A escola pública passou (ou, melhor, tem sido levada) a delegar uma parte substancial da função educativa que lhe cabe a "forças vivas da comunidade", tenham ou não vocação e formação para tanto, tenham ou não, ao menos, bom-senso.
De entre as várias portas que o currículo escolar abre, duas delas, a da "Educação para a cidadania" (nas suas múltiplas áreas: rodoviária, financeira, ambiental, para o empreendedorismo, para a saúde e sexualidade, para o risco, para a igualdade de género, para os media...) e a dos "Dias de..." (dos namorados, dos avós, da árvore, da criança, da mulher, da alimentação, da água...) estão escancaradas a quem possa ou queira dizer ou fazer qualquer coisa para o "bem das crianças": médicos e enfermeiros, funcionários de banqueiros e de empresários, psiquiatras e psicólogos, polícias e bombeiros... e, agora, os autarcas.
Se, por algum acaso, uma escola decidisse filtrar a (constante) entrada dos múltiplos "agentes sociais" que já é hábito serem chamados e se mostram disponíveis para "colaborar", seria, pela certa, acusada de se fechar sobre si própria, de impedir o contacto com a realidade, de estabelecer laços com a comunidade.
Acontece que deveria fazê-lo pois, em muitos casos, as "actividades dinamizadas" por esses "agentes sociais" se revelam, na expressão de John Dewey, "deseducativas", além de não acrescentarem nada à aprendizagem formal que um aluno deve fazer, prejudicam-na.
Este cenário explicará o que aconteceu no dia 1 de Junho, Dia Mundial da Criança, numa cidade do interior onde foram "dinamizadas actividades" para meninos do Jardim-de-Infância e do 1.º Ciclo, numa colaboração entre escolas, autaquia e Polícia de Segurança Pública (aqui). Uma foi parar à imprensa: tratava-se da simulação de um motim: enquanto alguns meninos faziam de polícias de intervenção, outros faziam de manifestantes, estes lançavam “pedras” (de papel) sobre aqueles.
Muitas opiniões, quase todas acentuando os efeitos perversos dessa simulação, mas, como é recorrente, o essencial não foi discutido: que função é a da escola e, para a exercer, que colaborações deve aceitar. Depois, seria de discutir alguns pormenores que fazem toda a diferença e que passo a enunciar.
1. Ao que percebi a ideia da actividade partiu da autarquia. Há que perguntar: pode e deve a autarquia impor ou, sequer, propor actividades educativas? Não, não pode nem deve. A instância mandatada para ensinar é a escola e é a escola que tem de determinar, com conhecimento e responsabilidade, as actividades que beneficiam a aprendizagem dos alunos. A ingerência da autaquia neste caso, foi perfeitamente abusiva e as escolas não deveriam tê-la aceitado.
2. A justificação da presidente da Câmara. Sem qualquer embaraço, explicou que houve "um fundamento e um propósito pedagógico". Com base nela, e contra toda a evidência, usou diversos argumentos "educativos", como se de uma especialista se tratasse. É evidente que ultrapassou o seu papel de autarca.
3. A publicitação de fotografias das crianças. Ao que li, mais de cem na página no Facebook da autarquia, possivelmente para que que pudesse comprovar a qualidade educativa desta entidade.
4. A participação da polícia. Em vez fazer aquilo para que está capacitada e em que é precisa, assumiu o papel dos professores, explicando isto e aquilo às crianças. Ao que parece "já realizou este tipo de iniciativa noutros pontos do país" sem o "mais pequeno sinal de contestação ou de crítica", disse a presidente da Câmara. Eu acredito e lamento.
5. Os professores tornados espectadores. O que terá acontecido para que tenham delegado a sua tarefa noutrem? Para que tenham entregado os alunos que se encontravam ao seu cuidado a pessoas que não têm formação para os ensinar? Foram convencidos ou obrigados? Não sabiam antecipadamente o que iria acontecer? Sabiam e acharam que seria correcto?
6. Os pais assistiam e nada fizeram, nem indignar-se. O reprentante da Associação muito tolerantemente, declarou que a acção "não foi muito feliz". Se nada se lhe tivesse sido perguntado, possivelmente nem a esta expressão chegaria.
Há, na verdade, um caminho longo e difícil a percorrer para que a escola consiga assumir-se como escola, com a segurança e o poder que lhe permite escolher quem deve colaborar com ela e para quê.
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1 comentário:
Não é a escola que se deve ligar à comunidade, é a comunidade que se deve ligar à escola, para aprender com ela. Infelizmente, na área da educação, tal como na política, muitas frases sem sentido tornam-se frequentemente slogans repetidos até à exaustão sem nunca se reflectir muito no seu significado real.
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