quinta-feira, 28 de julho de 2022

O ESCRITOR E O LEITOR

De João Boavida

Como nasce uma obra?

Pondo as coisas em termos simples, o escritor tem uma ideia, uma inspiração (ou foi bafejado pelas Musas, se quisermos falar em termos clássicos) e tenta concretizá-la segundo uma certa modalidade literária. Há, portanto, um fundo, uma matéria, que mobiliza o artista, e uma forma mediante a qual se transforma essa ideia num determinado produto – a obra propriamente dita. A qual pode ficar inédita porque, na verdade, há muitos entraves à sua publicação. E ainda mais à sua divulgação.

Desde logo, em certas épocas e lugares, por temor das consequências, levando muitos a escrever para a gaveta, como constava que antes do 25 de Abril alguns faziam. Ou por pudor de artista, coisa que também existe, e leva outros a esconder o que escrevem, como António Gedeão, que andou durante algum tempo a mostrar os seus inéditos poemas à mulher, a escritora Natália Nunes, sem lhe dizer que eram seus para saber se devia, ou não, arriscar-se a torna-los públicos. 

Noutros casos ainda, talvez a maior parte, é por razões de comércio editorial, pois os editores não se arriscam, com receio de que depois os livros não se vendam. Muitas vezes se enganam, não só porque, em certos caos, recusam originais que, mais tarde, obtêm grande sucesso, como, noutros, em que publicam obras, onde viram negócio, e se tornam grandes fracassos editoriais. Sobre isto se poderiam contar inúmeras histórias.

Frequentemente juntam-se vários fatores, como parece ter sido o caso de Fernando Pessoa, que escreveu imenso, não para uma gaveta, mas para um arca, por certo porque numa gaveta não caberia tanto material. Arca onde repousaram infindos inéditos que, passadas várias gerações, ainda dão trabalho a alguns e espanto intelectual a muitos, melhor dizendo, a verdadeiros exércitos de admiradores. Já bastante deve ter gozado Fernando Pessoa a propósito do seu caso editorial, sentindo-se largamente vingado de, em vida, não ter publicado mais de uma pequena “Mensagem” e alguns poemas na revista Orpheu, que, tal como ele, teve vida curta. 

No caso de vir a ser editada, uma obra pode obter o benefício de uma boa distribuição, mas pode, e frequentemente acontece, não ter nenhuma distribuição, o que é quase sempre fatal. Por tudo isto, a maior parte das obras não ultrapassa a barreira do desinteresse geral, mas nem sempre é por falta de qualidade. O ainda agora referido Pessoa aí está para demonstrar o dramático e injusto que uma situação destas pode revestir. Tudo isto, como é evidente, condiciona grandemente o sucesso do artista, e tudo indica que a maior parte das tentativas morre à nascença.

Mas vamos considerar que o livro foi editado e divulgado.

A partir do momento em que chegou ao público desenvolve-se outra dinâmica pela entrada em campo de um leitor, criando-se uma díade, ou seja, uma dupla em interação. Há, a partir de agora, um emissor e um recetor, ou um estímulo e uma resposta como diriam os behavioristas. Não é, ainda, o artista lutando com os seus materiais para levar a cabo uma obra, mas é já a obra lutando, com as armas que o escritor lhe deu, para conquistar o público. Se tiver sorte, este escritor poderá até criar um público fiel; se tiver muita sorte o autor poderá até ficar rico.

Mas se a obra vai ou não permanecer e continuar a receber os favores da crítica e ter um público fiel, ninguém o pode garantir. Em todo o caso, a mesma obra irá produzir reações muito diversificadas, podemos dizer que cada leitor terá a sua e, portanto, produzir-se-ão graus de apreciação muito diferentes: de entusiasmo, de elevada ou moderada aceitação, de indiferença, de rejeição ou até de repulsa e revolta.

E com esta ressonância, que se pode multiplicar indefinidamente pelos ouvidos do leitor, a obra ganha outro patamar, passa a funcionar noutro nível. Com efeito, se a mesma obra pode provocar, e provoca, inúmeras reações, já não é só do autor mas passa a ser também, e em grande medida, do leitor. 

É impressionante, e até comovedor ver como obras de eras recuadíssimas ainda nos podem tocar, como este poema de um anónimo autor egípcio de exaltação ao rio Nilo, com cerca de 4.000 anos:
«Glória a ti, pai da vida! Deus secreto saído das trevas secretas, Inundas os campos criados pelo Sol, Matas a sede aos rebanhos, Regas a terra, Estrada celeste descida das alturas. Amigo dos trigos, por ti crescem os grãos, Deus que revela, ilumina as nossas casas».
Ou, por exemplo, a nostalgia da juventude do poeta grego, Álcman, 1.300 anos mais tarde: 
«Já os membros não podem comigo, ó donzelas de doces vozes de encantar. Quem dera que eu fosse como o cerilo, que voa com os alcíones à superfície das ondas, com o seu peito inquebrantável, essa ave sagrada, cor de púrpura marinha».
Como é óbvio, poder-se-iam apresentar inúmeros exemplos de obras que nos fazem estremecer e, mesmo sendo muito remotas, ainda hoje estabelecem connosco relações de identidade e comunhão que nos empolgam ou comovem, produzindo em nós inesperadas sonoridades. Ou seja, as obras acabam por ser tanto de quem as faz como de quem as sente, as usufrui, às vezes muitos e muitos séculos depois. E, portanto, a perenidade de uma obra depende do enlace que vai estabelecendo incessantemente com novos leitores, assim ganhando sucessivas vidas e sempre se renovando.

E ninguém pode falar de um livro, ou de um autor, que ainda entusiasmam, sem considerar os leitores que continuam a entusiasmar-se com eles, pois já estariam mortos há muito se não fossem os leitores continuamente a dar-lhe vida. E esta sucessão de ecos que as grandes obras vão proporcionando através dos tempos é, se pensarmos bem, uma das mais altas qualidades a que o género humano já chegou. 

Porém, essa interação entre escritor e leitor pode ser mais ou menos equilibrada, sendo que, em geral, produz um certo desequilíbrio; há leitores que merecem melhor que aquilo que estão a ler e, com boas razões, deixam o livro a meio; há, pelo contrário, obras de reconhecida qualidade que apanham com um leitor insensível ou menos preparado e que por isso a rejeitam e delas nada retiram; há outras em que o leitor vê, sente e relaciona muito mais aspetos que aqueles em que o autor pensou (frequentemente os estudos sobre uma obra ou um autor consistem em descobrir intenções ou perspetivas de que o autor não teve consciência); há ainda obras que precisam de leitores mais educados que outras, em suma, haverá de tudo. 

O ideal será que a qualidade da obra encontre uma qualidade equivalente de leitor, mas isso não passa de um ideal. Porque não faltam exemplos de grandes obras que nunca alcançaram o favor do público, e outras, reconhecidamente menores, que são enormes sucessos editoriais durante gerações. Mas, o que nos leva a dizer que é boa uma obra que, embora continuamente bem considerada, nunca teve grande aceitação, como a de um Raul Brandão, por exemplo? E outra, de menor qualidade, que, contudo, teve muito sucesso?

Mas que umas vezes é como fogo de palha, que arde durante breve tempo e depois se extingue, como foi a de um Caryl Chessman, nos idos de 60, e outra que consegue atravessar gerações, como a de um Emílio Salgari? É a questão dos cânones, de que já falámos; os padrões de qualidade que vão sendo estabelecidos e solidificando, embora em constante evolução e sempre suscetíveis de ser rompidos. E, por outro lado, é a educação do público, de que pouco se fala e é da maior importância. Mas haverá outros fatores que explicarão estes fenómenos. Em todo o caso há sempre razões de educação ou de falta dela.

Sem um mínimo de educação, mesmo face às melhores obras ficaremos insensíveis. Se uma criança não aprender a ler corrente e corretamente, e se não adquirir um mínimo de vocabulário e de agilidade mental, como é que poderá tirar da leitura tudo o que ela pode dar? E se, depois, não for tomando contacto com as melhores obras e os melhores autores, isto é, se não criar exigência de qualidade, como ir além de um nível mediano? 

João Boavida

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

A relação entre texto e leitor, entre livro e leitor é muito estranha e põe à prova o leitor, enquanto construtor, realizador, verdadeiro suporte da significação do texto.
Sem o leitor, o texto, na melhor das hipóteses, não passa de grafismos, se houver ainda quem olhe para ele e reconheça que se trata de grafismos.
Quanto ao que tenha passado pela cabeça do autor do texto, para que o escrevesse, é totalmente irrelevante para o leitor, que não tem acesso senão ao texto, ao “seu” texto. Se, por acaso, outras pessoas, ou o próprio autor, vierem apresentar as suas leituras, interpretações, comentários, acerca desse texto, ou falar do que se passou pela cabeça do autor para que o escrevesse, na realidade, para “aquele” leitor isso já não é “aquele” texto, são outros.
A importância do leitor, do indivíduo como única instância, célula, de pensamento e de conhecimento, sem o qual, indivíduo, nem sequer existe linguagem (por mais que esta seja social e não exista comunicação mediante uma linguagem exclusiva do indivíduo), não é comparável à do escritor, senão no facto de também este ser leitor.
O leitor é a instância mais misteriosa e insondável do processo em que o escritor, como tal, se objectiva no texto, qualquer que seja a correspondência entre o texto e aquilo que o seu autor pensou ao escrevê-lo.
O texto, mas não o escritor, não o autor, pode ser lido por imensas pessoas. O que essas pessoas leram ao lerem o texto, só podemos tentar adivinhar, como acontece relativamente àquilo que o seu autor terá pensado ao escrevê-lo.
Nesta perspectiva, é provável que nenhum texto, livro, tenha sido ainda lido senão na medida em que, quem o leu, o fez subjectivamente, sem termos modo de apurar o que leu e se, acaso, houve leituras coincidentes, do indivíduo leitor com os outros indivíduos leitores, ou mesmo leituras coincidentes do mesmo indivíduo sobre o mesmo texto.
Se um texto não encontrar um leitor, e cada leitor terá competências de leitura diferentes dos outros, que podem ir do mais básico identificar as vogais e as consoantes até à crítica mais sofisticada e criativa, não acontece, nem como realidade gráfica.
A partir desta constatação continuo animado a pensar que, apesar do esforço e do trabalho de ler um texto, ou um livro, que até pode ter também o redobrado custo de o pagar, é uma experiência insubstituível e cada vez mais imprescindível como modo de organização, de gestão dos interesses e da visão das coisas, sempre mais além, como na navegação, nas viagens, e em tudo na vida.
O que um texto, ou um livro deve ao leitor é impagável. E pode ser muito.

João Boavida disse...

Estamos, portanto, de acordo. É tão importante o texto como o leitor, ou melhor, não falando de mais ou menos importância, são ambos importantes e necessitam-se. Quem escreve, escreve para alguém, mesmo que pense que não ou diga não se importar com isso. E os leitores são fundamentais para o texto porque o multiplicam, o enriquecem, o desdobram, o desenvolvem. E mesmo que o diminuam com interpretações menos ricas, ou só percebam dele uma parte, ou até o não compreendam, isso só quer dizer que um texto tem uma enorme capacidade de adaptação, que tem vida e resistência, que suporta mesmo maus tratos. A relação entre o texto e inúmeros leitores, multiplicando indefinidamente interpretações, repercussões e influências, é das coisas mais admiráveis e dinamizadoras da espécie humana, ou seja, do homo sapiens sapiens. Mas, claro, assim como há imensas diferenças de capacidade entre os leitores, há inúmeras diferenças de qualidade entre os textos, tal como entre as mensagens.

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