Em 1963, George Gusdorf dava título de livro a uma pergunta ancestral — “Professores para quê?” —, à qual é absolutamente necessário e urgente voltar. Ela teve especial sentido na turbulência educativa das décadas de 1960 e 1970, tal como tem nas décadas de início deste século.
A verdade é que a docência, como função intrinsecamente relacional, que requer um conjunto de saberes especializados de modo a cumprir a finalidade última de levar a aprender, vê-se questionada de múltiplas formas.
Entre elas contam-se a substituição dos professores por “técnicos” sumariamente preparados, por engenhos tecnológicos devidamente programados, por manuais/guiões e plataformas disponibilizadas por empresas, pela “educação por pares”, etc. Escolas há que, na sua arquitectura, na composição do currículo e na definição dos espaços e tempos, excluem a figura do professor ou tornam-na residual. Também a participação de agentes/parceiros da sociedade na educação formal e, mais concretamente, na vida da escola, com a mesma legitimidade ou legitimidade superior à dos professores, afasta-os do seu dever educativo.
E enquanto não se afastam completamente dos alunos — há quem diga que isso não demorará muitos anos —, atribuem-se-lhes incontáveis tarefas de teor burocrático, que lhes roubam, mais do que as horas e os dias, a energia, a capacidade de pensar e de decidir, para não falar da disponibilidade de estudar e de organizar o seu trabalho. Em simultâneo, e de múltiplas fontes, incute-se-lhes a narrativa pseudo-pedagógico vigente.
E isto à vista dos professores, que respondem de modos diversos. Estamos em crer que o modo prevalecente não é a contestação aberta do anti-ensino, mas não quer dizer que ela não exista. Um exemplo é o artigo de opinião escrito por Francisco Martins da Silva com o título "Docente (*) é p’ra leccionar" que vale a pena ler. Por isso mesmo o transcrevemos na sua quase totalidade, usando uma das suas frases como título.
Maria Helena Damião e Isaltina Martins
(...) Por que razão vivem os docentes submersos em tarefas e responsabilidades que nada têm que ver com leccionar? Não é da mais elementar lógica os professores ocuparem-se em exclusivo dos alunos e da leccionação? Que espaço se reserva à escola no meio de tanta acta, relatório, formulário, grelha, planificação, avaliação, tanto decreto a cada hora revogado e a cada hora revisto? (...)
Que tempo resta para a escola? Além de leccionar às turmas que lhes cabem e de ainda poderem ser directores de turma, coordenadores de directores de turma, coordenadores de ciclo, coordenadores de departamento, representantes de grupo disciplinar, coordenadores de projectos, tutores, membros do Conselho Geral, adjuntos da Direcção, et cetera, et cetera, as caixas de correio dos professores recebem de manhã à noite, todos os dias da semana, um sem-número de e-mails, e transbordam permanentemente de urgências burocráticas designadas por PEI, UFC, RTP, CEB, PIT, EMAI, ELT, ACES, ULS, CPCJ, CRI, JNE, PL2, SPO, EO, DT, DEE, PHDA, ME, CAA, CT, EE, PAA, DAC, EECE, CP, PES, EFA, PASEO, IDNMSAI, PE, CAF, CD, ARA, PARA…
Não, não vou aqui maçar ninguém a explicar o que significam todas estas premências, desde logo porque, havendo tantas, nenhuma pode ser importante. Em boa verdade, que se saiba, nenhuma destas siglas muda seja o que for no dia-a-dia de um só aluno.
Apenas motivam infindáveis reuniões e formulários e são um inferno para os professores, transformando-os em adivinhadores de um ror de dificuldades cognitivas, psicológicas, relacionais, familiares e outras hipotéticas problemáticas. A produção desta papelada é um fim em si, pois nunca se fará qualquer balanço ou avaliação dos seus efeitos nem sequer dos seus custos.
Mas permitam-me ainda assim que desvende um dos possíveis significados da sigla CT: Conselho de Turma!… E que fazem os professores nos conselhos de turma, um por turma (há docentes que têm mais de dez turmas), no meio e no final de cada período, sempre fora do horário, sempre fora de horas e a somar a tudo isto? - Pois conferem a imensa papelosa produzida por todas as outras siglas, harmonizam-na para que não se contradiga e não decepcione a inspecção, e no fim debitam mais um papel - a acta. “Circunstanciada”, claro.
Por que carga de água se exige então aos professores todo este estéril trabalho extra, que não é pago, não é da sua competência e agride o seu estatuto? A resposta é simples: controlando cada vez menos a sala de aula, cada vez mais o sistema de ensino se concentra em tudo o que lhe for lateral.
(*) Do latim docens (docens, -entis), particípio activo do verbo docere (ensinar).
3 comentários:
Excelente artigo. Conheci professores que viviam frequentemente perto de um ataque de nervos. Claro que isto se reflectia nos alunos.
Houve alguém que escreveu, nada acontecer por acaso. E esse acaso foi a de os professores não baterem o pé quando se iniciou, qual bola de neve, a funcionalização do professor que, para além da actividade de ensinar, passou a fazer o trabalho anteriormente executado pelas secretarias das escolas. Chorar sobre o leite derramado consola a alma, mas não resolve os problemas.
“Apenas motivam infindáveis reuniões e formulários e são um inferno para os professores, transformando-os em adivinhadores de um ror de dificuldades cognitivas, psicológicas, relacionais, familiares e outras hipotéticas problemáticas. A produção desta papelada é um fim em si, pois nunca se fará qualquer balanço ou avaliação dos seus efeitos nem sequer dos seus custos.”
Eu chamar-lhe-ia lógica maquiavélica.
As “chefias intermédias”, devidamente doutoradas e especializadas em “ciências da educação”, não veem melhor maneira de justificar o papel crucial que desempenham na condução da vida escolar do que ordenar aos seus subordinados - os também doutores, mestres e licenciados professores que se limitam a lecionar – que produzam resmas de papelada burocrática, porque não há nada melhor para mostrar à comunidade exterior às grades da escola que, no caminho único que conduz ao sucesso escolar absoluto, a flexibilidade pedagógica em vigor impõe aos docentes que passem com notas altas todos os seus alunos. Atualmente, tem mais valor o diploma que o jovem cidadão empunha à saída da escolaridade obrigatória do que todo o pouco conhecimento que os professores ainda têm autorização “para lhe oferecer”.
As “chefias intermédias” são treinadas para desconfiarem dos professores e dos educadores de infância, principalmente daqueles que, tendo formação universitária clássica, se apercebem mais facilmente desta decadência civilizacional da escola que, em termos gerais e filosóficos, é provocada pela sobrevalorização da estupidez e da ignorância no mundo moderno.
Evidentemente que ficava mal aos “chefes intermédios” exigirem, à queima roupa, a um qualquer professor licenciado, ou a um mestre, que tapasse os olhos sempre que se preparasse para atribuir classificações negativas, e que, nessa incómoda posição, atribuísse apenas classificações positivas e elevadas, tal e qual se faz em muitos colégios privados. Então, o expediente hipócrita, mas sustentado na lei, e como tal incensado pelos ministro e secretários de estado do ministério da educação, consiste em enredar os professores “indiferenciados” com o preenchimento das mil e uma “urgências burocráticas”, referentes a cada um dos alunos que, para muitos professores, são mais de duzentos, o que, verificada a impossibilidade humana de cumprir com seriedade e rigor tanto trabalho, dada a sua natureza absurda, faz-se de conta que sim, e passa-se quem sabe e quem não sabe, indo assim ao encontro das intenções maquiavélicas das “chefias intermédias”.
Isto é um desespero!
O governo tem a liberdade de decretar o sucesso escolar para todos, mas não tem o direito de, simultaneamente, infernizar a vida dos professores com tanta parvoíce legal!
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