Uma aluna da Faculdade de Letras de Coimbra, Andreia Martins, procurou-me para gravar uma entrevista, que iria aproveitar como trabalho de uma sua cadeira. Deixo aqui o resultado, que acabo de receber:
Quais os momentos-chave no seu percurso de cientista?
- Bem, um momento-chave é sempre o momento
do começo. Quando é que uma pessoa fica cientista? Quando aprende a fazer
ciência de modo independente, um processo a que se chama doutoramento. Quando
uma pessoa acaba o doutoramento, entrega uma tese, o que significa que acabou de resolver um certo problema cientifico, após três ou
quatro anos, no meu caso três anos e meio, de trabalho com alguma ajuda de um
supervisor. A partir daí o cientista ganha alguma liberdade, já pode atacar
outros problemas sozinho. Eu completei a minha tese de doutoramento na Alemanha
aos 26 anos, sobre um problema de física nuclear, tendo nessa altura passado de
aprendiz de cientista a ser cientista.
Mais tarde, houve um outro momento
que posso chamar chave, quando mudei de assunto. Deixei de fazer física nuclear
para passar a fazer física de matéria condensada, parte da física que estuda
sólidos e líquidos. Matéria condensada é a matéria ordenada a uma escala muito
maior do que a dos núcleos atómicos. Fiz uma estada sabática nos Estados
Unidos, isto é, um ano inteiro sem dar aulas, dedicado em pleno à investigação.
Era uma altura em que era bastante mais novo
e, portanto, mais criativo. Comecei um trabalho com colegas norte-americanos
que teve muito impacto, recebeu muitas citações e ainda hoje recebe, tem cerca
de 11 mil citações e continua a ter. Será muito difícil voltar a fazer uma
coisa com esse impacto: isso significa que houve numerosos grupos que acharam útil
aquele paper. Este descrevia uma nova
fórmula para a ligação entre os átomos, o que é útil para fazer a modelação
computacional da matéria.
Em que instituição alemã fez o seu doutoramento?
- Na Universidade Goethe, um poeta e romancista alemão,
muito considerado na Alemanha e no mundo. Ele nasceu em Frankfurt-Main e, na
Alemanha, é uma espécie de Camões. Tive, portanto, de aprender alemão. Se um
alemão viesse para Portugal para uma Universidade que se chamasse Camões teria
também que aprender português. A Universidade fica quase no centro de
Frankfurt, que por sua vez fica no centro da Alemanha. Na altura era ainda a
República Federal Alemã, separada da Republica Democrática. A unificação foi
muito depois do meu doutoramento. Defendi a tese no Natal de 1982. Foi uma
experiência muito rica porque vivi numa cidade alemã de grande dimensão, com
800 mil habitantes ou mais, o centro económico, comercial e de transportes da
Alemanha, que tem também à volta alguma indústria. O Instituto de Física Teórica era perto da bem
conhecida a feira de Frankfurt. A Física de Frankfurt é também muito conhecido, porque alguns dos
grandes físicos no tempo entre as duas Grandes Guerras, numa época em que a
Física se desenvolveu muito, estiveram lá. É um sítio onde se respira a história
da física moderna.
Sobre que tema trabalhou no doutoramento?
- Na altura interessou-me a
física dos núcleos atómicos. A matéria é feita de átomos e no centro de cada
átomo há um concentrado, o núcleo atómico, onde reside praticamente toda a
massa do átomo e toda a carga positiva. À volta estão os electrões, que têm
carga negativa. O problema que estudei teoricamente foi a cisão nuclear,
processo que está subjacente à produção de energia nuclear. Tentei partir o
átomo de urânio em duas partes usando um modelo que pode ser visto como uma
gota carregada que se divide, resistindo a dividir-se. Por um lado a carga
positiva leva à separação, mas há forças fortes que unem as partículas do núcleo
- os protões e neutrões. Estudei o percurso que o núcleo faz ao partir-se:
abre-se um pescoço e os dois lados acabam por se separar. A minha tese de
doutoramento foi precisamente sobre a resistência à quebra do núcleo, usando a
Teoria Quântica.
E em Coimbra continuou a investigação que desenvolveu na Alemanha?
- Sim, de certo modo. Continuei a
usar os mesmos métodos da Teoria Quântica, embora em Coimbra não tivesse as mesmas
facilidades do ponto de vista computacional. Tinha um grande computador na
Alemanha (o meu trabalho era computacional), muito maior do que aquele que aqui
existia na altura. Estávamos na época em que para fazer computação era preciso
um grande computador, não havia ainda computadores pessoais. E os
investigadores tinham de submeter os
seus programas ao grande computador. Curiosamente regressei em 1982 e no ano
seguinte apareceram cá os computadores pessoais. Começámos a comprar os
primeiros computadores pessoais, a instalá-los, e a tentar ligar vários
computadores para fazer um computador maior. Os problemas que aqui podia
resolver tinham de ser menores do que os que podia resolver na Alemanha. A
evolução da tecnologia favoreceu-nos porque pudemos graças a ela atacar com
computadores mais pequenos problemas maiores. Por incrível que pareça, houve
uma época em que não existiam quaisquer computadores pessoais! Nas secretárias
ninguém tinha um computador à frente, nem portáteis nem coisa nenhuma.
Em 1986 houve um acontecimento que teve
impacto no meu domínio de trabalho que
foi o desastre de Chernobyl, na Ucrânia. Foi um erro humano que acabou por
afectar muito o modo como a energia nuclear era vista. Alguns programas de
física nuclear foram afectados. Sem deixar de trabalhar na Teoria Quântica e de
usar métodos computacionais, passei a dedicar-me a outro tipo de problemas, questões
de matéria condensada. A uma escala um milhão de vezes maior do que a dos
núcleos atómicos a teoria era a mesma. Usei os métodos que tinha aprendido
sobre cisão nuclear para estudar moléculas carregadas, moléculas que se partiam
com a ajuda de um laser. Tudo isto teoricamente não há que ter medo… Já não era
um neutrão a entrar para dentro de um núcleo atómico, era luz que desmanchava
uma molécula. A questão era: Em que pedaços se desmancha? A lição é que, se uma
pessoa dominar bem uma metodologia, os objectos aos quais a aplica podem ser
variados.
Acha que o mercado carece de um livro de História da Ciência que aborde grandes vultos como Copérnico, galileu, Newton e Einstein?
- As pessoas precisam de livros,
precisam de informação reunida de um modo ordenado e coerente. Não precisam só
de um, precisam de vários, há livros que poderão conter uma apresentação para
um público mais académico e livros que poderão ser um digest, apresentando o
essencial numa linguagem acessível a qualquer leitor minimamente culto. E entre
um nível muito especializado e um nível muito geral há toda uma gradação de
obras. Se o mercado em história da ciência está preenchido? Não! Estão sempre a
surgir novos livros, há e haverá sempre novas maneiras de ver a história. Em Portugal, há um livro com as obras essenciais de Copérnico, Galileu, Newton e Einstein. Reforço uma ideia que julgo estar na sua pergunta, que é a relevância da História.
De facto, a Física tal como a ciência em geral têm um percurso histórico
embora, por vezes, os estudantes não se apercebam de que há todo um processo de
construção, de acumulação de conhecimentos. Por vezes estão preocupados apenas
com os resultados mais recentes sem repararem que o trabalho mais recente só é
possível porque houve trabalhos anteriores. A História da Ciência mostra que as
descobertas são feitas não apenas por grandes nomes mas por muitas outras
pessoas. A ciência precisa de heróis, tal como qualquer outra actividade. A
História da Ciência tem tendência a sublinhar o papel dos heróis, mas a ciência
é feita por muita gente sem cujo trabalho não poderiam existir os grandes
avanços.
Em português existem alguns bons livros de
história da ciência. Se existissem mais era melhor? Sim, é melhor haver escolhas.
Quando se vai comprar peixe ao mercado é bom ter várias qualidades e não ser
obrigado a comer só carapau… É bom que esse mercado seja alargado. Quando
estive na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra interessei-me por
História e reparei que a História da Ciência em Portugal, apesar de ter alguns períodos
muito ricos, períodos de luz (separados por períodos de sombra, claro), não era
suficientemente conhecida. Há numerosos trabalhos académicos mas a História da Ciência em Portugal não é ainda
conhecida do público geral. Então decidi escrever um ensaio de divulgação
intitulado História da Ciência em
Portugal, que está disponível. O curioso é que esse título não existia,
pelo que é um livro que fazia falta, julgo eu… Mas fazem falta mais livros, pois
há pontos de vista diferentes. Há várias interpretações possíveis, podem apresentar-se panoramas diversos da História da Ciência.
Na sua perspectiva, qual é a diferença entre Ciência e Cultura
Científica?
- A relação entre ciência e
sociedade chama-se cultura científica. Tem a ver com a percepção pública da
ciência, a imagem que a sociedade faz da ciência. O público tem uma imagem da
ciência que nem sempre é fiel. Por exemplo, ciência é uma coisa e tecnologia é
outra, embora o público menos informado pense que a ciência se resume às suas
aplicações, como se a tecnologia aparecesse vinda do nada, sem o conhecimento
cientifico que lhe está subjacente. Já houve um tempo em que isso aconteceu, em
que se construíam geringonças por tentativa e erro, mas hoje tal já não
acontece. Hoje, para fazer qualquer coisa verdadeiramente inovadora, é preciso
ciência avançada. As pessoas usam telemóveis, televisões, automóveis, sei lá
(pausa), e nem imaginam a ciência lá dentro.
É, portanto, algo diferente a
História da Ciência e a História da Cultura Científica, embora as duas estejam
relacionadas. A História da Cultura Cientifica está muito menos estudada e
apresentada. Não há entre nós muitas obras que mostrem como a sociedade foi
recebendo a ciência e tecnologia, como é que a ciência foi sendo vista, por
vezes favoravelmente, e outras vezes com desconfiança. Um colega meu do Porto
escreveu um livro sobre a História da Cultura Científica em Portugal, uma história
que tem a ver com as mentalidades, a cultura, a política. Para escrever sobre
Cultura Científica tem de se ter conhecimento não só da ciência como da
sociedade em geral, da organização da sociedade, dos movimentos de opinião, dos
meios de comunicação social. Como é que a sociedade se apercebe da ciência? Através
dos media, dos museus, de contactos
directos com os cientistas e suas instituições, com jardins zoológicos, parques
naturais, aquários, etc. Há ciência por todo o lado e a Cultura Científica deve
revelar isso. A Cultura científica consiste em ver ciência em todo o lado.
Considera a rádio e a televisão como veículos privilegiados da difusão
das inovações científicas e tecnológicas?
- Sim. Para haver Cultura
Científica é preciso que a população esteja em contacto com a ciência, o que
significa com os cientistas. A população apercebe-se da ciência logo na escola,
mas nós sabemos que, ao longo da vida, a maior parte do contacto que ela tem
com a ciência é através dos media, dos jornais, da rádio e da televisão. Em
Portugal a televisão tem um papel determinante, mas a rádio é também relevante. Modernamente há a internet. A cada dia que passa a diferença
entre televisão e internet é cada vez menor, uma pessoa vê televisão na
internet e vê internet na televisão. Todos esses meios são essenciais à
comunicação da Ciência. Se perguntar a alguém de onde recebe a maior parte da
informação científica, ouvirá como resposta que vem dos media, designadamente da televisão. Não dirá que aprendeu na
escola, mas sim que viu na televisão. De facto, vem dos dois lados. Por exemplo
parte da nossa ideia de um átomo vem da escola e outra parte dos media. Os jornalistas estão na charneira
entre os cientistas e o público em geral. Os cientistas podem escrever para os
jornais mas aos jornalistas cabe um papel insubstituível. Por vezes os
cientistas não têm capacidade de transmitir o essencial sobre um assunto de uma
forma sedutora. Os jornalistas sabem fazer isso, através do modo como constroem
as frases, os títulos, as imagens, etc. São especialistas em prender a atenção
dos leitores, dos ouvintes ou dos telespectadores.
Acha que a Banda Desenhada (BD) pode ser um veículo eficaz na
transmissão da Cultura Científica para todas as idades?
- Podia ser e é! Há BDs que
comunicam ciência. A chamada 9.ª Arte, a BD pode ser aproveitada para
transmitir ciência. Tal não quer dizer que todas as BD tenham de ser educativos,
mas algumas são-no. E há bons exemplos. Aqui em Coimbra o Gabinete de Física
Experimental da Universidade de Coimbra, que pertence ao Museu da Ciência, foi
tema de uma BD de um autor belga, com o título O Segredo de Coimbra. É uma história que se passa num ambiente histórico
de ciência e que divulga o nosso património científico. Ainda em Coimbra, há um
exemplo mais recente de uma BD que procurou divulgar as células estaminais. O
Centro de Neurociências da Universidade de Coimbra desafiou um desenhador e o
resultado teve impacto através da divulgar os seus trabalhos, por ser uma forma
que chega a largas faixas de público, não apenas o público juvenil. A BD é um
género para todos, não apenas para os jovens. Há BDs só para adultos… (risos).
Os Centros Ciência Viva estão a cumprir a sua missão de sensibilizar os
mais jovens para a ciência?
-Sim, estão! É uma característica
de Portugal ter uma rede espalhada por todo o território nacional, continente e
ilhas, de centros, chamados Ciência Viva, uma marca instituída pelo ministro
José Mariano Gago em 1996. Ele achou que devia haver uma agência nacional para
a promoção da cultura científica e tecnológica, a que chamou Ciência Viva. Essa
agência tem apoiado os “postos” de cultura científica que são os centros de
Ciência Viva. Aqui em Coimbra existe o Exploratório Infante D. Henrique e o
Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, que dirijo, que é
diferente dos outros: é um centro de recursos, uma biblioteca moderna, uma
biblioteca multimédia, que coloca à disposição dos interessados livros,
revistas, CD, vídeos, etc. Organizamos sessões com autores, leitores e todos os
interessados pela cultura científica. Os Centros Ciência Viva formam uma rede
por onde têm passado muitos jovens e não só. Portugal é conhecido no mundo por
albergar esta rede de centros. Podemos ir à Fábrica Ciência Viva de Aveiro, aos
Centros Ciência Viva de Bragança, de Vila do Conde, de Proença-a-Nova, do
Alviela, etc. Em Lisboa encontramos o maior de todos, o Pavilhão do
Conhecimento, num edifício que ficou da Expo 98 ao lado do Oceanário, onde há
sempre exposições muito interessantes. Perto de Lisboa há um centro em Sintra.
Depois há outros a Sul, quer no Alentejo, no Lousal e Estremoz, quer no
Algarve, em Lagos, Tavira e Faro.
Algum destes Centros se destaca no panorama português?
- Bem o maior é o Pavilhão do
Conhecimento em Lisboa, é aquele que tem mais actividades e mais público. Tem
feito exposições com outros centros estrangeiros, como La Villette em Paris, ou
o Eureka em Helsínquia. O Pavilhão do Conhecimento tem um projecto muito
interessante que tenho acompanhado de perto, que é uma escola do 1.º ciclo,
onde os alunos de várias escolas de Lisboa passam vários dias. Os alunos têm a
sua escola e vão durante uma parte do ano lectivo à Escola Ciência Viva. O
ambiente em redor é lúdico porque tem as exposições onde as crianças podem
brincar. Em breve vou lá fazer uma apresentação sobre a luz, estamos no Ano
Internacional da Luz. O projecto da Escola Ciência VIva mostra que um museu ou
um centro de ciência podem ser também uma escola. Desfaz-se a distinção entre o
ensino informal e o formal.
E no estrangeiro? Conhece algum Centro de Ciência Viva que considere excepcional?
- Sim, historicamente há um muito
importante que é o Palais de la
Découverte, em Paris, que foi o primeiro centro interactivo e que ainda
hoje funciona. Mas destaco outro mais recente, o Exploratorium de São Francisco, uma
ideia do físico Frank Oppenheimer, que é de facto extraordinário. Já não é um Palácio como em
Paris, mas sim uma espécie de hangar, dividido pela luz, onde se podem fazer
experiências interactivas. As experiências são, de facto, surpreendentes,
porque há interactividade: por exemplo acende-se uma árvore batendo palmas. Por
vezes são coisas simples, mas é uma viagem maravilhosa ao mundo da ciência.
Enquanto Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (UC),
fez uma grande esforço para divulgar ao mundo o espólio bibliográfico da UC, em
particular da Biblioteca Joanina. Que resultou desse esforço? Tem continuado a
defender este património?
- Sim, fiz um esforço e esse
esforço continua a ser feito. Aliás a Biblioteca Joanina tem continuado a
merecer referências e elogios, é uma das Bibliotecas mais belas do mundo, eu
não me canso de lá ir e espero que ninguém se canse de lá ir. Há sempre coisas
novas a ver, o nosso olhar fica sempre inebriado ao entrar nessa cápsula do
tempo, do século XVIII. É um local inspirador, um local onde o visitante
respira história. Tentei divulgar a Biblioteca
aumentando a sua visibilidade dos media,
mas também colocando os conteúdos à disposição das pessoas. Chamámos Alma Mater ao repositório digital de
alguns dos livros da Biblioteca na íntegra, que pode ser consultado em qualquer
parte do mundo. Também fizemos um sítio multimedia da Biblioteca Joanina. Esse
trabalho continua a ser feito. O que se pode fazer mais? Bem, alargar o
repositório, tornando mais obras da Joanina acessíveis em todo o mundo. Mostrar
que a Joanina é não só um sítio com enorme riqueza arquitectónica, mas também
com uma extraordinária riqueza bibliográfica.
Ainda recentemente fui co-autor
de um livro sobre a Biblioteca Joanina, com texto meu e fotografias do meu
colega Paulo Mendes, saído na Imprensa da Universidade de Coimbra. É um livro
que permite ao visitante levar a Biblioteca para casa. Revela pormenores nos
quais quem visita a Biblioteca pode não reparar, pormenores dos tectos, das
decorações das estantes, das mesas e dos objectos das mesas, etc. No tecto de
cada sala da Joanina está a figura da Sabedoria, uma bela senhora, e o nosso
livro mostra imagens bastante próximas da Sabedoria, permite-nos aproximar
dela…
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