terça-feira, 14 de abril de 2020

Maria de Sousa (1939-2020): um testemunho


Maria de Sousa, que nos acaba de deixar, era uma mente superior.  Tive o privilégio de estar perto dessa mente várias vezes. Nesta hora em que uma amiga nos deixa é difícil ordenar a nossa memória. Mas lembro-me, por exemplo, de um dia estar com ela em Southampton num congresso dos estudantes e investigadores portugueses no Reino Unido (PARSUK) e num fim de tarde não dar com ela em lado nenhum do hotel onde estávamos. Pois tinha ido, de táxi, assistir a um concerto numa igreja dos arredores. A sua rica vida interior exigia-lhe a música e o recolhimento. Mas não se pense por isso que era uma pessoa solitária: era antes solidária, pois não tendo tido oportunidade de avisar ninguém, logo nos disse qual era o próximo concerto que não podíamos perder.

Era, como a maioria dos grandes cientistas que tenho conhecido, de fino humor. O humor é, aliás, uma manifestação de inteligência. Boa observadora, a Maria era capaz de se rir de coisas que porventura outras pessoas não achariam risíveis. As suas mensagens de e-mail continham sempre uma observação perspicaz, um comentário irónico.  Trocávamos muitas vezes mensagens sobre a situação da ciência em Portugal e, mesmo quando estava mais para chorar do que para rir, ela sorria. Sorria por escrito, como só ela sabia. Os cientistas são optimistas, pois sabem que os dias podem ser melhores quando fazemos por isso.  

Figura modesta, não tinha problemas em contar pormenores da sua vida a quem sentisse próximo. Visitei-a na sua casa de Algés quando estava estava a preparar a edição para a Gradiva do seu livro Meu Dito, meu escrito e a conversa, rodeada de livros por todos os lados, foi longa. Falámos, porque puxei o assunto, do livro que a tornou famosa Um Mundo Imaginado, de June Goodfield, onde, apesar de ser a heroína científica (uma cientista portuguesa a trabalhar num laboratório norte-americano), o seu nome nunca aparece (procurem o livro onde puderem, mas está há bastante tempo esgotadíssimo, como alguns dos primeiros volumes da colecção Ciência Aberta). O livro que li quando era novo tornou-a para mim lendária. Mais velho, ali estava eu como que na casa de Madame Curie.

A ciência era a sua grande paixão. Estive como palestrante convidado no programa doutoral em biologia (GABBA) que ela montou na Universidade do Porto. A sigla não é muito boa, porque pode dar a ideia de que ela se gabava. Não, mas  tinha um certo orgulho não só no seu trabalho pioneiro de imunologia, que hoje está nos manuais da especialidade, mas também e talvez sobretudo no facto de ter ajudado, com José Mariano Gago (vai fazer a 17 de Abril cinco anos que nos deixou) e outros (lembro o saudoso Fernando Henriques da Silva, outro estrangeirado, este da Holanda, que nos deixou há meses), a erguer o sistema de ciência em Portugal, criando instituições de raiz. Tinha razões para se gabar. 

Convidei-a, como bibliotecário-mor da Universidade de Coimbra, a falar sobre o livro de André Vesálio, De Humanis Corporis Fabrica (1543), do qual existe uma cópia na Biblioteca Joanina, que tinha sido restaurada e digitalizadoa. Ela falou nessa Biblioteca  - um discurso memorável que está inserto no livro Meu Dito, Meu escrito. A Maria preparava cada intervenção que fazia, não improvisava nada, como mostra esse livro. Lendo esse conjunto  dos seus textos de intervenção pública vê-se bem o seu conhecimento da história da ciência e a ligação que sentia, por exemplo, a Garcia de Orta. Tinha um certo afecto por Coimbra, de onde recebeu o Prémio Universidade de Coimbra. Convidei-a depois disso noutras vezes, mas ela, sempre com grande elegância, ia declinando. Não estava suficientemente preparada, defendia-se, e demoraria a preparar-se. Mas eu não declinei quando simpaticamente me convidou para o lançamento do seu livro no Hotel Quinta das Lágrimas, em Coimbra, onde estiveram João Queiró, Miguel Castelo Branco e Gonçalo Quadros (na altura a Maria não podia adivinhar que o Gonçalo viria anos mais tarde a receber o mesmo prémio Universidade de Coimbra que ela). 

Quando  sugeriu o meu nome para trabalhar com ela (e com Fernando Henriques da Silva, Daniel Bessa e Luís Portela) num processo de reestruturação das bolsas da Fundação Bial, do Porto, não pude deixar de aceitar, porque não tinha aprendido com ela a arte de dizer não. Não me arrependi: Foram momentos bem passados, e julgo que também úteis à Fundação, aqueles em que convivi com ela nesse âmbito. Espírito aberto, ela sabia porém distinguir ciência de pseudociência.

Também trabalhei com ela a partir de 2012 no Conselho de Ciência da Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde ela se juntou a cientistas como Manuel Paiva, Maria Mota, Elvira Fortunato , Irene Fonseca e Nuno Ferrand para discutir de forma livre a ciência em Portugal, tendo o Conselho incentivado a ideia que lhes levei de criar uma rede de cientistas portugueses no estrangeiro, que foi feita mais tarde com o nome de GPS - Global Portuguese Scientists.

A morte não é o fim, para quem como ela deixa legado científico, pedagógico e literário (poucos saberão que ela era também poeta: tem um livro de poemas, A hora e a circunstância, na Gradiva, 1988, com prefácio de Agostinho da Silva). O seu arquivo vai ficar na Casa Reynaldo dos Santos, na Parede, outro nome grande da nossa ciência médica e da nossa história de arte. Fica o seu exemplo de dedicação plena, não apenas à ciência como à cultura. Ela sabia, como poucos, que a ciência é parte da cultura.  

1 comentário:

João Drummond de Barros disse...

O livro ,Um Mundo Imaginado, de June Goodfield, tenho-o ainda hoje comigo, um livro fantástico sobre o processo da descoberta em ciência!
Desconhecia que fosse sobre a cientista Maria de Sousa, Obrigado!!!!

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