terça-feira, 9 de junho de 2015

"Um caso de dever público"

A propósito da recente integração no currículo do Ensino Básico de uma componente optativa de "oferta de escola" designada por Cultura e Línguas Clássicas, um jornal destinado a jovens - jornalíssimo - publicou, na edição de hoje, uma entrevista a Mário Martins, professor de Português e Latim na Escola Secundária Camões, em Lisboa, uma das poucas onde o ensino "clássico" se tem conseguido manter. Tomamos a liberdade de transcrever essa entrevista:

Há 20 anos a ensinar Latim (já lecionou também Grego), defende que a aprendizagem das línguas e culturas clássicas deveria ser obrigatória. Vê com um "agrado comedido" a nova Introdução à Cultura e Língua Clássicas, apresentada pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC) na semana passada.

JORNALÍSSIMO - Se tivesse de enumerar três razões para um jovem escolher as disciplinas de Latim e Grego, quais seriam?
MÁRIO MARTINS - Três em um: a importância de conhecer o nosso passado para melhor conhecer o presente e preparar o futuro.

J - Pode explicar melhor?
MM - O futuro faz-se do passado e se há algo que temos de fazer sempre é não perder a memória (patrimonial, cultural, linguística) e as raízes que nos trazem ao presente. Diria mesmo que é um caso de dever público. Em Portugal, nos últimos 20-30 anos, e no que às línguas clássicas diz respeito, foi-se fazendo o inverso.

J - Esta medida do MEC para promover o ensino do Latim e do Grego no ensino básico vai alterar essa tendência?
MM - A nova componente Introdução à Cultura e Línguas Clássicas (ICLC) é um passo para inverter o que se tem vindo a fazer. A onda que está no ar é que os alunos do ensino básico passam a aprender Latim e Grego. É redondamente mentira! Trata-se de uma disciplina de oferta complementar (no caso do 1.º ou 2.º ciclos) ou oferta de escola (no 3.º ciclo). Esperemos que tenha a aceitação e o carinho das escolas, dos pais e dos encarregados de educação. Estou convencido que os alunos - sobretudo no 2.º e 3.º ciclos, onde me parece ter mais sentido a implementação de ICLC - a vão querer, caso as escolas e agrupamentos a ofereçam. Sei que há agrupamentos de escolas que a vão ter no 5.º e no 9.º anos, para todos os alunos. É excelente!

J - O Latim e o Grego podem ser uma mais-valia para um aluno encontrar emprego no futuro?
MM - Sem dúvida: dá competências linguísticas, culturais e humanas imprescindíveis a qualquer pessoa. Latim é sinónimo de rigor, estudo, método, saber/conhecimento, capacidade de análise e de síntese do mundo, fonte de valores e ideias de vida para todos vivermos felizes.

J - Há a ideia de que o Latim é um língua morta. É verdade?
MM - Não! Rejeito tal afirmação. A expressão (infeliz) decorre tão só do facto de ser uma língua que não é falada regularmente entre nós e na maior parte do mundo. Mas em Inglaterra, na Alemanha e na Finlândia, há muitos casos de latim falado, de latim coloquial hoje. Por exemplo, na rádio nacional finlandesa há a rubrica Nuntii Latini, toda ela em latim clássico.

J - O facto de por cá estas línguas terem perdido força revela algo sobre o país e sobre o nosso sistema de ensino?
MM - Claro que revela. Desde sempre o Latim e o Grego foram vistos como línguas de elite, matérias dificílimas, ao alcance só de alguns. Mas pergunto: a Matemática, a Biologia e a Genética também não são de elite, vistas por este prisma? Eu só conheço aquilo que posso ou quero saber. Estamos a falar das línguas basilares da nossa identidade. Não se pode esquecer a matriz da nossa civilização. A cultura clássica, via Latim e Grego, inspira-nos sempre. Isto é elitismo? Como defende Young, todo o "conhecimento poderoso" é, por natureza, elitista e acrescenta alguma coisa às origens. Este "elitismo para todos" é que deve ser a preocupação de todos os intervenientes no processo educativo - alunos, pais, professores, escolas, Ministérios da Educação, Governo, etc. Esta sim é uma caminhada no sentido da igualdade de oportunidades.

J - Acha então que a medida tomada pelo MEC deveria ir mais além?
MM - Eu defendo que o estudo das línguas e culturas clássicas deveria ser obrigatório no ensino obrigatório, no 9.º ou no 12.º anos. Para todos, sem exceção. Como refere George Steiner, no livro Elogio da Transmissão, "a humanidade é herdeira de uma civilização", Todos os educadores têm obrigação moral de assegurar que o conhecimento poderoso se mantenha vivo, seja transmitido, criticado e atualizado para ser útil às pessoas e à sociedade". Acredito que é por aqui o futuro já hoje. Estamos sempre a tempo de começar ou recomeçar a caminhada.

J - E a que atribui esta falta de alunos interessados na aprendizagem do Latim e do Grego?
MM - À falta de oferta curricular pelas escolas; à falta de coragem de muitas direções de escolas e agrupamentos para, pelo menos, disponibilizar a possibilidade de abrir a opção Latim e/ou Grego (se ela não aparece como oferta, ninguém se lembrará dela também); à falta de informação clara e transparente sobre a utilidade destas áreas do saber. Além disso, há o tal “estigma” de que saber Latim e Grego é elitista.

3 comentários:

Graça Sampaio disse...

No ensino básico?! Dificilmente. Mas considero muito importante e aí sim deveria ser obrigatório o estudo do Latim para os alunos que seguem Humanidades.

joão viegas disse...

Muito bem. Qual elitista, qual carapuça ! Elitista é não dar a ninguém a possibilidade de conhecer o suficiente para poder decidir livremente entre aprofundar e não aprofundar. Ou seja, elitista é a situação que existe hoje, em que a educação que faz a diferença é essencialmente adquirida fora da escola, o que é um escândalo absoluto para quem se afirma democrata.

Ja agora, eis como eu responderia à pergunta sobre as três razões para um jovem escolher as disciplinas de Latim e Grego :

1a razão : para aprender a origem da palavra "interesse" e ficar a saber que o "interesse do aluno" não deve ser confundido com o seu apetite por batatas fritas, gelados e futebol.

2a razão : para aprender a origem da palavra "educação" e ficar a saber porque é que se trata exactamente do contrario de deixar apodrecer no casulo.

3a razão : para aprender a origem da palavra cultura e ficar a saber que ela implica não se contentar com andar por ca apenas por ver andar os outros.

Boas

Paula Gil disse...

Educadora de Infância também vai avaliar os docentes de Latim e Grego?

Educadora de Infância sem habilitações para o 3.º ciclo e ensino secundário é avaliadora do desempenho docente dos professores de todas as áreas curriculares

https://twitter.com/jfilipev/status/605726856843825152

https://twitter.com/jfilipev/status/605727370478256128

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