quinta-feira, 1 de agosto de 2013

MEDICINA E INQUISIÇÃO

Minha crónica publicada no último Jornal de Letras:

Em 1543, quando os Portugueses chegaram ao Japão, o médico belga Andreas Vesálio, em reflexo das suas cuidadas observações anatómicas, publicou o livro Fábrica do Corpo Humano, que inaugura a medicina moderna. Vesálio haveria, no final da sua vida, de ser, em Madrid, médico de Filipe II de Espanha, Filipe I de Portugal. Para a mudança radical no modo de ver o mundo, com o reforço da observação e da experiência, que ocorreu nessa época muito contribuíram os portugueses, primeiro, e os espanhóis, depois, que protagonizaram o processo de expansão marítima.

A medicina, apesar da crescente influência do empirismo e do progressivo afastamento de crenças arcaicas, estava então muito afastada da ciência actual. A História da Medicina Portuguesa Durante a Expansão, de Germano de Sousa, ex-bastonário da Ordem dos Médicos, fornece uma descrição abrangente da ciência médica no nosso país desde  D. João II a Filipe I, incluindo o ensino e a prática da medicina, a assistência aos doentes na metrópole e no ultramar (em especial no grande Hospital Real de Todos-os-Santos, fundado em Lisboa pelo rei D. João II em 1492, e no Hospital Real de Goa, criado por Afonso de Albuquerque em 1510), as condições de vida nas naus e as doenças experimentadas pelos navegantes e colonos, que incluíam tanto males comuns, como o prolongado enjoo, como exóticas, como a cólera asiática que no século XIX haveria de invadir o Velho Continente. Garcia de Orta, que trabalhou no Hospital de Goa e conhecia os trabalhos de Vesálio (contra este defendeu o valor da “raiz dos chinas”, uma planta com propriedades antisifilíticas, que ele próprio deve ter tomado por padecer desse mal), foi o primeiro médico ocidental a descrever essa cólera. Impressionam sobretudo na obra de Germano de Sousa as descrições da insalubridade a bordo: segundo um cronista coevo, Vasco da Gama, em desespero na luta contra o escorbuto, mandou que cada um dos doentes lavasse a boca com a própria urina, e estes sararam em poucos dias! No meio de mil vicissitudes, a medicina conheceu um progresso e alargamento impressionante à escala global graças aos esforços de médicos, cirurgiões e boticários lusos.

Mas, embora o ex-bastonário não aprofunde o tema, o certo é que a um período de auge na medicina portuguesa se seguiu um outro de prolongado declínio. A União Ibérica sob a coroa espanhola ocorrida em 1580 contribuiu decisivamente para essa dissolução. E a Inquisição, instituição importada por D. João III em 1536, também prejudicou sobremaneira o progresso das ciências. O longo braço inquisitorial chegou a Goa, onde se realizaram inúmeros autos de fé. Garcia de Orta era um cristão novo, saído do país em 1534. Se em vida não foi incomodado pelos perseguidores dos judeus, foi-o em 1580, doze anos após a sua morte: os seus ossos foram desterrados e queimados, na sequência do apuramento de práticas judaizantes no processo movido a sua irmã, que acabou queimada viva em Goa. Além da de Orta, outros famílias de médicos judeus foram vítimas da Inquisição. Pedro Nunes, médico de formação e colega de Orta na Universidade de Lisboa, não foi acusado, mas foram-no dois dos seus netos, que permaneceram largos anos no cárcere. Temendo o perigo, o médico Amato Lusitano saiu do país no mesmo ano que Orta, não para a Ásia mas para o centro da Europa e, tal como Orta, nunca mais voltou. Outro médico, Rodrigo de Castro, autor do notável tratado de deontologia O Médico Político, fugiu para Hamburgo em 1591. Ainda outro médico, Zacuto Lusitano, exilou-se em Amesterdão já no século seguinte, juntando-se a uma comunidade lusa sua correligionária. O Inquisidor-mor tinha proibido quaisquer estudantes de origem judaica de entrar no Colégio de S. Pedro da Universidade de Coimbra. Além disso, nos índices de livros proibidos de Portugal e Espanha dos séculos XVI e XVII cerca de um terço eram obras de medicina. Outros livros, como as Centúrias de Amato, foram objecto de censura parcial, com passagens expurgadas, designadamente em temáticas sexuais. Não admira por isso que, em 1592, Francisco Tomás, médico no Hospital de Todos-os-Santos e cirurgião-mor, tenha escrito numa carta ao bispo de Madrid: “a ciência da medicina está de todo perdida em Portugal, e quase irrecuperável, porque nem na universidade há lentes nem pode haver bons discípulos.”

A História da Inquisição Portuguesa 1536-1821, da autoria do italiano Giuseppe Marcocci e do português José Pedro Paiva, professores de História respectivamente nas Universidades de Viterbo e de Coimbra, é a primeira história completa da Inquisição portuguesa. O livro, denso, trata com o rigor que advém de profunda análise documental, o papel da Inquisição entre nós, um papel que esteve longe de se limitar à censura das ciências. Esse tribunal “marcou profundamente o passado e ainda marca o presente dos países onde existiu.”

- Germano de Sousa, História da Medicina Portuguesa durante a Expansão, Temas e Debates e Círculo de Leitores.
- Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História da Inquisição Portuguesa 1536-1821,  A Esfera dos Livros.
 

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