sábado, 30 de julho de 2022

A Biblioteca Cosmos e a propagação das luzes

Texto de Luís Crespo Andrade para a exposição sobre a Biblioteca Cosmos, dirigida por Bento de Jesus Caraça (na imagem, em  cartoon de João Abel Mant), na Biblioteca Nacional:

“Dar ao maior número o máximo possível de cultura geral, tornar acessível a todos (...) uma visão geral do mundo, mundo físico e mundo social, da sua construção, da sua vida e dos seus problemas”, eis o propósito da “Biblioteca Cosmos”, exposto por Bento de Jesus Caraça, seu fundador e único director, por ocasião da apresentação do volume inaugural, O Homem e o Livro, de M. Iline .

Volvidos sete anos, a “Biblioteca Cosmos” havia publicado 106 títulos, em 145 volumes, com uma tiragem total de 793 500 exemplares. Este apuro, excepcional na época, deve-se ao editor Manuel Rodrigues de Oliveira e consta nas páginas do derradeiro volume publicado na colecção [1], subsequente ao falecimento de Bento Caraça. O êxito da iniciativa foi, pois, inequívoco: os interessados corresponderam à campanha de assinaturas que antecedeu o início da publicação, a cadência de edição revelou-se elevada, as reedições foram frequentes e a parcela de originais de autores portugueses publicada constituiu-se maioritária.

Para quem acreditava que “cultura e liberdade identificam-se” [2] e enunciara a “lei de apropriação ou de integração progressiva” do património cultural comum [3], a criação e a direcção da “Biblioteca” surgiam como dever pessoal, histórico e cívico.

Só a educação popular permitiria a emancipação individual e colectiva, a autodeterminação esclarecida e a vigilância e o controlo das elites por parte das populações.

No contexto do nacionalismo providencialista do Estado Novo, a divulgação cultural ganhava, ainda, o significado de um acto de resistência destinado a salvaguardar a racionalidade moderna no seio de uma comunidade nacional que escutava o Presidente da Academia das Ciências, Júlio Dantas, declarar “a falência maciça e integral da ciência nas suas tentativas de explicação da vida, do Universo e do Homem” [4].

Na origem da “Biblioteca Cosmos” esteve uma sugestão de Bento Gonçalves a Manuel Rodrigues de Oliveira quando ambos se encontravam presos: “tudo começou em Angra, um dia, Bento Gonçalves disse-me que fazia falta uma biblioteca de difusão cultural, semelhante à “Biblioteca do Povo e das Escolas”  [5].  

Virados um par de anos, Manuel Rodrigues de Oliveira e os seus sócios nas Edições Cosmos, convidaram Bento de Jesus Caraça para dirigir a colecção, que aceitou a proposta, desde logo por permitir concretizar o desejo antigo de publicar uma “pequena enciclopédia popular racionalista”.

Com capa uniforme, de autoria de Carlos Botelho, as obras “Biblioteca” distribuíram-se por sete secções, cada uma delas com a sua própria cor. Sobressaiu a 1.ª Secção, “Ciência e Técnica”, pelo volume de títulos publicados, enquanto a 6.ª Secção, “Epopeias Humanas”, se limitou a incluir o livro que tinha inaugurado a colecção.

As indicações transmitidas por Caraça aos autores, e reflectidas nas obras, insistiram na necessidade de aliar o rigor do especialista à clareza e à acessibilidade da linguagem, indispensáveis para o grande público. A par destes traços fundamentais em qualquer texto de divulgação, Bento de Jesus insistiu, repetidamente, na necessidade de conferir enquadramento histórico às matérias tratadas. Conceitos Fundamentais da Matemática, de sua autoria, ilustra cabalmente esta preocupação de interpretar a evolução do conhecimento no âmbito de uma visão geral da história universal.

A inspiração, acima referida, que levou a “Biblioteca Cosmos” a tomar a “Biblioteca do Povo e das Escolas” como referência não pode deixar se ser relevada. Por um lado, os objectivos declarados mostraram-se afins: “formar uma enciclopédia de conhecimentos humanos (...) onde ninguém deixará, por tão diminuto preço, de alcançar gradualmente a instrução, a ciência, a explicação de tantas maravilhas da Natureza e do génio artístico, a sabedoria enfim”, nas palavras de David Corazzi e de Xavier da Cunha [6], seus responsáveis. Por outro lado, a iniciativa tinha-se mostrado um empreendimento marcante e ímpar, ao publicar 237 obras, entre 1881 e 1913.

Numa era em que se acreditava que a propagação das luzes permitiria alcançar a racionalidade na administração das coisas humanas, em maior ou menor grau, da conquista da integridade pessoal e cidadã à salvaguarda do bem comum ou, mesmo, ao deperecimento do Estado, o empenho posto na difusão cultural foi uma constante premente e multímoda.

A “Biblioteca Cosmos” ilustrou este desígnio de modo eloquente, o mesmo acontecendo, aliás, com outras iniciativas temporal e programaticamente próximas, como as colecções publicadas pela Seara Nova, os cadernos da Editorial Inquérito ou a “Colecção Saber”, das Publicações Europa-América. O propósito de proporcionar uma sólida cultura geral a partir de obras com leitura acessível e de baixo preço foi de tal modo compartilhado que muitos dos temas focados e dos autores que os abordaram acabaram por coincidir.

Todo este movimento editorial acompanhou iniciativas similares que atravessavam a Europa, quer como fonte inspiração, como a aconteceu com a “Biblioteca do Povo e das Escolas”, afim à “Biblioteca del Populo. Propaganda d’Instruzione”, publicada por Edoardo Sonzogo, em Milão, quer na selecção dos originais de muitas das traduções publicadas, oriundos dessas colecções, quer, ainda, através da generalização da brochura e do livro de bolso ou, mesmo, da redefinição das modalidades de assinatura e dos circuitos de venda.

Neste quadro geral movido pelo pressuposto da índole emancipatória das luzes e da sua propagação, a publicação de Quadro dos Progressos do Espírito Humano, do Marquês de Condorcet, na “Biblioteca Cosmos” ganha um significado peculiar, pois é comummente reconhecido como a súmula do legado que o século XIX deixou às centúrias vindouras. Nas suas páginas, este infortunado enciclopedista procedeu não só à periodização sequencial e cumulativa dos progressos culturais e das conquistas civilizacionais da Humanidade como anunciou, igualmente, a era em que os humanos teriam a razão como soberana única. Advogou, para o efeito, o ensino público universal, gratuito e laico, o que o ergueu à condição de referência maior da escola pública republicana, o instrumento por excelência da difusão metódica do saber.

Em qualquer circunstância, com ou sem escola pública generalizada, a pertinência das iniciativas de concidadãos mostrava-se igualmente decisiva e progressiva, nos colóquios e nos debates, nas universidades informais, nas instituições solidárias de instrução pública, nas bibliotecas populares, entre muitas outros empreendimentos congéneres, nos quais a “Biblioteca Cosmos” e a acção do autor de A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso Tempo conquistaram lugar de destaque.

Luís Crespo de Andrade
Julho de 2022

“Cultura e liberdade identificam-se – sem cultura não pode haver liberdade, sem liberdade não pode haver cultura”.
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NOTAS:
 [1]Cf. Cap. Hermes de Araújo Pereira, O Submarino, Lisboa, Edições Cosmos, pp. 266-271.
 [2] Bento de Jesus Caraça, Conferências e outros escritos, Lisboa, s.n., 1978, p.8.
 [3] Idem, ibidem, p. 138.
 [4] O Primeiro de Janeiro, 14 de Dez. de 1944.
 [5] Luís Crespo de Andrade, “Testemunhos da história cultural e política do século XX”, Vértice, Maio-Junho de 2001, II Série, n.º 100, p. 139.
 [6] Cf. Manuela D. Domingos, Estudos de sociologia da cultura. Livros e leitores do século XIX, Lisboa, Instituto Português do Ensino à Distância, 1985, p. 25.

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