quarta-feira, 10 de junho de 2015

ENTREVISTA A CARLOS FIOLHAIS POR ANDREIA MARTINS

Uma aluna da Faculdade de Letras de Coimbra, Andreia Martins, procurou-me para gravar uma entrevista, que iria aproveitar como trabalho de uma sua cadeira. Deixo aqui o resultado, que acabo de receber:

Quais os momentos-chave no seu percurso de cientista?
 - Bem, um momento-chave é sempre o momento do começo. Quando é que uma pessoa fica cientista? Quando aprende a fazer ciência de modo independente, um processo a que se chama doutoramento. Quando uma pessoa acaba o doutoramento, entrega uma tese, o que  significa que acabou de resolver  um certo problema cientifico, após três ou quatro anos, no meu caso três anos e meio, de trabalho com alguma ajuda de um supervisor. A partir daí o cientista ganha alguma liberdade, já pode atacar outros problemas sozinho. Eu completei a minha tese de doutoramento na Alemanha aos 26 anos, sobre um problema de física nuclear, tendo nessa altura passado de aprendiz de cientista a ser cientista.

Mais tarde, houve um outro momento que posso chamar chave, quando mudei de assunto. Deixei de fazer física nuclear para passar a fazer física de matéria condensada, parte da física que estuda sólidos e líquidos. Matéria condensada é a matéria ordenada a uma escala muito maior do que a dos núcleos atómicos. Fiz uma estada sabática nos Estados Unidos, isto é, um ano inteiro sem dar aulas, dedicado em pleno à investigação. Era uma altura em que era  bastante mais novo e, portanto, mais criativo. Comecei um trabalho com colegas norte-americanos que teve muito impacto, recebeu muitas citações e ainda hoje recebe, tem cerca de 11 mil citações e continua a ter. Será muito difícil voltar a fazer uma coisa com esse impacto: isso significa que houve numerosos grupos que acharam útil aquele paper. Este descrevia uma nova fórmula para a ligação entre os átomos, o que é útil para fazer a modelação computacional da matéria.

Em que instituição alemã fez o seu doutoramento?
- Na Universidade Goethe, um poeta e romancista alemão, muito considerado na Alemanha e no mundo. Ele nasceu em Frankfurt-Main e, na Alemanha, é uma espécie de Camões. Tive, portanto, de aprender alemão. Se um alemão viesse para Portugal para uma Universidade que se chamasse Camões teria também que aprender português. A Universidade fica quase no centro de Frankfurt, que por sua vez fica no centro da Alemanha. Na altura era ainda a República Federal Alemã, separada da Republica Democrática. A unificação foi muito depois do meu doutoramento. Defendi a tese no Natal de 1982. Foi uma experiência muito rica porque vivi numa cidade alemã de grande dimensão, com 800 mil habitantes ou mais, o centro económico, comercial e de transportes da Alemanha, que tem também à volta alguma indústria.  O Instituto de Física Teórica era perto da bem conhecida a feira de Frankfurt. A Física de Frankfurt  é também muito conhecido, porque alguns dos grandes físicos no tempo entre as duas Grandes Guerras, numa época em que a Física se desenvolveu muito, estiveram lá. É um sítio onde se respira a história da física moderna.

Sobre que tema trabalhou no doutoramento?
- Na altura interessou-me a física dos núcleos atómicos. A matéria é feita de átomos e no centro de cada átomo há um concentrado, o núcleo atómico, onde reside praticamente toda a massa do átomo e toda a carga positiva. À volta estão os electrões, que têm carga negativa. O problema que estudei teoricamente foi a cisão nuclear, processo que está subjacente à produção de energia nuclear. Tentei partir o átomo de urânio em duas partes usando um modelo que pode ser visto como uma gota carregada que se divide, resistindo a dividir-se. Por um lado a carga positiva leva à separação, mas há forças fortes que unem as partículas do núcleo - os protões e neutrões. Estudei o percurso que o núcleo faz ao partir-se: abre-se um pescoço e os dois lados acabam por se separar. A minha tese de doutoramento foi precisamente sobre a resistência à quebra do núcleo, usando a Teoria Quântica.

E em Coimbra continuou a investigação que desenvolveu na Alemanha?
- Sim, de certo modo. Continuei a usar os mesmos métodos da Teoria Quântica, embora em Coimbra não tivesse as mesmas facilidades do ponto de vista computacional. Tinha um grande computador na Alemanha (o meu trabalho era computacional), muito maior do que aquele que aqui existia na altura. Estávamos na época em que para fazer computação era preciso um grande computador, não havia ainda computadores pessoais. E os investigadores tinham de  submeter os seus programas ao grande computador. Curiosamente regressei em 1982 e no ano seguinte apareceram cá os computadores pessoais. Começámos a comprar os primeiros computadores pessoais, a instalá-los, e a tentar ligar vários computadores para fazer um computador maior. Os problemas que aqui podia resolver tinham de ser menores do que os que podia resolver na Alemanha. A evolução da tecnologia favoreceu-nos porque pudemos graças a ela atacar com computadores mais pequenos problemas maiores. Por incrível que pareça, houve uma época em que não existiam quaisquer computadores pessoais! Nas secretárias ninguém tinha um computador à frente, nem portáteis nem coisa nenhuma.

Em 1986 houve um acontecimento que teve impacto  no meu domínio de trabalho que foi o desastre de Chernobyl, na Ucrânia. Foi um erro humano que acabou por afectar muito o modo como a energia nuclear era vista. Alguns programas de física nuclear foram afectados. Sem deixar de trabalhar na Teoria Quântica e de usar métodos computacionais, passei a dedicar-me a outro tipo de problemas, questões de matéria condensada. A uma escala um milhão de vezes maior do que a dos núcleos atómicos a teoria era a mesma. Usei os métodos que tinha aprendido sobre cisão nuclear para estudar moléculas carregadas, moléculas que se partiam com a ajuda de um laser. Tudo isto teoricamente não há que ter medo… Já não era um neutrão a entrar para dentro de um núcleo atómico, era luz que desmanchava uma molécula. A questão era: Em que pedaços se desmancha? A lição é que, se uma pessoa dominar bem uma metodologia, os objectos aos quais a aplica podem ser variados.

Acha que o mercado carece de um livro de História da Ciência que aborde grandes vultos como Copérnico, galileu, Newton e Einstein?
- As pessoas precisam de livros, precisam de informação reunida de um modo ordenado e coerente. Não precisam só de um, precisam de vários, há livros que poderão conter uma apresentação para um público mais académico e livros que poderão ser um digest,  apresentando o essencial numa linguagem acessível a qualquer leitor minimamente culto. E entre um nível muito especializado e um nível muito geral há toda uma gradação de obras. Se o mercado em história da ciência está preenchido? Não! Estão sempre a surgir novos livros, há e haverá sempre novas maneiras de ver a história. Em Portugal, há um livro com as obras essenciais de Copérnico, Galileu, Newton e Einstein. Reforço uma ideia que julgo estar na sua pergunta, que é a relevância da História. De facto, a Física tal como a ciência em geral têm um percurso histórico embora, por vezes, os estudantes não se apercebam de que há todo um processo de construção, de acumulação de conhecimentos. Por vezes estão preocupados apenas com os resultados mais recentes sem repararem que o trabalho mais recente só é possível porque houve trabalhos anteriores. A História da Ciência mostra que as descobertas são feitas não apenas por grandes nomes mas por muitas outras pessoas. A ciência precisa de heróis, tal como qualquer outra actividade. A História da Ciência tem tendência a sublinhar o papel dos heróis, mas a ciência é feita por muita gente sem cujo trabalho não poderiam existir os grandes avanços.

 Em português existem alguns bons livros de história da ciência. Se existissem mais era melhor? Sim, é melhor haver escolhas. Quando se vai comprar peixe ao mercado é bom ter várias qualidades e não ser obrigado a comer só carapau… É bom que esse mercado seja alargado. Quando estive na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra interessei-me por História e reparei que a História da Ciência em Portugal, apesar de ter alguns períodos muito ricos, períodos de luz (separados por períodos de sombra, claro), não era suficientemente conhecida. Há numerosos trabalhos académicos  mas a História da Ciência em Portugal não é ainda conhecida do público geral. Então decidi escrever um ensaio de divulgação intitulado História da Ciência em Portugal, que está disponível. O curioso é que esse título não existia, pelo que é um livro que fazia falta, julgo eu… Mas fazem falta mais livros, pois há pontos de vista diferentes. Há várias interpretações possíveis, podem apresentar-se panoramas diversos  da História da Ciência.

Na sua perspectiva, qual é a diferença entre Ciência e Cultura Científica?
- A relação entre ciência e sociedade chama-se cultura científica. Tem a ver com a percepção pública da ciência, a imagem que a sociedade faz da ciência. O público tem uma imagem da ciência que nem sempre é fiel. Por exemplo, ciência é uma coisa e tecnologia é outra, embora o público menos informado pense que a ciência se resume às suas aplicações, como se a tecnologia aparecesse vinda do nada, sem o conhecimento cientifico que lhe está subjacente. Já houve um tempo em que isso aconteceu, em que se construíam geringonças por tentativa e erro, mas hoje tal já não acontece. Hoje, para fazer qualquer coisa verdadeiramente inovadora, é preciso ciência avançada. As pessoas usam telemóveis, televisões, automóveis, sei lá (pausa), e nem imaginam a ciência lá dentro.

É, portanto, algo diferente a História da Ciência e a História da Cultura Científica, embora as duas estejam relacionadas. A História da Cultura Cientifica está muito menos estudada e apresentada. Não há entre nós muitas obras que mostrem como a sociedade foi recebendo a ciência e tecnologia, como é que a ciência foi sendo vista, por vezes favoravelmente, e outras vezes com desconfiança. Um colega meu do Porto escreveu um livro sobre a História da Cultura Científica em Portugal, uma história que tem a ver com as mentalidades, a cultura, a política. Para escrever sobre Cultura Científica tem de se ter conhecimento não só da ciência como da sociedade em geral, da organização da sociedade, dos movimentos de opinião, dos meios de comunicação social. Como é que a sociedade se apercebe da ciência? Através dos media, dos museus, de contactos directos com os cientistas e suas instituições, com jardins zoológicos, parques naturais, aquários, etc. Há ciência por todo o lado e a Cultura Científica deve revelar isso. A Cultura científica consiste em ver ciência em todo o lado.

Considera a rádio e a televisão como veículos privilegiados da difusão das inovações científicas e tecnológicas?
- Sim. Para haver Cultura Científica é preciso que a população esteja em contacto com a ciência, o que significa com os cientistas. A população apercebe-se da ciência logo na escola, mas nós sabemos que, ao longo da vida, a maior parte do contacto que ela tem com a ciência é através dos media, dos jornais, da rádio e da televisão. Em Portugal a televisão tem um papel determinante, mas a rádio é também relevante. Modernamente há a internet. A cada dia que passa a diferença entre televisão e internet é cada vez menor, uma pessoa vê televisão na internet e vê internet na televisão. Todos esses meios são essenciais à comunicação da Ciência. Se perguntar a alguém de onde recebe a maior parte da informação científica, ouvirá como resposta que vem dos media, designadamente da televisão. Não dirá que aprendeu na escola, mas sim que viu na televisão. De facto, vem dos dois lados. Por exemplo parte da nossa ideia de um átomo vem da escola e outra parte dos media. Os jornalistas estão na charneira entre os cientistas e o público em geral. Os cientistas podem escrever para os jornais mas aos jornalistas cabe um papel insubstituível. Por vezes os cientistas não têm capacidade de transmitir o essencial sobre um assunto de uma forma sedutora. Os jornalistas sabem fazer isso, através do modo como constroem as frases, os títulos, as imagens, etc. São especialistas em prender a atenção dos leitores, dos ouvintes ou dos telespectadores.

Acha que a Banda Desenhada (BD) pode ser um veículo eficaz na transmissão da Cultura Científica para todas as idades?
- Podia ser e é! Há BDs que comunicam ciência. A chamada 9.ª Arte, a BD pode ser aproveitada para transmitir ciência. Tal não quer dizer que todas as BD tenham de ser educativos, mas algumas são-no. E há bons exemplos. Aqui em Coimbra o Gabinete de Física Experimental da Universidade de Coimbra, que pertence ao Museu da Ciência, foi tema de uma BD de um autor belga, com o título O Segredo de Coimbra. É uma história que se passa num ambiente histórico de ciência e que divulga o nosso património científico. Ainda em Coimbra, há um exemplo mais recente de uma BD que procurou divulgar as células estaminais. O Centro de Neurociências da Universidade de Coimbra desafiou um desenhador e o resultado teve impacto através da divulgar os seus trabalhos, por ser uma forma que chega a largas faixas de público, não apenas o público juvenil. A BD é um género para todos, não apenas para os jovens. Há BDs só para adultos… (risos).

Os Centros Ciência Viva estão a cumprir a sua missão de sensibilizar os mais jovens para a ciência?
-Sim, estão! É uma característica de Portugal ter uma rede espalhada por todo o território nacional, continente e ilhas, de centros, chamados Ciência Viva, uma marca instituída pelo ministro José Mariano Gago em 1996. Ele achou que devia haver uma agência nacional para a promoção da cultura científica e tecnológica, a que chamou Ciência Viva. Essa agência tem apoiado os “postos” de cultura científica que são os centros de Ciência Viva. Aqui em Coimbra existe o Exploratório Infante D. Henrique e o Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, que dirijo, que é diferente dos outros: é um centro de recursos, uma biblioteca moderna, uma biblioteca multimédia, que coloca à disposição dos interessados livros, revistas, CD, vídeos, etc. Organizamos sessões com autores, leitores e todos os interessados pela cultura científica. Os Centros Ciência Viva formam uma rede por onde têm passado muitos jovens e não só. Portugal é conhecido no mundo por albergar esta rede de centros. Podemos ir à Fábrica Ciência Viva de Aveiro, aos Centros Ciência Viva de Bragança, de Vila do Conde, de Proença-a-Nova, do Alviela, etc. Em Lisboa encontramos o maior de todos, o Pavilhão do Conhecimento, num edifício que ficou da Expo 98 ao lado do Oceanário, onde há sempre exposições muito interessantes. Perto de Lisboa há um centro em Sintra. Depois há outros a Sul, quer no Alentejo, no Lousal e Estremoz, quer no Algarve, em Lagos, Tavira e Faro.

Algum destes Centros se destaca no panorama português?
- Bem o maior é o Pavilhão do Conhecimento em Lisboa, é aquele que tem mais actividades e mais público. Tem feito exposições com outros centros estrangeiros, como La Villette em Paris, ou o Eureka em Helsínquia. O Pavilhão do Conhecimento tem um projecto muito interessante que tenho acompanhado de perto, que é uma escola do 1.º ciclo, onde os alunos de várias escolas de Lisboa passam vários dias. Os alunos têm a sua escola e vão durante uma parte do ano lectivo à Escola Ciência Viva. O ambiente em redor é lúdico porque tem as exposições onde as crianças podem brincar. Em breve vou lá fazer uma apresentação sobre a luz, estamos no Ano Internacional da Luz. O projecto da Escola Ciência VIva mostra que um museu ou um centro de ciência podem ser também uma escola. Desfaz-se a distinção entre o ensino informal e o formal.

E no estrangeiro? Conhece algum Centro de Ciência Viva que considere excepcional?
- Sim, historicamente há um muito importante que é o Palais de la Découverte, em Paris, que foi o primeiro centro interactivo e que ainda hoje funcionaMas destaco outro mais recente, o Exploratorium de São Francisco, uma ideia do físico Frank Oppenheimer, que é de facto  extraordinário. Já não é um Palácio como em Paris, mas sim uma espécie de hangar, dividido pela luz, onde se podem fazer experiências interactivas. As experiências são, de facto, surpreendentes, porque há interactividade: por exemplo acende-se uma árvore batendo palmas. Por vezes são coisas simples, mas é uma viagem maravilhosa ao mundo da ciência.

Enquanto Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (UC), fez uma grande esforço para divulgar ao mundo o espólio bibliográfico da UC, em particular da Biblioteca Joanina. Que resultou desse esforço? Tem continuado a defender este património?
- Sim, fiz um esforço e esse esforço continua a ser feito. Aliás a Biblioteca Joanina tem continuado a merecer referências e elogios, é uma das Bibliotecas mais belas do mundo, eu não me canso de lá ir e espero que ninguém se canse de lá ir. Há sempre coisas novas a ver, o nosso olhar fica sempre inebriado ao entrar nessa cápsula do tempo, do século XVIII. É um local inspirador, um local onde o visitante respira história. Tentei divulgar a Biblioteca aumentando a sua visibilidade dos media, mas também colocando os conteúdos à disposição das pessoas. Chamámos Alma Mater ao repositório digital de alguns dos livros da Biblioteca na íntegra, que pode ser consultado em qualquer parte do mundo. Também fizemos um sítio multimedia da Biblioteca Joanina. Esse trabalho continua a ser feito. O que se pode fazer mais? Bem, alargar o repositório, tornando mais obras da Joanina acessíveis em todo o mundo. Mostrar que a Joanina é não só um sítio com enorme riqueza arquitectónica, mas também com uma extraordinária riqueza bibliográfica.

Ainda recentemente fui co-autor de um livro sobre a Biblioteca Joanina, com texto meu e fotografias do meu colega Paulo Mendes, saído na Imprensa da Universidade de Coimbra. É um livro que permite ao visitante levar a Biblioteca para casa. Revela pormenores nos quais quem visita a Biblioteca pode não reparar, pormenores dos tectos, das decorações das estantes, das mesas e dos objectos das mesas, etc. No tecto de cada sala da Joanina está a figura da Sabedoria, uma bela senhora, e o nosso livro mostra imagens bastante próximas da Sabedoria, permite-nos aproximar dela…

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