Trancrevo a Introdução do livro "Os Marcianos somos nós" de Nuno Galopim, que acaba de sair na colecção Ciência Aberta na Gradiva:
Creio que o meu interesse por Marte terá começado com Carl Sagan. Num episódio da série Cosmos,
que ele concebeu e apresentou, a sua grande nave da imaginação caminhava sobre o Valles Marineris, ao som da suite Os Planetas, de Gustav Holst. Sagan dava então conta de uma história feita de ligações entre o mundo real que a ciência vai descobrindo e o mundo imaginário que há muito ali tínhamos sonhado (e continuamos a sonhar). Num episódio centrado no Planeta Vermelho, tanto evocava as observações de Percival Lowell no seu observatório em Flagstaff, no Arizona, ou nas (então) recentes revelações das duas sondas Viking, como lembrava as histórias de invasores criadas por H. G. Wells em A Guerra dos Mundos ou o mundo de aventuras tendo John Carter por protagonista, que Edgar Rice Burroughs inventara com cenário em Barsoom, o nome ficcionado que em 1912 deu ao quarto planeta do sistema solar, no qual falou, entre outros povos, de homens verdes, nascendo aí uma das mais célebres ideias da representação do que poderiam ser os marcianos, que assim quase usurparam uma cor de pele antes já referida entre gnomos e outros seres imaginários de histórias do folclore de várias culturas ocidentais (note‑se que a pele verde não seria nunca um exclusivo marciano e foi frequentemente atribuída pela literatura e cinema a outros povos alienígenas igualmente ficcionados).
Sagan sublinhava nesse episódio como tinham sido estas aventuras entre John Carter, a princesa Dejah Thoris e os gigantes e verdes tharks que o levaram a desenvolver um encanto especial por Marte, que acabaria por guiar boa parte do seu trabalho como astrofísico. Para contar a história de Marte é por isso importante juntar os factos que a ciência tem observado e interpretado não só às antigas mitologias mas também às numerosas histórias de ficção que, sobretudo a partir do século xix, usaram esse planeta para falar de lugares e seres exóticos, lançar utopias, temer invasores, respirar o fulgor das aventuras, acreditar na força da tecnologia que nos pode lá levar um dia (e mesmo permitir habitar a sua superfície) ou lançar o debate ético sobre se devemos ou não agir sobre o seu ambiente com vista à sua eventual adaptação às nossas exigências biológicas. No fundo, e como sempre em ficção científica, usámos Marte para falar de nós, do nosso mundo e dos nossos desejos e medos. Entre a literatura, o cinema e a música, inventámos, para além da ciência — mas sempre tendo em atenção a história das suas descobertas — um mundo que ainda não visitámos. Mas que nos habituámos assim a conhecer.
Ao longo destas páginas cruzamos as várias narrativas, notando como a ficção científica se foi sempre adaptando e reinventando à medida que a ciência trazia, primeiro, novas observações e, depois, conclusões baseadas nelas.
Não se trata de uma história da exploração científica e tecnológica de Marte. Nem de uma abordagem do foro da crítica literária à muita (e muitas vezes bem interessante) ficção científica que se foi escrevendo. Os filmes e discos que aqui se evocam juntam‑se aos livros escolhidos entre uma vasta literatura «marciana» e também aos dados colhidos pela ciência para, acima de tudo, assinalar como evoluiu a nossa representação de Marte e como fomos tomando este planeta como cenário para falar do que somos, do que nos seduz ou nos assusta e do que queremos ou não queremos ser.
Nuno Galopim
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