quarta-feira, 10 de junho de 2015

IN MEMORIAM DO PROFESSOR ANTÓNIO MANUEL BAPTISTA

Pela sua natureza, a universidade é uma instituição que deve ser frequentada pela aristocracia intelectual, que tem como vocação a universalidade e que deve adoptar como critério a exigência”.

Maria Filomena Mónica

O recente falecimento deste ilustre professor catedrático de Física, e festejado divulgador do mundo científico nos jornais e televisão, homenageado, no passado dia 8 deste mês, pelo Professor Carlos Fiolhais, neste blogue, com o post “António Manuel Baptista (1924-2015)”, transportou-me a tempos em que o grau académico de licenciado – “com o prestígio  da Universidade que lhe deu a primeira credencial de título académico nobilitante” (Adriano Moreira) - não tinha ainda sido abastardado com o chamado “Processo de Bolonha” em que o grau de bacharel do ensino politécnico se transformou em licenciatura e a licenciatura universitária se degradou, por exemplo, ao não lhe ser atribuída, sequer, equivalência aos actuais mestrados universitários como seria da mais elementar justiça.

Assim, no ano primeiro da década de 90, em artigo de opinião, intitulado “Títulos, obrigações e valores”, em transcrição  que  aqui faço, no “Diário de Coimbra” (14/05/1990), escrevi:
Que me perdoe o leitor se o título desta prosa o pode levar a ler uma coisa que nada tem de análise económica. O mal não está tanto em mim, mas na subtileza do léxico nacional em que uma mesma palavra assume significados bem diferentes. Porém, tão-pouco, se trata de uma mera questão linguística.
Proponho-me, isso sim, analisar um caso que agitou ultimamente o meio local por ter sido dado a um simples licenciado (e assistente universitário) o título de professor doutor talvez pela obrigaçãode quem o fez em atribuir valor a um determinado e festejado trabalho de investigação. Não questiono a intenção. Todavia, tenho-a por desajustada porque perfilho a opinião de Gustave Le Bon em não atribuir aos diplomas académicos  condição sine qua non  para o elogio de alguém: 
“Grande número de políticos ou universitários, carregados de diplomas, possuem uma mentalidade de bárbaros e não podem, portanto, ter por guia senão uma alma de bárbaros”.
Assumo, como opinião pessoal, que o licenciado em questão (e o seu trabalho de investigação) não saiu nada prestigiado com um tratamento indevido, mesmo que desculpabilizado por uma possível e inquestionável amizade. Ainda a mais elevada admiração por alguém e sua obra devem respeitar os títulos ou simples etiquetas tradicionais que têm sido vítimas ultimamente de verdadeiros tratos de polé, em nome de uma pretensa e falsa democratização de direitos estabelecidos oficialmente ou consagrados por simples usos e costumes.

E porque se não trata de discutir o sexo dos anjos, respaldo-me em acontecimento relatado por António Manuel Baptista (o destaque desta personalidade dispensa o adorno de qualquer título), professor visitante da Michigan State University  e cientista de  renome internacional galardoado com prestigiados prémios científicos.

O caso conta-se em poucas palavras.

Em referência pública por si feita num artigo a um mui ilustre professor catedrático de Lisboa, prescindiu ele de lhe atribuir o tratamento de professor por – como explicou  mais tarde, ao que me recordo, em 84, no Semanário “O Independente”, com o título “Professor para que te quero?” – não ter entendido essa sua omissão como heresia ou atitude menos cortês, mas como “um sinal de respeito em despir a toga a quem não precisava dela”.

Aproveitou,ainda ele, no mesmo artigo de opinião, a ocasião para criticar o mau uso que vem sendo dado ao título de professor:
“Como se sabe, em nosso tempo, onde insultamos a democratização pela mediocratização de tudo, em vez de honrarmos os universitários formados em Educação Física com título apropriado, pegamos no título de professor e colocamo-lo nas camisolas de ginástica e desporto o que bem visto é uma solução à portuguesa de usar a beca ou toga como fato de treino”.
E acrescenta, mais à frente:
“O mal não está em chamar professor a instrutores, licenciados ou doutores em Educação Física, mas atrasar a vida deste País em anos pondo lentes no lugar de professores e fazer de conta que é a mesma coisa(1).
Mas não se trata de uma pecha nacional esta exigência ou respeito pelos títulos académicos ou simples normas de cortesia. Ela extravasa o rectângulo peninsular  (em Espanha temos o “Dom”) sendo encontrada em várias épocas, latitudes e culturas. Assim, segundo O.S. Marden,  George Washington queria que o tratassem por” Sua Majestade, o presidente dos Estados Unidos” e Samora Machel, nos primeiros tempos do seu cargo presidencial  era oficialmente referenciado, em documentos oficiais, por “Camarada Presidente”. Foi sol de pouca dura! Passado pouco tempo, fez publicar legislação que obrigava à forma protocolar: “Senhor Presidente da República Popular de Moçambique”. E em mudança de linha: “Excelência”.

Portanto, querer que da noite para o dia os licenciados ou os doutores dispam na praça pública os títulos que tanto trabalho lhe deram em obter é tarefa que se não augura para tempos mais próximos. Isso mesmo reconheceu, em finais do século XIX,  Fialho de Almeida: “Não se exija ao povo metamorfoses e gostos que a tradição lhes inculcou secularmente” (2).

É comuníssimo confundirem-se graus académicos com tratamentos. Licenciado e doutor são graus académicos e  dr. e professor são tratamentos convencionais. O primeiro (dr.) atribuível ao licenciado e o segundo (professor) aquele que fez o seu doutoramenro e exerce funções docentes universitárias, com maior tradição em Lisboa e menor em Coimbra, com excepção, quiçá,  de Medicina (3).

Tratar por você um Chefe de Estado e por Vossa Excelência um qualquer zé-dos-anzóis, são situações insólitas e nada toleráveis(4). Em etiqueta, como em outras coisas, tudo se quer com conta, peso e medida.

O Professor António Manuel Baptista, na sua qualidade de cronista do semanário “O Independente”, fez muito bem em esclarecer os leitores sobre essa conta, esse peso e essa medida na tradição portuguesa e na aceitação do nosso povo. Muito louvavelmente porque, como sentenciavam os antigos romanos, cuique suum tribuere (dar a cada um o que é seu).

Rui Baptista
Ex-assistente da Universidade do Porto.
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Notas actuais ao texto supracitado:
(1)     Instrutores  de Educação Física de posse de cursos médios (criados em Lisboa e no Porto, no início da década de 60), havendo somente o Curso Superior de Educação Física em Lisboa (INEF, criado em 1940, actual Faculdade de Motricidade Humana).
(2)     Não me refiro a tempos actuais de licenciados do tipo Miguel Relvas e quejandos, ou de licenciados de “vão de escada” de outras universidades privadas ou escolas do ensino politécnico.
(3)     O tratamento por dr. era dado, igualmente, a diplomados por escolas superiores não universitárias, v.g., Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto (1836) e Curso Superior de Letras (1859), criado por D. Pedro V, todos eles cursos superiores génese das actuais Faculdades de Letras de Lisboa e Porto, aquando do aparecimento das respectivas Universidades de Lisboa e Porto (1911).
(4)     Mal adivinhava  eu que este meu reparo assumiria forma premonitória por se ter vindo a verificar com Cristiano Ronaldo, anos mais tarde, quando se dirigiu ao Presidente da República Cavaco Silva tratando-o, em cerimónia protocolar,  por “você”.

5 comentários:

meno@ufc.br disse...

Prezada Profa. Filomena Monica,
Como poderia obter cópia de vosso artigo, intitulado “Títulos, obrigações e valores”, publicado no “Diário de Coimbra” aos 14/05/1990?
Grato desde já por qualquer informação.
Armenio

Rui Baptista disse...

Prezado Arménio: O artigo a que se refere é da minha autoria e responsabilidade . Da autoria da Professora Maria Filomena Mónica consta apenas a citação que faço em início de texto (e em bold):

“Pela sua natureza, a universidade é uma instituição que deve ser frequentada pela aristocracia intelectual, que tem como vocação a universalidade e que deve adoptar como critério a exigência”.

Já agora, aproveito a ocasião para outra transcrição da Professora Maria Filomena Mónica que responsabiliza os governos, o populismo dos parlamentares e a cobardia dos docentes pela degradação da universidade. Escreveu esta académica, com a frontalidade que é seu timbre: "Devido à irresponsabilidade dos governos, ao populismo dos parlamentares e à cobardia dos docentes, a universidade degradou-se para além do razoável (Público, 08/12/2003).

Com os melhores cumprimentos,
Rui Baptista



meno@ufc.br disse...

Prof. Rui,

Grato pela gentileza de responder ao comentário, tomo a liberdade de lhe pedir acesso ao vosso artigo “Títulos, obrigações e valores”, cuja reflexão me parece pertinente ao que vivemos cá na academia do Brasil.

Respeitosamente,
Armenio Aguiar

Rui Baptista disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rui Baptista disse...

Prezado Doutor Arménio: Infelizmente, procurando no acervo de mais de um milhar de artigos meus de opinião publicados na imprensa diária não encontrei o artigo solicitado. Todavia, neste post, reproduzi de memória, ou através de apontamentos esparsos, o essencial do seu conteúdo.

Cumprimentos gratos pela atenção dedicada a este meu post: "In memoriam do Professor António Manuel Baptista.

Rui Baptista

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