quarta-feira, 9 de julho de 2014

O PIOR DO CRATO


Meu artigo no Público de hoje:

Nunca pensei vir a escrever este título. Sei bem que não é original, pois várias vozes têm vindo a chamar a atenção para erros, cada vez piores, de Nuno Crato na gestão do Ministério da Educação e Ciência. O filósofo José Gil, por exemplo, declarou há pouco que “temos possivelmente, e vamos descobri-lo, um dos piores ministros da Educação, um homem por quem eu antes tinha uma certa simpatia, que está a continuar a obra de destruição do ensino”. Também eu simpatizei com Nuno Crato e com a sua ideia de “implosão” do Ministério da Educação. Não tendo ele implodido o Ministério, foi o Ministério que o implodiu a ele. É hoje um ministro desacreditado de um governo desacreditado. Com a obsessão do crédito da troika perdeu todo o crédito que nele tínhamos depositado. De facto, entre os inúmeros professores e pais que o levaram aos ombros a ministro, a desilusão é enorme. E também entre os eleitores, em geral: o desatino em crescendo das suas políticas valeu-lhe a transição do topo para o fundo da lista dos ministros mais estimados.

Mas agora há pior. Na semana passada, Crato, não contente com os cortes drásticos que efectuou nas bolsas de ciência, obrigando numerosos jovens a emigrar, resolveu liquidar de vez a ciência em Portugal. De um universo de 322 unidades de investigação, condenou à morte a curto prazo 154, cerca de metade. Destas, 83 tiveram Bom, num processo de avaliação que, na parte em que não é obscuro, está empestado de erros e omissões, e têm a morte anunciada. Terão um financiamento ridículo e ficarão impossibilitadas de obter recursos humanos ou equipamentos. Bom, numa escala que contempla ainda Muito Bom, Excelente e Excepcional, é péssimo. E 71 tiveram Razoável ou Insuficiente, o que significa a execução imediata. Foi tudo a eito: Matemática, Física, Engenharia, Sociologia, Filosofia, etc. As outras unidades (168) aguardam o seu destino: estão num limbo e poderão também ser condenadas. O número de investigadores já sentenciados à morte é de 5187 num total de 15444. Entre eles estão alguns dos melhores cientistas portugueses, nomeadamente Nuno Peres, do Centro de Física do Porto e Minho, e Mário Figueiredo, do Instituto de Telecomunicações, que acabam de ser distinguidos internacionalmente como as mentes mais brilhantes.

O ministro diz – quando diz alguma coisa, porque ficou embatucado quando uma jornalista lhe solicitou uma explicação – que não é nada com ele. Lava as mãos como Pilatos. E remete para os seus subalternos, em particular para a Fundação para a Ciência e Tecnologia - FCT. Esta já foi em tempos uma instituição em que os cientistas confiavam. Mas agora resolveu destruir um sistema de avaliação internacional, exigente e cuidadoso, que estava montado e tinha provas dadas, e experimentar outro, que se está a revelar frágil e tosco. Contratou, não se sabe como nem a que preço, a European Science Foundation - ESF, que está a desfazer a sua actividade em favor de uma nova organização, a Science Europe, e pediu-lhe uma avaliação à distância (isto é, sem ver nem falar com ninguém), com base apenas em papéis, entre os quais um estudo da produção científica. Os resultados são calamitosos para a reputação da ESF e, por salpico, para a FCT e para o ministro. Por um lado há muitos erros grosseiros, que só por si deviam ser suficientes para denunciar o contrato. Mas, por outro, mesmo desculpando o indesculpável, em muitas disciplinas não bate a bota com a perdigota: por muito criticável que seja o método da folha Excel, esperar-se-ia alguma correlação entre a produtividade científica e a nota dada. Não há, porém, quase nenhuma. O ministro podia ter poupado o erário público se, em vez de contratar avaliadores da ESF, tivesse comprado uma roleta. Fui ver quem eram os avaliadores da minha área. Verifiquei com espanto que esta nem sequer existia. A Física estava amalgamada com a Química e com a Matemática, sendo todas elas avaliadas por um painel constituído por 1 engenheiro, 3 físicos, 4 químicos e 3 matemáticos (sem nenhuma mulher, isto é, sem ninguém pragmático). Este painel é muito pior do que os três, um por disciplina, da última avaliação, que envolveu 15 matemáticos, 6 físicos e 7 químicos. Um dos ramos maiores da Física – a Física da Matéria Condensada – foi agora praticamente encerrado em Portugal por um painel que só tinha um físico desse ramo. A matéria passou de condensada a condenada! Dantes os avaliadores eram conhecidos e respeitados, hoje são desconhecidos. O resultado só podia ser o desastre que está à vista.

Este não é o Nuno Crato que eu conheci, amigo da educação e da ciência, mas sim um membro de um governo sem qualquer sentido da res publica. Passos Coelho, o ex-gestor da Tecnoforma que acha os cientistas improdutivos, quer tirar da ciência para dar às empresas. E, nesse processo, não se importa de reforçar a emigração, enviando para fora o que resta da inteligência e da esperança nacionais.

18 comentários:

Fernando Dias disse...

Também eu fiquei há muito desiludido com Crato. Subscrevo a cem por cento este artigo do Carlos Fiolhais. Mas o fenómeno Crato não é único, sobretudo quando o problema a resolver é grave, e as expectativas na aposta são grandes. O caso internacional mais conhecido chama-se Obama. O Crato é o nosso Obama.

António Pedro Pereira disse...

Prof. Fiolhais:
O senhor tem responsabilidades morais no que está a suceder.
O senhor foi um dos que embandeiraram em arco com as ideias feitas à pressa (mas populares, melhor, tornadas populares pela enorme propaganda nos «media») que Nuno Crato espalhou aos sete ventos sobre Educação, acompanhados pelo Papa Anti-eduquês Guilherme Valente.
Qual guru, declarou que se passou a interessar por Educação porque leu um livro (declarações a Francisco José Viegas no programa na televisão «Escrita em dia», se a memória não me atraiçoa. Era um programa passado na biblioteca do entrevistado). Aí Crato mostrou o livro que o transformou em especialista instantâneo.
Enquanto dava bater na alma penada do Sócrates e seu governo, foi a festança.
Agora veio a dolorosa (a conta).
Aguentem-se.
O pior é o país, a Educação e a Ciência (de que Crato não é especialista, pois não quer saber dela para nada).
De Educação sim, por isso corta o orçamento do Ensino Público ao mesmo tempo que aumenta os apoios ao Ensino Privado, mesmo em localidades onde a rede pública cobre as necessidades: Caldas da Rainha, Coimbra, etc.

Anónimo disse...

... sem nenhuma mulher, isto é, sem ninguém pragmático ... ??

augusto kuettner de magalhaes disse...

Foi uma pena, nenhum neste Governo escapa, nem Este Senhior e já nem o da Saúde...zero, zero......

E o da Economia bem tentou mas já está na prateleira, este nunca o Alvaro....

Anónimo disse...

Prof. Fiolhais,
Concordo com tudo, excepto quando diz que o sistema de avaliação anterior tinha provas dadas.
Todos sabemos como funcionou a avaliação na última vez. Houve membros de painéis que eram consultores de centros avaliados, houve conversas de corredor e as avaliações eram dois ou três parágrafos genéricos.
Também nessa altura houve centros condenados durante os últimos sete anos. A física sempre foi privilegiada pelo ministro Mariano Gago, que foi o primeiro a eleger a contagem de citações como método para avaliar ciência.
Resumindo: são todos responsáveis por uma política devastadora para a ciência. Mas no seu caso só lhe tocou agora a si. A outros já nos tocou há vários anos.

Anónimo disse...

Independentemente da falta de mérito e outras questões particulares desta avaliação, o processo está todo inquinado pois esquece-se de um parâmetro importantíssimo! O financiamento actual. Aposto que, se introduzíssemos os montantes recebidos por cada unidade nesta avaliação os resultados seriam muito diferentes! É muito fácil, para uma unidade considerada “excelente” que já recebe (quando comparada com unidades “muito bom”) cerca de 10 vezes mais financiamento POR INVESTIGADOR ter uma boa avaliação. Com esta assimetria gritante (e actual) é muito fácil a uma unidade produzir ciência de qualidade. Pudera: pode adquirir bons equipamentos, contratar técnicos, participar em colaborações internacionais, coisas que uma unidade com “muito bom” tem muitas dificuldades em fazer por via do seu financiamento mais reduzido. Os moldes em que esta nova avaliação foi montada vão reforçar ainda mais estas assimetrias (note-se que está previsto um financiamento que pode ser “ilimitado” (?) para unidades consideradas excelentes) tirando as verbas aos grupos que anteriormente eram considerados “muito bom” para as canalizar para os grupos “excelente”. Agora a questão é: será que essas verbas vão ter o correspondente retorno? Os tais grupos “excelente” vão produzir adicionalmente o que os grupos que antes eram “muito bons” produziam? Porque não tenhamos ilusões: a manter-se os moldes desta avaliação esses grupos vão extinguir-se em poucos anos.

Anónimo disse...

Acho piada a estes actos de contrição (mudança de ciclo). É tomar todos os outros por tolos. Faz lembrar o outro acólito do Soaréz dos Santos que assim de um momento para o outro viu a luz (mas continua a receber os francos suiços com literatura de cordel).

Tudo isto era mais do que óbvio que iria acontecer. Basta recordar um pouco do que eram as conversas em família aos sábados com o senil Carreira (tudo em plano inclinado). E digo mais coisas óbivas: Numa segunda fase, vai arrancar o fecho de escolas do dito ensino superior (toca a malhar na a3es) .

Nuno Henrique Franco disse...

Nuno Crato está em vias de se tornar a maior desilusão deste governo. E sim, mais do que Passos, Gaspar, Portas Albuquerque e até Relvas. Porque só há desilusão de facto quando um momento houve no passado em que estivemos iludidos. E Crato foi o único ministro deste governo no qual depositei alguma esperança. Não fui o único.

O modo autista e irracional com que tem conduzido a sua política para o ensino básico, secundário, superior e a investigação não tem paralelo em 40 anos de Democracia. Havia indícios, mas fomos (eu até nem muito, confesso) acreditando na conversa da "excelência". Ouvi há não muito tempo pouco um director de um instituto fazer um mea-culpa envergonhado admitindo que, ao início, reagiu com naturalidade quando o número de bolsas atribuídas começou a diminuir, julgando ser um processo de selecção natural. Quando se deu a hecatombe do ano passado, em que viu excelentes programas doutorais sem financiamento e laboratórios a esvaziar, percebeu finalmente que os bolseiros eram aqueles de facto responsáveis pelo trabalho científico nas instituições. Que surpresa, afinal existiam! E aí ele e outros directores quiseram-se fazer ouvir, e a FCT emendou um pouco a mão.

Havia indícios, quando se propôs a avaliar crianças de 9 anos recuperando um exame estado-novista e se viu obrigado a voltar atrás na obrigatoriedade de terem positiva para transitarem de ano, já que implicaria metade dos alunos ficarem retidos e sobrelotarem as escolas e o sistema no ano seguinte (e esvaziar o ciclo seguinte).

Havia indícios quando retirou 17 milhões do ensino especial para atribuir 19,4 milhões aos pais que queriam os seus filhos em colégios privados. Se ajudar pais e alunos com NEEs - que provavelmente considera não serem dignos do investimento - é visto como um desperdício de recursos, já dar uma mão à classe média-alta e alta e à indústria do ensino com prejuízo da escola pública é missão de vida.

Havia indícios quando quis avaliar, seriar, seleccionar, categorizar todos os alunos sem antes melhorar o ensino e combater as assimetrias. Mas porque se haveria de ralar o seu eleitorado, se os alunos de classe-média e alta estariam em natural vantagem nestas condições? Quando não favoreceu os favorecidos, tratou o que era diferente como se fosse igual, acentuando as diferenças. Mas esse é um apanágio da direita dita "neo-liberal" (ainda que tenha em mim que ser liberal significa algo muito diferente).

Havia indícios quando revogou arrogantemente o currículo do ensino básico em 2011 por opção ideológica, sem dar quaisquer outras referências aos professores, na altura. Diz Crato, o iluminado, que as ciências pedagógicas são "obscuras". Não duvido que o ache, pois é da natureza do conhecimento ser opaco a quem não o possui. Mas na altura foi bastante aplaudido, inclusive no De Rerum Natura, por pessoas que desconfio que também não percebem a ponta de um corno de educação.

Houve ainda indícios no modo cego, surdo, mudo e velhaco com que tratou as universidades, os seus docentes e os seus alunos. E agora são os institutos de investigação.

"E o burro sou eu?"

Anónimo disse...

Ainda continuam a novela?
A legitimidade da fct de avaliar o quer que seja só provêm de um único factor: o facto de ser ela a financiar!
Os projectos e os centros que ela não financia ela não avalia nem mete lá o nariz!
Passou-se a depender excessivamente da fct agora está-se à sua mercê!

Eles aprovam o que querem e bem lhes apetece segundo a sua agenda de intenções e não o que merece ser aprovado, dai que as injustiças sejam bem visíveis.
Deveria ter-se diversificado o financiamento para isto nunca vir a acontecer!

Anónimo disse...

CF 7 - NC 1

ABS disse...

Sempre admirei Nuno Crato - pensamento transparente, contra a corrente desgraçada que singrava, rigoroso e metódico.

E agora esta catástrofe. Carlos Fiolhais, claro, está coberto de razão.
Se Nuno Crato quiser salvar não a face mas a investigação nacional, só tem uma solução: deitar os resultados deste painel ao lixo imediatamente e recomeçar o processo. Será sempre melhor que a aplicação deste fiasco.

Albert Virella disse...

Vendo as coisas deste lado, sem estar dentro da organização, creio que o maior deslize de Nuno Crato, caso ele não estivesse de acordo com as normas de trabalho que lhe eram impostas superiormente, foi o não se ter despedido amigavelmente, sem barulho e sem cartinhas explicatórias.

Se, pelo contrário, ele está convicto de que as orientações estão correctas e que ao obedecer está servindo o País, então de facto aceita ser um carrasco, sem justificar aos cidadãos que não existe alternativa.

E este é o maior problema deste governo, dos anteriores e dos que se seguirão.Não contar,cruamente, a realidade. pensar exclusivamente nos seus interesses partidários, coisa que não considerasse ser a faceta menos satisfactória de Nuno Crato.

Anónimo disse...

Só posso concordar com o Prof. Manuel Silva: o Prof. Fiolhais é moralmente co-responsável pelo incentivo ao engrossar da corrente que levou Crato a ministro. Só podia ser um flop, como está a ser, com os seus ex-amigos todos a baterem-lhe.
O debate sério sobre a Educação exige conhecimento fundamentado, não um "senso comum" da treta e a ligeireza com que pessoas com responsabilidades por vezes tratam o assunto na praça pública.
Um físico como o Prof. Fiolhais deveria ter isto claro: o "senso comum" não bate certo com muito do que hoje é aceite na sua área. E acredite: apesar do que Penrose pensava, há mesmo outras áreas pra além da Física que são ciência, mesmo com limitações e especificidades.
Por isso, só ficaria bem ao Prof. Fiolhais perguntar-se a si próprio como foi possível ter ido atrás de Crato; quando batemos contra a parede, não é a parede que está errada...

Anónimo disse...

Só quem não conhece o Ministério da Educação e Ciência é que podia ter tido a ilusão de acreditar que o mesmo seria modificado por dentro. Só com uma ruptura clara das actuais e anteriores linhas ideológicas e burocráticas é possível termos uma nova política para o ensino e para a ciência no nosso país. E permitam-me acrescentar que não é com os lobbies que existem e que já vêm do tempo do ministro Mariano Gago que também tem culpas no cartório, que as coisas vão melhorar. A ideia obsessiva de medir a peso ou a metro a produção científica no país para mostrar estatística junto dos congéneres europeus está a dar os seus frutos podres. Adoptamos modelos de desenvolvimento que são mais próximos dos da “lei da selva” sem termos qualquer consideração pela vertente humana. Por tudo isso, a resposta para o descalabro que presentemente vivemos e que de alguma forma se assemelha a uma instituição mafiosa é a ruptura com o estabelecido. Não é possível dar volta a este estado de podridão e desumanização que vivemos não apenas na ciência, mas na maneira como construímos e vivemos em sociedade que para muitos, incluindo cientistas, julgam estar próximo do paraíso, em que o marketing do produto e da imagem é o único apanágio que os guia, sem terem em consideração os valores éticos, a memória e a identidade cultural e científica das instituições que fazem, ensinam e divulgam ciência em Portugal.

Raquel Gonçalves Maia disse...

Tanta esperança perdida, caro Fiolhais... E admiro quem reconhece um erro de julgamento. Aconteceu~lhe a si, aconteceu-me a mim. (oa anónimos... são, isso mesmo, "sem nome")

A Não disse...

Não adianta. Não é não.

Anónimo disse...

Custa-me dar-lhe razão, Manuel Silva, e ainda mais confessar que caí no mesmo erro.
Luísa.

Anónimo disse...

A FCT não financia absolutamente nada. É um mero veículo que canalisa dinheiro dos contribuintes portugueses e europeus para o Sistema Científico e Tecnológico Nacional. Não há razão para haver mais do que uma agência pública para o fazer. Outras fontes de financiamento? Claro, mas sem uma aposta pública na investigação, nomeadamente na fundamental, não há ciência em lado nenhum do mundo. Sem um financiamento base do Estado não há sequer recursos humanos capazes de ganhar outros financiamentos, como as ERC's ou as bolsas Melinda Gates, etc. Com o shutdown de metade das unidades, os investigadores capazes de o fazer que lá estão (e cuja formação nós pagámos) vão ganhar esses financiamentos para outro país.

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...