Meu artigo no n.º 5 da revista XXI - Ter opinião, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que acaba de ser publicado:
In memoriam José Mariano Gago
A ciência tem, hoje, tantas e tão úteis aplicações nas nossas vidas que a
associação mais imediata que o cidadão comum faz hoje à ciência não pode deixar
de ser a tecnologia. Essa associação, embora não diga o essencial sobre a
ciência – que é acima de tudo a descoberta do mundo pelo homem – não deixa de
ser adequada. A tecnologia precedeu a ciência – isto é, o fazer antecipou o
saber – mas, na modernidade, toda a tecnologia passou a derivar da ciência – o
saber passou a ser a única fonte do fazer.
As aplicações da ciência não se fazem sem riscos. Aliás, nada na vida
humana, se faz sem risco. Não existe risco zero: é inevitável que vivamos
permanentemente sob ameaças. Há que distinguir, na análise dos riscos, entre
aquilo que são azares, eventos naturais desfavoráveis (aquilo que, nas antigas
apólices de seguro, se chamavam “actos de
Deus”), e os erros, que resultam de falhas humanas (“errare humanum est”), que podem ir desde insuficiente cuidado no
planeamento até uma acção dolosa, passando por um acidente involuntário. Se os
azares não podem ser evitados, os erros podem e devem, tanto quanto possível, ser
prevenidos. É decerto virtuosa a aprendizagem que podemos fazer a partir deles.
A ocorrência de um certo erro deve despoletar medidas para evitar situações do
mesmo tipo. Podemos continuar a errar, mas os novos erros serão menores e
sobretudo diferentes. A ciência, através do seu moderno braço armado que é a
tecnologia, protege-nos dos riscos inerentes à Natureza e minimiza os riscos originados
por acções humanas. Se é certo que os avanços da ciência, ao possibilitar novas
intervenções do homem no mundo, geram riscos, não é menos verdade que a ciência,
a aplicação correcta do método científico, ainda é o melhor instrumento de que
dispomos para errar cada vez menos.
Como medir o risco? A ciência quantifica normalmente o risco usando a noção
de probabilidade. Por exemplo, voar é seguro, mas não é 100 por cento seguro. A
probabilidade de o leitor sobreviver no seu próximo voo de avião é de 99,9999815 por cento. Contudo, a noção de probabilidade não é de
fácil apreensão pelo comum das pessoas. Muitos passageiros, mesmo sabendo do
baixo risco de fatalidade (0,0000185 por cento), têm medo quando entram num
avião. O nosso cérebro tem dificuldade em avaliar riscos.
Ilustremos as questões ds risco,
deixando de lado o clássico domínio dos transportes, olhando para outros
domínios da nossa vida: Energia, Indústria, Ambiente, Saúde e Alimentação.
- Em 2012 um grupo de
personalidades propôs que se considerasse a opção do nuclear em Portugal. A reacção,
como seria de esperar após Chernobyl e Fukushima, foi forte. Todas as fontes de
energia têm vantagens e desvantagens e nenhuma central energética está isenta
de riscos. Como apresentar de forma imparcial as vantagens e desvantagens de
uma central nuclear? Pode-se efectuar uma análise dos riscos envolvidos e
apresentar as respectivas probabilidades. Acontece, porém, que os aspectos
científico-técnicos não podem ser os únicos a ser levados em conta numa decisão.
De facto, eles dificilmente podem ser desligados de outros: para além dos aspectos
geográficos, ambientais, físicos e tecnológicos, há questões psicológicas, sociais,
económicas e políticas, onde
- Os robôs já não são hoje ficção científica. Muitas instalações da
indústria portuguesa estão hoje fortemente robotizadas, existindo fortes normas
de seguranças quanto à construção, instalação e funcionamento de braços
robotizados. E há robôs domésticos: dispomos por exemplo de aspiradores
robotizados. Até onde chegará o progresso tecnológico nessa área? Poderão algum
dia os robôs substituir completamente os seres humanos? E poderão eles violar
uma das famosas leis de Asimov segunda a qual os robôs “não poderão fazer mal aos seres humanos”?
- O aquecimento global continua hoje a ser um hot topic, apesar de
existir uma posição consensual na comunidade científica sobre a sua realidade e
sobre a sua origem humana. Portugal assinou o Tratado de Quioto e está, como
outros países, a tentar limitar as emissões de dióxido de carbono. Que deve o
público saber sobre o tema? O que pode ele fazer a partir desse saber? Muitos
cidadãos ficam desde logo confusos com o facto de não existir unanimidade sobre
o assunto entre os cientistas. De facto, não há, nem ela é precisa, basta haver
uma expressiva maioria. E os cidadãos ficam também confusos com as grandes
margens de erro das previsões. Mas estas, que se baseiam em modelos computacional,
não são nem nunca podem ser absolutamente certas. A ciência dá probabilidades e
não certezas. Teremos que decidir com base em eventuais cenários.
- Em 2009, confrontado com uma epidemia de gripe, Portugal tal como
outros países comprou stocks elevados de tamiflu que não chegou a usar.
Hoje, dados os avanços do conhecimento científico, tudo indica que essa droga
não faz melhor a uma pessoa engripada do
que o vulgar paracetamol. Num mundo onde paira um risco permanente de
epidemias, como informar o público correctamente sobre os perigos dessa e de
outras doenças? E como evitar que os governos sejam eventualmente enganados
pela indústria delapidando o erário público?
- Em 2007 um grupo ecológico radical invadiu e destruiu uma plantação de
milho transgénico no Alentejo. A discussão centrou-se e ainda se centra, em
Portugal como noutros países europeus, nos perigos dos organismos geneticamente
modificados (OGM). Como explicar o que é uma planta transgénica se os genes são
invisíveis e a sua acção não perceptível de imediato? E como passar a ideia de que,
tanto quanto sabemos, o milho transgénico não é mais nem menos perigoso do que
o outro milho? O risco que o público associa aos transgénicos tem muito a ver
com o receio do desconhecido, um receio que sempre acompanhará a espécie
humana.
Como vimos, o risco, correcta ou incorrectamente percepcionado, está por
todo o lado nas nossas vidas, sendo várias as interrogações que se podem
colocar em face dele. A ciência traz-nos constantemente novos riscos assim como
maneiras de os minimizar. Os exemplos anteriores sugerem que a ciência, sendo
assaz relevante, não é nem pode ser tudo numa tomada de decisão. E a ciência,
por mais relevante que seja, de nada vale se a sociedade não compreender o
valor dela e não puder, alicerçada por essa compreensão, defender-se melhor dos
permanentes perigos em que está mergulhada.
Qual é então o valor da ciência? E quais são os perigos da ciência? De
facto a ciência como processo intelectual de descoberta do mundo é inofensiva. É
melhor saber do que não saber. Mas a actividade que o homem exerce ou pode
exercer no mundo uma vez de posse do conhecimento científico, é sempre
arriscada. O percurso histórico da ciência ajuda-nos a esclarecer esta questão.
Segundo o sociólogo inglês Anthony Giddens, a palavra “risco” (risk, em inglês) vem do latim medieval risicus
e pode ter-se generalizado a partir das navegações dos navegadores portugueses
e espanhóis nos séculos XV e XVI. Nos mapas iam-se traçando novas terras e a história trágico-marítima
ia apurando as melhores rotas. O processo de globalização protagonizado pelos
descobridores baseou-se numa atitude de curiosidade do homem, sem a qual a
Revolução Científica dos séculos XVI e XVII teria sido impossível. Chama-se
Revolução Científica à época em que a humanidade de apercebeu de que era
possível, através de observação atenta e experimentação cuidadosa, conhecer o
mundo de um modo sistemático. Inaugurou-se o chamado método científico, que
assenta na formulação de hipóteses a respeito do mundo e na sua confirmação ou
informação usando a experimentação. Pontificou nesse processo o físico italiano
Galileu Galilei, que foi pioneiro a observar os céus com um telescópio e a
realizar experiências sobre a queda dos graves. Na geração seguinte, o inglês Isaac
Newton levou mais longe o projecto galilaico. Depois de ter unido a física do
céu com a física da terra com base nas leis gerais do movimento e na força de
gravitação universal, interiorizou-se a noção do Universo como um gigantesco
mecanismo (a “máquina do mundo”). O
determinismo vingou: Conhecendo as condições iniciais e as forças seria
possível, pelo menos em princípio, conhecer todo o futuro.
O filósofo inglês Francis Bacon, contemporâneo de Galileu, ao escrever “saber é poder” disse em poucas palavras
tudo sobre o potencial transformativo da ciência. Na época de Bacon, o dramaturgo
inglês Christopher Marlowe introduziu na literatura uma baseada num alquimista
real, o Doutor Fausto, que ganhou uma aura mítica. Fausto passou a simbolizar
os perigos ligados ao poder da ciência. No século das Luzes, quando triunfou a
ciência newtoniana, surgiu. com a
máquina a vapor, a Revolução
Industrial, que iniciada em Inglaterra foi ganhando terreno ao longo do século
XIX e transformando de forma incrível a economia do mundo. Era inevitável que
houvesse uma reacção ao império da ciência e da técnica: foi o movimento
romântico. O escritor alemão Johann Wolfgang Goethe foi o autor do drama Faust (1808), que veio retomar o
personagem de Marlowe. O cientista, na sua ânsia de conhecimento, é capaz de
vender a alma ao demónio. Na mesma época, uma jovem inglesa, Mary Shelley, escreveu
um notável romance de ficção científica Frankenstein
(1818), que mais evidenciou os perigos da ciência. Agora já não era o cientista
tentado pelo diabo, mas antes o cientista que criava o diabo, uma criatura que
fugia ao criador.
Mais saber tem sido sempre mais poder. Não há símbolo mais extremo do
poder da ciência do que a bomba atómica que caiu em Hiroshima em 1945. O
extraordinário poder provinha agora do interior do coração do átomo, no mais
íntimo da matéria. E esse poder que, finda a guerra foi logo aproveitado para a
paz, ficou sempre com o pecado original. Tramas em novelas, nos comics, no cinema e na televisão passaram
a explorar os perigos do núcleo atómico. Mais modernamente, após a descoberta
da estrutura do ADN em 1953, os perigos da ciência, vista de dentro (do lado da
comunidade científico) como de fora (do lado da literatura e das artes visuais
e de palco) são mais associados à biologia do que à física. Mas a ciência mais
avançada é interdisciplinar. O Instituto para o Futuro da Humanidade identifica
a biologia sintética, a nanotecnologia e a inteligência artificial como os
maiores riscos científicos. E as artes amplificam para a cultura popular o medo
de seres provenientes de manipulações genéticas, engenhos moleculares e robôs
providos de consciência e vontade. Concretizar-se-ão esses perigos? Estou em
crer que a ciência continuará a ascensão que tem conhecido após a Revolução
Científica, que é afinal a etapa mais recente da ascensão do homem, e que esse
percurso não será nunca isento de riscos. Teremos sempre a necessidade de
vencer os medos, diminuindo os riscos. Para isso precisamos de mais ciência e
não de menos. Aprenderemos com os erros, como sempre fizemos até aqui. Como
escreveu Samuel Beckett: “Voltar a
tentar. Errar de novo. Errar melhor.”
É curioso que a ciência avance, ela própria, aprendendo com os erros, neste
caso os erros intelectuais que são as hipóteses falhadas. Fazemos conjecturas,
mas temos de estar dispostos a abandoná-las, logo que a observação ou a
experiência as invalide. O filósofo austríaco Karl Popper analisou esse
processo de falsificação das ideias que preside ao método científico mas o
melhor a esse respeito talvez seja dar a palavra ao grande divulgador de
ciência que foi o astrofísico norte-americano Carl Sagan:
“Os seres humanos podem almejar a certeza absoluta; podem aspirar a ela; podem até fingir, como partidários de certas religiões fazem, tê-la alcançado. Mas a história da ciência – de longe a mais bem sucedida reivindicação de conhecimento acessível aos seres humanos - ensina que o máximo que podemos esperar é a melhoria sucessiva da nossa compreensão, aprendendo com os nossos erros, numa abordagem assimptótica ao Universo, com a condição de que a certeza absoluta nos fugirá sempre."
4 comentários:
Senhor Professor Fíolhais, então em 2009 nós não assistimos à pouca vergonha que foi a intervenção extenuante da senhora ministra (Ana Jorge) que não largava as TV's por casa da gripe A, que nem sequer permitiu ao senhor Director-Geral da Saúde (Francisco George) explicar convenientemente o que se deveria fazer e cuidados a ter. Sim, que era ao Director-Geral de saúde quem competia definir uma estratégia. O show que essa senhora deu resultou nuns largos milhões de €€€ gastos e pagos pelo contribuinte. Mais uma pérola da governação do Partido Socialista, que só se enquadra neste artigo sobre ciência, (que outra coisa não é que um caso politico, passou-se isso no mundo inteiro, todos os países fizeram o mesmo que Portugal? evidentemente que não, e o professor Fiolhais sabe-o) não fora a ira do professor Fíolhais pela Coligação actual que não lhe permite ajuizar correctamente a desgovernação Socialista. É como é.
A destruição da plantação de milho transgénico foi em Silves, Algarve, não no Alentejo.
Olá, gostaria de citar esse artigo, porém não tenho certeza quanto ao nome do autor. Poderia me informar? Desde já, agradeço.
O autor sou eu Carlos Fiolhais
Enviar um comentário