Por Cátia Delgado
(Estudante de Doutoramento em Ciências da Educação)
Recentemente, a UNESCO promoveu a Pré-cimeira da Educação Transformadora* (que precede a Cimeira a realizar em setembro do corrente ano), em Paris, para auscultar as ideias-chave dos países no seu compromisso para transformar a educação, incitando outros países que ainda estejam comedidos neste empreendimento, que se quer global (movimento global pela educação).
Esta foi também uma circunstância para divulgar uma plataforma criada pelo mesmo organismo, que incita à partilha da visão de educação de toda e qualquer "parte interessada" em “fazer ouvir a sua voz”: crianças, jovens, alunos, pais e professores, num apelo à força conjunta para a derradeira transformação da educação.
Na sua intervenção no supracitado evento, a Comissão Internacional para os Futuros da Educação, responsável tanto pela mencionada plataforma, como pela redação do relatório “Reimaginar os nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação” (UNESCO, 2021), justifica esta necessidade de mudança atribuindo à educação o papel de mudar o mundo, mais do que acompanhar as suas transformações.
Considera-se que, para tal, é necessária uma ação coletiva, para além da ação governamental (“precisamos que todos sejam capacitados e encorajados a participar na mudança”), na prossecução de “modelos de desenvolvimento ambientalmente sustentáveis e socialmente justos”, assentes na tríade democracia, diversidade e justiça. Em suma, “uma transformação educacional ousada é urgente”.
A intervenção prossegue com a questão “como será a transformação?”, sendo esta, de resto, a grande dúvida que me assalta, pois a narrativa da UNESCO, como de outras organizações, é vaga e, não raramente, contraditória. E este caso não é exceção.
Se, por um lado, no vislumbre de algum equilíbrio entre passado e futuro, se refere que
“devemos identificar o que deve continuar a ser feito na educação, o que deve ser abandonado e o que precisa ser reimaginado criativamente”,
na linha imediatamente a seguir, contradiz-se esta ideia de continuidade, dando lugar à disrupção:
“em vez de versões melhores dos sistemas existentes, a transformação resulta em sistemas educacionais diferentes dos atuais”.
Outro quesito que não pode ser ignorado são os atores que se pretendem mobilizar. Já disse que TODOS estão convidados a participar, com a sua voz, as suas ideias, mas o apelo a intervenientes específicos que, por princípio, deveriam ser alheios aos meandros da educação, pelos princípios que representa (equidade, inclusão) e pelo seu sentido público (tão – aparentemente – defendidos no relatório pré-citado) é claro: para se construir um novo contrato social para a educação serão necessárias
“mudanças difíceis nas relações de poder entre Estados, movimentos sociais, grupos de cidadãos, empresas e outros atores”.
Remetem-se para aqui todos os movimentos extra-estatais de iniciativa privada e, por isso, contraditórios com a educação como um empreendimento público e um bem comum, acessível a todos, que na narrativa assinalada se expõem.
A aludida comunicação finaliza com cinco direções para a mudança, que apenas citarei e que se explicam melhor no documento referenciado (aqui):
1) Tornar os sistemas educacionais lugares de oportunidades iguais e de abundância partilhada, promovendo a inclusão por meio de mudanças nas culturas e práticas educacionais que reduzem a competição e a seleção;2) Criar currículos focados mais em conexões do que categorias, apoiando abordagens interdisciplinares, interculturais e ecológicas dentro e fora da educação formal;3) Apoiar os professores na criação de uma educação transformadora, investindo num ensino que construa cooperação e solidariedade;4) Garantir que o digital nos conecta uns aos outros e ao mundo, construindo conteúdo de acesso aberto, plataformas públicas e comprometendo-se com a governança democrática e participativa;5) Fortalecer a educação como um bem comum global, garantindo uma cooperação mais equitativa nos países e entre estes.
Entre os mais de 140 Ministros e Vice-Ministros de Educação presentes, o Ministro da Educação português, João Costa, também se fez ouvir, numa intervenção que pretendeu comprovar o trabalho transformador da educação que tem sido levado a cabo em Portugal. Justificou a necessidade de mudar a educação em função das “mudanças ecossistémicas” que têm ocorrido em todo o mundo e das “novas exigências colocadas a uma profissão [docente] que, globalmente, funciona bem”, apontando quatro grandes desafios a que Portugal tem tentado dar resposta: equidade, desenvolvimento de competências para a vida, princípio da subsidiariedade e propósito do currículo.
No seu discurso referiu-se por diversas vezes aos professores, apontados como profissionais privilegiados que, através de boas práticas, serão o canal para a transformação das escolas.
Por outro lado, realçou “desafios na reconfiguração da profissão docente”, que passa pelo seu desenvolvimento profissional, nomeadamente por meio de “parcerias com academias, escolas, organizações”, através da realização de “workshops que envolvem experimentações piloto em salas de aula reais” e da partilha de boas práticas (“networks de escolas, networks de professores, (...) reuniões regionais para partilha de práticas entre escolas e entre professores”).
Em suma, pode considerar-se que a era da ubiquidade na educação, que torneia a desescolarização, prevista pela OCDE, desde 2001, no programa "Schooling for Tomorrow", e amplamente disseminada após a pandemia covid-19 (2020; 2022), está a instalar-se e a ser acolhida natural e fugazmente por instâncias que dizem defender a escola.
[Lembro que a norma da ubiquidade pressupõe que o conhecimento está amplamente disponível, pelo que se pode aprender qualquer coisa, em qualquer momento e em qualquer lugar, em função dos interesses do aluno/aprendiz e ao seu ritmo, nomeadamente a partir de plataformas de acesso aberto, incluindo as de iniciativa privada].
Noto que o elogio aos professores é uma constante, no entanto, o seu sentido, agregado à necessidade de mudança educativa (e, por inerência, das suas funções e sentido da sua ação) leva-me a crer que este é o bode expiatório perfeito para transpor estas (novas) "teorizações" para o terreno, ainda maioritariamente ocupado por estes profissionais.
________________________________________________________
*UNESCO. The Transforming Education Pre‐Summit (Paris, 28 a 30 de junho de 2022).
4 comentários:
Hoje, dia 30 de agosto de 2022, o Jornal Público dá conta que os alunos da ESE de Bragança estão ansiosos de levar para a escola as abordagens transversais que vivenciam na Licenciatura, que não irão dispor as mesas como no tempo dos avós e, dizem: “a escola tem de mudar, porque tudo mudou”. Não diz o quê nem como mudar. A exemplo: onde se encontra a teoria que valida a abordagem transversal face a outra? A disposição das mesas tem efeitos nas variáveis de eficácia pedagógica?
Há umas semanas, António Sampaio da Nóvoa, na qualidade de mentor do mais recente relatório da UNESCO, também disse que a escola tinha de mudar. Ficámos sem resposta quando questionado sobre o quê e como mudar.
Há uns meses, numa aula da UC “As TIC na Administração e Organização Escolar”, no IESF, o eloquente vídeo, assim denominado pela douta professora (https://www.youtube.com/watch?v=xLRt0mvvpBk), foi assunto de uma sessão teórica. Verificando que se iria passar a novo assunto, levantei de imediato o braço e perguntei: já entendi que a professora do vídeo não soube utilizar a tecnologia, precisa, pois, de alterar a metodologia, isso já percebi, então qual a metodologia para utilizar a dita tecnologia? Espero até hoje a resposta.
Há uns anos, um Diretor de escola disse em sede de CP: “a escola tem de mudar porque tudo está diferente agora”. Saiu-me de imediato: “sim, vamos mudar, e tem de ser já, o quê e como?” “Sei lá”, disse ele, “os professores, naquilo que fazem, é que têm a obrigação de dizer o que é necessário”. Perguntei de imediato: “então, se não sabe o que deve e como mudar, como é que o Sr. Diretor sabe que é preciso mudar?”. Até hoje…
A educação pública das crianças e jovens, a cargo do Estado, remonta, na Europa Ocidental, ao século XVIII, na Prússia. Entendia-se, e entende-se ainda hoje, que as famílias já não estavam à altura de, só por si, providenciarem uma educação de qualidade. Então, a Alemanha e outros países do centro e norte da Europa, formavam uma vanguarda esclarecida que via a escola pública como uma alavanca indispensável ao seu desenvolvimento económico e social, de que, ainda nos nossos dias, continuam a colher frutos.
Será que estes defensores da urgência da transformação da escola atual só querem dizer, mas falta-lhes a coragem, que a escola pública do Estado é para acabar?
Querem que a educação das crianças e jovens regresse ao seio das famílias, e seja também da responsabilidade de empresas, à semelhança das associações de pedreiros (maçons) que se formaram na Idade Média com vista à transmissão de conhecimentos que permitiram a construção das magníficas catedrais?
Dizer que o conhecimento escolar, propriamente dito, deve ser substituído por aprendizagens essenciais, apropriadas pelas crianças e jovens através de filosofia ubuntu, agrupadas em domínios, sub-domínios e rubricas inscritos em grelhas virtuais, é dizer muito pouco, ou nada!
Caro Leitor Anónimo
A história do Ocidente confunde-se com a história da Educação. A ideia de que todos devem ter beneficiar de um conhecimento comum, que a família não pode proporcionar, sendo já claro na Antiguidade, atravessou os tempos até ao século XX. Quando, por fim, conseguimos isso (ou muito perto disso), eis que tudo fazemos para que a escola pública colapse. O esforço de trinta séculos cai por terra. Pergunto-me se temos verdadeira consciência do direito (conquistado a tanto custo), que estamos a abastardar. Penso que, no futuro, a nossa geração será lembrada nada menos como bárbara. Um geração que destrói a escola e, com isso, faz regredir a civilização, não merece ser lembrada de outro modo.
Cumprimentos, MHDamião
Caro Rui Ferreira
Ouvi o mesmo de Sampaio da Nóvoa. Lamentavelmente, a retórica da mudança veiculada pela UNESCO não difere da da OCDE: é necessário, urgente, imprescindível mudar. Porquê? Porque não há alternativa (TINA), este é o argumento.
Não sendo explicada com clareza que mudança se pretende (continuar a) implementar, nem o que tem de mudar, a análise cuidada e crítica dos muitos documentos produzidos por estas duas organizações dão-nos respostas concretas. E bem sabemos como essas respostas são preocupantes. A preocupação deve levar-nos a insistir na pergunta a quem apresenta a mudança pela mudança. E, evidentemente, continuarmos a insistir no direito à educação escola, como direito inalienável.
Cumprimentos, MHDamião
Enviar um comentário