quinta-feira, 29 de agosto de 2013

"Nestas circunstâncias só nos resta ir para o inferno!"

Apontamento no seguimento de texto anterior.

Em 1995 era publicado em Portugal, pela Gradiva, um ano depois da edição francesa, uma pequena obra de leitura acessível que dava conta de várias inquietações decorrentes do protagonismo que a televisão havia ganho na sociedade, alterando modos de pensar e de agir, e nem sempre no sentido que se pode considerar positivo. Televisão: um perigo para a democracia, é o título da obra.

Longe de diabolizarem esse meio de comunicação, Giancarlo Bosetti, jornalista que redigiu a introdução, Karl Popper, epistemólogo, e Jonh Condry, psicólogo, que escreveram os dois textos centrais, e Jean Baudolin, professor de Ciências Políticas, que acrescentou um posfácio, indagam o seu lugar nas nossas vidas. Se há duas ou três décadas as palavras destes quatro senhores eram relevantes, no presente sê-lo-ão muito mais.

O extracto que se segue é da lavra de Popper (páginas 18 e seguintes). Considerando que se trata de um potente instrumento que terá necessariamente de se harmonizar com os princípios da democracia e do liberalismo e não com a violência e a vedetização, propôs a várias estações de televisão um projecto que nenhuma delas atendeu, facto que o irritou bastante: "Fala-se de censura, mas são os produtores de TV, que detêm o poder de censurar tudo à sua vontade e sem que possa fazer-se seja o que for."
 É, aliás, interessante ouvir falar os produtores de televisão sobre esta questão. Por ocasião de uma conferência que realizei há uns anos na Alemanha tive o ensejo de conhecer o responsável de uma cadeia de que deslocara para me ouvir juntamente com alguns colaboradores (...). Durante a nossa discussão fez afirmações inauditas, que se afiguravam naturalmente indiscutíveis. «Devemos oferecer às pessoas o que elas esperam», como se fosse possível saber o que as pessoas pretendem recorrendo simplesmente aos índices de audiência. Tudo o que é possível recolher, eventualmente, são indicações sobre as preferências dos telespectadores face aos programas que lhe são oferecidos. Esses números não nos dizem o que devemos ou podemos propor, e esse director também não podia saber que escolhas fariam os telespectadores parantes outras propostas. De facto, ele  estava convencido de que a escolha só seria possível no quadro do que era oferecido e não perspectivava qualquer alternativa. A sua posição afigurava-se-lhe conforme aos princípios da democracia e pensava dever seguir a única direcção compreensível para ele, a que considerava «a mais popular». Ora, em democracia nada justifica a tese deste director, para quem o facto de apresentar programas cada vez mais medíocres corresponde aos princípios da democracia, «porque é o que as pessoas esperam». Nestas circunstâncias só nos resta ir para o inferno! A democracia (...) não é mais do que um sistema de protecção contra a ditadura (...). A democracia sempre procurou elevar o nível da educação; é essa a sua autêntica aspiração. As ideias deste director não correspondem em nada ao espírito democrático, que sempre foi o de oferecer a todos as melhores possibilidades e oportunidades.Inversamente, os seus princípios conduzem a propor aos telespectadores emissões cada vez piores, que o público aceita desde que se lhe acrescente violência, sexo e sensacionalismo. De facto, quanto mais uso se fizer deste género de ingredientes, mais se incita as pessoas a voltarem a pedi-los. E, como estas práticas são as que os produtores compreendem melhor e as que suscitam mais facilmente a adesão do público, renunciamos a propostas mais exigentes. Contentamo-nos em acrescentar pimenta aos programas (...) acrescenta-se sempre mais pimenta aos pratos de má qualidade para disfarçar o seu gosto detestável ou insípido.

1 comentário:

Anónimo disse...

A TV de 1995 nada tem a ver com a de hoje. Do elitismo inicial, passando pelo tsunami de novelas e o reinado do tele-lixo, hoje felizmente há muita escolha.

Com dezenas de canais disponíveis, apesar de a "pimenta" e os maus "reality-shows" ainda serem a maioria, basta procurar um pouco para encontrar programas de qualidade onde há muito a aprender. Muitos são mesmo o que eu queria, nomeadamente os verdadeiros reality-shows que se tornaram tendência ultimamente, não os encenados.

Se tivesse hoje um cão seria tão diferente, que ignorantes nós eramos! Aprendo a cozinhar. Fico a conhecer inúmeras profissões. Há conhecimento científico apresentado de forma divertida. Ontem fiquei a saber que apesar de o Japão ser um sociedade machista, também é comum ser a mulher a gerir o dinheiro que o homem ganha e a dar-lhe uma mesada. A lista não tem fim...

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