências sociais e humanas. Conforme afirmou em 2012 numa entrevista à Folha de São Paulo, para ele a «filosofia não é ciência e está fadada a desaparecer». Que a filosofia não é ciência, pouca gente duvidará, mas que esteja condenada a desaparecer só pode ser o produto de uma mente limitada, que pretende reduzir tudo à ciência. A ciência pode e deve ser pensada e essa reflexão, embora possa ser feita de dentro, deve também ser feita de fora. Percebo bem a fúria de Martins quando leu na referida entrevista: «O que é objectivo de filosofia vai ser resolvido pela ciência e a filosofia vai passar à história. (…) Eu acho que os cientistas são os únicos que resolvem problemas».
Estou do lado de Martins contra o reducionismo arrogante de alguns cientistas. Mas creio que o conflito não é entre ciências de um lado e humanidades do outro porque as ciências fazem parte da cultura, são formas de humanidade. O problema é a escolha que alguns fazem entre ciência útil, a que tem aplicações imediatas, e ciência inútil, aquela a que não vêem aplicações. O problema de Portugal tem de se resolver com mais e melhor ciência, nas várias disciplinas em que ela se espraia, mesmo as que parecem inúteis. O livro Pensar Portugal é um excelente contributo para esse futuro.
1 comentário:
Recensão de excelência.
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