Cardigos dos Reis (meu
inesquecível professor
de Ciências Geográficas)
Assim dizia esse meu inesquecível professor do liceu de Lourenço Marques (hoje, Maputo), em 1947. Isto, a propósito de alguns tiranetes locais, desse tempo, sempre disponíveis, em exemplar exercício de excesso de zelo, para se projectarem muito para além das já avantajadas repressões então em vigor, “a bem da Nação”. Se o tirano dizia “mata”, o tiranete dizia “esfola”.
Lembro-me disto, porque há hoje, por aí, muita gente que se ri, com não pouca complacência, quando se estabelecem paralelos entre os partidos de extrema-direita que vão por esse mundo fora e o partido nazi alemão ou o partido fascista italiano. Que disparate!, dizem os mansos (e deles é o reino dos céus)! Que diferença de dimensão e que diferença de contexto! Portugal, dizem, não é a Alemanha nem é a Itália! Somos um país pequeno, sossegado, de bons e humildes costumes, nada dado a extremismos!
Pois é, como se o ovo da serpente se aninhasse só, no solo de países de grande porte… Como se os tiranetes de países insignificantes não soubessem copiar e tecer os tapetes que amaciam a caminhada para o poder dos grandes tiranos das grandes potências! Os tiranetes copiam os tiranos e procuram até ir além deles, em modo de aluno aplicado e muito zeloso.
Por exemplo, o Haiti é uma insignificância no contexto das nações (tem, mais ou menos a população de Portugal), um sítio candidato provável a paraíso caribenho, conhecido, entre os franceses, como a Pérola das Antilhas. Porém, a fome de poder tudo corrói, até os paraísos: foi o que fez o hediondo tiranete (risível, dirão os mansos) que dava pelo nome de Papa Doc, o qual transformou rapidamente o paraíso potencial em inferno real. Fez como todos os ditadores que sabem apoderar-se perversamente do poder: acedem a ele por via de eleições, que fingem respeitar e, uma vez no poder, ficam com ele e aferrolham a liberdade numa cela escura. (Hitler aceitou a via eleitoral, por duas vezes: da primeira, teve só 8%, da segunda, ganhou, para se eternizar no poder e dar cabo da Europa). Papa Doc ficou no poder até morrer, legando ao filho – o sinistro Baby Doc – o leme da nação.
São estes os “ungidos”, os “eleitos”, os a quem Deus, dizem eles, delegou todo o poder e que só de Deus recebem directamente directivas, são estes os que dizem presidir apenas às “pessoas de bem”, isto é, aquelas que lhes obedecem incondicionalmente. As outras, as que não são “de bem”, são perseguidas, presas, mortas ou desaparecem. Os “ungidos” não têm hesitações nem escrúpulos. O que fazem tem a aprovação e a bênção do Deus que está ao serviço deles.
No Haiti, pequena e sossegada nação, os Tontons Macoutes (a PIDE do Haiti) deu cabo de 150 000 cidadãos, entre mortos e desaparecidos. E tudo começou, repito, por eleições. Os gulosos do poder servem-se da liberdade para depois a destruírem. Nisto, os tiranetes não são diferentes dos tiranos. O método é sempre o mesmo. Só não aprende quem não quer aprender.
Nunca me hei de esquecer de ter visto (e ouvido), na noite das presidenciais, em Janeiro passado, um líder partidário a olhar misticamente para o céu e a dizer que gostava de pensar ter sido escolhido por Deus (para grandes destinos, presume-se)! E a dizer, também, que nunca seria o presidente de todos os portugueses, nas apenas daqueles que fossem “pessoas de bem” (segundo a sua cartilha, pois claro!) É desta massa que eles se fazem.
Stefan Zweig, durante várias décadas esquecido, mas hoje justa e universalmente recuperado, exímio campeão da paz e da liberdade, dizia que “os que labutam em nome de Deus são sempre as pessoas menos pacíficas do mundo: como acreditam que recebem mensagens celestiais, têm os ouvidos surdos para qualquer palavra de humanidade.”
Não se pense, pois, que estes sobressaltos de populismo frenético são coisa de brincar. E, sobretudo, não se deitem a dormir. Olhem que eles estão bem acordados!
Eugénio Lisboa
4 comentários:
Por experiência prova tive conhecimento de tiranetes. Chegado a Lourenço Marques (hoje Maputo), princípios da década de 50, comecei a escrever nos jornais locais sobre assuntos tabus. Um dia estava a assistir a um jogo e futebol com um colega, quando sou abordado pelo director provincial de Educação que me diz, sem mais aquelas: "Estou a pensar mandar alguns professores da capital para o norte de Moçambique". Respondi-lhe, a mim não manda que eu regresso à Metrópole de imediato, porque concorri para a capital.
Sábias palavras. Convém não esquecer que a Direita Democrática também não se soube defender do aperto de jiboia do Nazismo, "negociando" com ele como fosse igual na sua essência, e algo semelhante se passou com Estalinismo, cuja unha ainda agora se faz sentir.
A questão dos tiranetes é de uma relevância extrema, se quisermos discutir o problema dos poderes e das relações de poder. A democracia é um vespeiro de tiranetes e de candidatos a tiranetes. Nas forças policiais, muito mais do que nas militares, esse problema parece ser incomensuravelmente maior. Não serão muitas as pessoas que entendem o poder, o exercício do poder de outro modo. As escolas, a esse respeito, já tiveram melhores dias, no que respeita à forma burocrática como são dirigidas. Onde houver um cargo, há uma oportunidade para o tiranete. Também há professores que esticam até onde podem a sua autoridade, mas saem vencidos. E isto é um bom sinal no ensino aprendizagem da convivência democrática. A convivência democrática não é apenas uma questão de regras democráticas. A democracia está cheia de tiranetes e o mais fácil é eleger um tirano e a um tirano exercer o poder, porque conta sempre com uma base de apoio incrivelmente grande. O perigo está em dar essa oportunidade. Depois, até a legitimação democrática funciona a favor, tantos são os tiranetes e os candidatos a tiranetes. Mas isto, que parece ser um argumento contra a democracia, é a favor. A democracia, por definição e por constituição, não se reconhece e não pactua com um tirano. Pode pactuar com muitos tiranetes, mas não com um tirano. Nunca é de mais realçar que, quando falo de tiranetes e de tirano, me refiro a pessoas que, de algum modo, estão investidas de poder público, pela lei e em respeito da lei, ao serviço do cidadão e não contra o cidadão e, muito menos, em benefício próprio com prejuízo e à custa do cidadão.
Toda a formação em cidadania podia e devia começar por aqui, pelos direitos do cidadão.
Os tiranetes não querem ouvir falar em direitos do cidadão, querem falar em deveres do cidadão.
Mas é preciso falar-lhes nos seus deveres de detentores de cargos públicos, porque dos direitos inerentes já eles (tiranetes) abusam.
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