sábado, 30 de julho de 2022

CTS EM PORTUGAL ENTRE 2003 e 2021

Meu artigo saído no número 50 da revista CTS - Revista Iberoamericana de Ciência, Tecnología e Sociedad, da Argentina:

A Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) evoluiu de uma forma extraordinária em Portugal entre 1995, quando o físico José Mariano Gago se tornou o primeiro titular do Ministério da Ciência e Tecnologia, e os dias de hoje. Analiso aqui sumariamente a mudança de panorama neste sector ocorrida nos quase vinte anos desde que, em 2003, foi publicado o primeiro número da revista CTS – Revista Iberoamericana de Ciência, Tecnología e Sociedad, que tinha dois sociólogos portugueses no Conselho Editorial (José Luís Garcia e Maria de Lurdes Rodrigues). O facto de numerosas estatísticas oficiais portuguesas estarem hoje reunidos na PORDATA – Base de Dados de Portugal Contemporâneo (www.pordata.pt ), criada em 2010 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, facilitou bastante esse trabalho de síntese, tal como facilita o trabalho de quem quiser, em qualquer altura, conhecer a evolução de Portugal nesta ou noutras áreas, sendo possível comparar a situação nacional com a de outros países que também integram a União Europeia.

O investimento em ciência e tecnologia é convencionalmente medido, para efeitos de comparações internacionais, em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB). O PIB português era, em 2002, de 180 447 euros, a que correspondia a um valor per capita de 17 253 euros. Em 2021, o PIB tinha crescido pouco: foi de 195 661 milhões de euros (a preços constantes), tendo crescido desde 1986, ano da entrada do país na União Europeia, então Comunidade Europeia, até 2008 (em 2002, foi de 180 447 euros), quando ocorreu uma crise financeira global (que conheceu maior incidência em Portugal em 2011, quando houve necessidade de auxílio económico pela troika, o conjunto formado pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional). Desde então tem-se mantido mais ou menos constante (a recente crise pandémica interrompeu a retoma do crescimento económico que se estava a verificar). Para comparações internacionais, tem de usar o PIB por habitante. O PIB per capita português foi, em 2021, de cerca de 23 900 euros, um valor que se situa muito abaixo da média da União Europeia, que foi de 32 300 euros e também abaixo, por exemplo, da vizinha Espanha, que foi de 27 200 euros.

O avanço do investimento na investigação científica e desenvolvimento tecnológico foi enorme no período considerado. Quando surgiu a revista CTS, Portugal apenas investia 0,70% do seu PIB em ciência e tecnologia, sendo esse investimento distribuído em 0,24% nas empresas, 0,27% no ensino superior (principalmente remuneração do tempo dos docentes alocado à investigação em escolas públicas de ensino superior), 0,11% noutros organismos do Estado e 0,08% em instituições privadas sem fins lucrativos. O investimento total chegou a ser de 1,58% em 2009, mas, com a crise económica que surgiu depois, sofreu forte queda, tendo a recuperação sido lenta: só no ano de 2020 esse índice voltou, ao registar 1,62%, a um valor semelhante ao de 2009. Pode-se falar de uma década perdida na ciência e tecnologia, uma vez que se interrompeu durante cerca de dez anos o notável crescimento do investimento neste sector, em proporção do PIB, que se tinha vindo a registar desde antes de 1986 e que conheceu particular impulso em 2005. No investimento registado em 2020 é de notar o papel maioritário assumido pela iniciativa privada (empresas), que foi de 0,92%, embora este número devs ser lido com alguma precaução uma vez que ele provém de dados fornecidos pelas próprias empresas em inquéritos relacionados com benefícios fiscais. Mesmo que fosse credível esta forte participação das empresas no investimento nacional em ciência e tecnologia, ele ainda está longe do valor que se verifica nos países mais desenvolvidos da Europa, que é cerca de 66%. A parcela do ensino superior passou para 0,58%, a de outros organismos do Estado caiu para 0,08% e a das instituições particulares sem fins lucrativos baixou para 0,03%. Na comparação internacional, o investimento é claramente insatisfatório: Portugal fica bem atrás da média da União Europeia, que em 2020 era de 2,32%, e muito atrás dos países que são «campeões» do investimento em ciência e tecnologia (a Suécia e a Bélgica, a par, com 3,5%). Mesmo assim, fica à frente da Espanha, que se ficou pelos 1,41% (embora valha a pena lembrar que o PIB espanhol per capita é superior ao português).

Um dos grandes resultados benéficos do investimento que aqui estamos a discutir foi o crescimento da formação pós-graduada. Portugal formou no período em análise numerosos doutores em todas as áreas da ciência e tecnologia (estão aqui incluídas as ciências sociais e humanidades). O crescimento já vinha de trás, mas acentuou-se. Em 2003 formaram-se 1028 novos doutores portugueses, 840 no país e 188 no estrangeiro (no total, mais mulheres do que homens: o forte crescimento da população feminina na ciência em Portugal tem sido uma das marcas de que o país mais se pode orgulhar). Em 2015 (último ano para o qual há números disponíveis na PORDATA), o número de novos doutores foi de 2969, tendo 2351 obtido o grau em Portugal e apenas 618 no estrangeiro. A área em que houve maior número de doutoramentos foi a das Ciências Sociais e Humanidades (1270), seguida das Ciências Exactas e Naturais (666) e das Ciências de Engenharia e Tecnologia (544). Essa já era a ordem em 2003, quando o predomínio das Ciências Sociais e Humanidades não era tão claro: Ciências Sociais e Humanidades (372), Ciências Exactas e Naturais (299) e Ciências da Engenharia e Tecnologia (228). Para permitir uma comparação internacional do índice de produção de doutores tem de se dividir o número de doutoramentos pelo número de habitantes. A PORDATA indica que, em 2020, houve 18,9 doutoramentos por 100 000 habitantes, mais do dobro do correspondente valor de 2004 (8,5). No entanto, esse valor fica apenas um pouco acima da média da União Europeia (18,7). Para comparação, a Espanha registava, em 2020, 19,7 doutoramentos por 100.000 habitantes, registando uma ligeira subida relativamente ao valor de 2004, que foi de 19,0. Apesar de Portugal produzir novos doutorados com uma abundância nunca vista, o certo é que existem dificuldades no seu emprego; a sua presença no sector privado é muito pequena e as escolas superiores têm um quadro de docentes e investigadores bastante envelhecido.

Os doutorandos são, obviamente, apenas uma pequena parcela dos investigadores. Os investigadores, contados em equivalentes a tempo integral, perfaziam em 2005 (primeiro ano para o qual há dados na PORDATA), 21 126 e, tendo vindo a aumentar sem interrupção, chegaram em 2020 aos 53 174, bem mais do dobro. Mais uma vez estes números têm de ser vistos com alguma cautela, pois eles provêm das respostas dadas em inquéritos pelos investigadores (que são, na sua grande maioria, também docentes) a inquéritos sobre o tempo que dedicam à investigação: alguns poderão exagerar no tempo indicado. Esses investigadores situam-se principalmente nas Ciências de Engenharia e Tecnologia (21.701), seguindo-se as Ciências Exactas e Naturais (13.500) e as Ciências Sociais e Humanidades (10.551). Em 2005, essa já era a ordem, embora houvesse maior equilíbrio: Ciências de Engenharia e Tecnologia (6096), Ciências Exactas e Naturais (5780) e Ciências Sociais e Humanidades (4490). Para uma comparação internacional, temos de dividir esse número pelo número de trabalhadores no activo, resultando o valor de 10,7 por mil, um pouco acima do da média da União Europeia, que é de 9,2 por mil. A comunidade científica conheceu decerto um incremento impressionante desde a entrada do país na União Europeia, quando havia somente 1,3 investigadores por mil pessoas no activo. Para comparação, a Espanha tem 6,5 investigadores por mil pessoas no activo. Se considerarmos, em vez do número de investigadores, o pessoal total envolvido em actividades de investigação e desenvolvimento, a situação portuguesa já não é tão favorável no cotejo internacional: falta, portanto, pessoal técnico e auxiliar que ajude nas tarefas laboratoriais e de campo.

Um dos índices objetivos da produtividade científica é o número de artigos científicos publicadas em revistas indexadas nas bases de dados internacionais. Em 2003 foram publicados 6146 artigos, que recolheram 172 659 citações, ao passo que em 2020 foram 28.298 artigos, que recolheram até agora 131.667 citações (ainda não houve tempo para recolher mais). O crescimento do número de artigos tem sido ininterrupto, com excepção do último ano considerado, 2020, em que se deu uma ligeira diminuição relativamente ao ano anterior. A área com mais publicações é a de Ciências Exactas e Naturais (123.148) seguindo-se as Ciências Médicas e da Saúde (9914) e as Ciências da Engenharia e Tecnologia (7992). Essa era já a ordem em 2013. Se dividirmos o número de publicações pelo número de doutoramentos realizados, o valor é de 7,9 para 2015, apenas um pouco maior do que em 2013 (7,7). A fim de permitir comparações internacionais, temos, mais uma vez, de dividir o número de publicações pelo número de habitantes. Em 2003 foram publicados 58,8 artigos por 100 000 habitantes e em 2020 passaram a ser 274,8 artigos por 100 000 habitantes. A PORDATA não indica o número de publicações científicas nos restantes países da Europa. Mas o Scimagojr – Scimago Journal & Country Rank), que se baseia na base de dados Scopus, constitui um útil instrumento de análise ao permitir comparar países não apenas da Europa mas de todo o mundo: Portugal, nessa base de dados, tem 32.086 publicações em 2020 (a discrepância deve-se à diferente base de dados usada: os dados da PORDATA usam a Web of Science), um valor que, dividido pelo numero de habitantes, indicado pelo Censos de 2021 (10.344.802 pessoas), dá 310 publicações por 100.000 habitantes. A Espanha tinha 113 503 publicações, o que dividido pela população espanhola, dá apenas 240 publicações por 100 000 habitantes. Voltando aos dados da PORDATA, Portugal e olhando agora para os países com os quais há mais co-autorias, em 2020, o maior número de colaborações foi com a Espanha (4449), seguindo-se o Reino Unido (3524), os Estados Unidos (3198) e o Brasil (2910). Em 2013, a ordem do número de colaborações era apenas ligeiramente diferente: Espanha (2469), Estados Unidos (2001), Reino Unido (1858) e França (1428). Se considerarmos a qualidade, medida por exemplo pelo número de citações por artigo, a situação é mais desfavorável a Portugal nos rankings internacional. Uma outra fragilidade portuguesa é o número de publicações por investigador.

O conhecimento avança graças sobretudo à curiosidade humana, mas é incentivado pelas suas aplicações na sociedade, uma vez que esse avanço tem assegurado melhores condições de vida humana. No que respeita a aplicação da ciência e tecnologia, a situação portuguesa não é tão boa como na criação de conhecimento, apesar de a maior parte do investimento provir de empresas, pelo menos nominalmente. Um índice que se costuma usar para medir o impacto económico da ciência é o registo de patentes. Em 2003, houve, em Portugal, 174 pedidos de patente da via nacional (142 foram concedidas), 41 da via europeia (18 concedidas) e 36 da via internacional (zero concedidas). Já em 2021 registaram-se 764 pedidos na via nacional (208 concedidas) e 242 nas vias internacional (em ambos os casos, zero concedidas). Não existem na PORDATA dados referentes à via europeia para o ano de 2021, mas no ano anterior tinham sido 249, das quais 119 concedidas. Houve, de facto, um grande aumento no período considerado, mas, se a posição portuguesa era insignificante no plano internacional, a situação praticamente não mudou. Vejamos a comparação internacional, dividindo pela população: Em 2013, ainda segundo a PORDATA,  o número de pedidos de patentes foi de 1,13 por 100 000 habitantes, o que é um valor muito reduzido comparado com os 9,47 por 100 000 habitantes da média da União Europeia e ainda menor quando comparado com os países líderes neste domínio, que são a Alemanha e a Finlândia (22,7 por 100 000). Há, decerto, ouras medidas do que hoje se chama «inovação», mas, apesar de todos os progressos, a inegável modernização de Portugal nas últimas décadas é mais o resultado de importação de bens e serviços do que de aplicação directa da ciência e tecnologia produzida dentro da fronteira. Uma das razões será o reduzido emprego científico que os jovens doutorados encontram nas empresas, o que, conjugado com as oportunidades reduzidas na função pública, obrigam um número não desprezável de jovens a emigrar.

A existência de cultura científica e tecnológica – isto é, a interiorização da ciência e tecnologia pela sociedade – é uma condição para a existência de um sólido sistema de ciência e tecnologia. Ela começa na escola e é complementada permanentemente pelo trabalho de uma série de instituições: média, museus e centros de ciência, parques naturais, etc. O ministro José Mariano Gago pretendeu em 1996, com a criação da Ciência Viva – Agência para a Promoção da Cultura Científica e Tecnológica, impulsionar esta relevante dimensão. Se é certo que a sua dinâmica foi significativa de início, com a criação e desenvolvimento de um conjunto de centros de ciência, não é menos verdade que tem havido algum estiolamento.

Um estudo da União Europeia baseado em entrevistas (o Eurobarómetro) realizado e publicado em 2021 revelou que os portugueses têm maior interesse pelas novas descobertas da ciência e pelos desenvolvimentos tecnológicos do que a média dos 27 estados-membros da União Europeia, uma tendência que se acentuou na última década): 62% dos inquiridos revelam-se muitos interessados, 36% moderadamente interessados, o que significa que quase ninguém se desinteressa (uma razão pode ser a circunstância de se viver uma situação de pandemia, durante a qual a população portuguesa tem mostrado uma grande adesão às vacinas, mais do que em países com superior desenvolvimento). A comparação com Espanha é interessante, sendo favorável a Portugal: só 41% dos inquiridos espanhóis se revelaram muitos interessados, havendo 45% moderadamente interessados e 14% não interessados. As questões associadas às alterações climáticas são as que mais preocupam os portugueses (com um aumento acentuado nos últimos tempos, o que se percebe dada a situação no Sul da Europa, a existência de florestas sujeitas a fogos e a extensão da costa, sujeita à subida da água do mar), seguindo-se as questões da saúde e dos cuidados médicos.

No entanto, esse maior interesse pela ciência e tecnologia não se traduz na existência de uma maior literacia científica do que a média da União Europeia, o que encontra justificação nos baixos níveis educativos da população em geral. Embora tenha havido progressos na formação superior da população mais jovem, em Portugal, dado o peso do passado, continua a haver uma défice de escolaridade em comparação com os padrões europeus. Voltando à PORDATA, verifica-se que 43,7% dos jovens portugueses entre os 30 e os 34 anos tinham em 2021 o ensino superior, valor que é superior ao do passado (em 1992 era só de 15,1%) e que excede o da média da União Europeia (41,6%), embora esteja abaixo do da Espanha (46,7%) e bem longe do dos países do topo neste índice, que são o Luxemburgo (62,5%) e a Irlanda (62%). No mesmo ano, a percentagem de pessoas com o ensino superior, tomando agora a população entre os 25 e os 64 anos, era em Portugal de 31,1%, abaixo de Espanha (40,7%) e abaixo da média da União Europeia (33,4%). Olhando, finalmente, para as estatísticas da população que completou pelo menos o ensino secundário, o problema do défice da educação nacional torna-se particularmente notório: o valor português é de 59,5%, o que sendo bastante bom relativamente ao passado (em 1992 era de 18,9%) é mau no panorama europeu: de facto, Portugal apresenta o valor mais baixo em toda a União Europeia (a média europeia é 79,3% e há países, como a Lituânia e a República Checa, acima dos 94%).

Em resumo: Portugal conheceu nas últimas duas décadas um forte crescimento do seu sistema científico e tecnológico, que se deu sobretudo antes da crise financeira de 2008. Esse crescimento foi acompanhado pelo aumento do interesse pela ciência e tecnologia. No entanto, os dados estatísticos indicam que o país está abaixo da média europeia nessa área, tão essencial para o futuro, pelo que é absolutamente necessário intensificar os esforços no sentido de uma rápida convergência com a Europa.


[1] Professor catedrático de Física da Universidade de Coimbra (aposentado) e divulgador de ciência.

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