sexta-feira, 30 de agosto de 2013

CIÊNCIA EM PORTUGAL NA IDADE MÉDIA

Meu artigo na revista As Artes entre as Letras:

O ensino na alta Idade Média fazia-se nos mosteiros. Por exemplo, no século XII, no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra aprendia-se já medicina, mas esta tinha um papel subalterno relativamente aos estudos de teologia, de direito canónico e de gramática. No reinado de D. Sancho I, alguns monges deste mosteiro foram enviados a Paris, para estudarem Teologia. Um deles, Mendo Dias, estudou também Medicina e veio depois ensiná-la em Santa Cruz. Mas foi só com a criação da Universidade portuguesa, fundada, em Lisboa, em 1290, pelo rei D. Dinis, e mudada para Coimbra logo em 1308, que se iniciaram entre nós estudos médicos devidamente organizados.
 
A instituição mais importante fundada na Idade Média é, sem dúvida, a Universidade. Ao fim de mais de nove séculos ainda perdura, sendo considerada em todo o mundo indispensável na formação avançada, na criação de novos saberes e no desenvolvimento socio-económico e cultural das regiões e dos países. A mais antiga universidade do mundo foi a de Bolonha (se deixarmos de lado escolas da Índia e no mundo árabe), a Alma Mater Studiorum, que remonta a 1088. Outras escolas se lhe seguiram, todas elas ligadas à Igreja: no mesmo século, foi só Oxford e, no século XII, Paris e Modena, em Itália. Mas, no século XIII, ocorre uma explosão das universidades, com o surgimento de uma dúzia, entre as quais a de Coimbra, que foi fundada em Lisboa (das outras três são italianas e quatro são espanholas, o que mostra a força do movimento universitário no Sul da Europa). A ligação à Igreja é bem visível no facto de a Faculdade mais importante ser a de Teologia. Outras faculdades eram Cânones, Leis e Medicina. A medidina foi desde o início a única faculdade científica.

O século mais importante para a ciência na Idade Média, se é que se pode falar de ciência nessa altura, foi o século XIII. O chamado “Primeiro Renascimento” foi marcado por um personagem português que tem muitos aspectos das sua vida e obra envoltos em mistério: Pedro Hispano ou Pedro Julião, que se tornou em 1276 o primeiro e até agora único papa português, com o nome de João XXI. Ele foi contemporâneo de uma tríade de nomes grandes do pensamento cristão: o franciscano inglês Roger Bacon, estudante em Oxford e professor em Oxford e em Paris, Doctor Mirabilis, o dominicano alemão S. Alberto Magno, Doctor Universalis, professor em Paris, e o dominicano italiano S. Tomás de Aquino, que levou a cabo a cristianização do pensamento de Aristóteles.

Roger Bacon pode ser considerado percursor do método científico, devido à sua ênfase no empirismo e na matemática. Pedro Hispano foi provavelmente aluno de Alberto Magno em Paris e deve ter sido condiscípulo de S. Tomás de Aquino. Foi um tempo de enorme controvérsia na Universidade de Paris. O papa João XXI ordenou um inquérito que conduziu às Condenações de 1277, que se somaram a outras proferidas na mesma cidade nesse mesmo século, e que atingiram algumas teses de S. Tomás de Aquino. Também no Vaticano esses tempos foram de turbulência, com vários conclaves em 1276. Foi o “ano dos quatro papas”. E João XXI não esteve mais de seis meses no trono de Pedro, ao morrer em Viterbo por acidente no ano seguinte.

Há uma enorme obra, sob a forma manuscrita, atribuída a Pedro Hispano, da qual as peças mais famosas, de que existem várias cópias, são um tratado de lógica aristotélica, o Summulae Logicales, que vigorou durante três séculos em várias universidades europeias, e as importantes obras médicas De Oculo e Thesaurum Pauperum. Mas a questão dessa autoria não está resolvida, pois há vários Pedros com obras manuscritas que nasceram na Península Ibérica nessa época. Há quem defenda que o referido tratado de lógica é de um frade dominicano. E também há quem defenda que, afinal, o Papa português pode não ser o especialista que deixou tão notável legado em medicina.

Foi a 1 de Março de 1290 que o rei D. Dinis assinou o documento Scientiae thesaurus mirabilis que instituiu a Universidade portuguesa, reconhecida pouco depois pelo papa Nicolau IV e que hoje é Património Mundial da Humanidade. Os primeiros estatutos dos chamados Studium Generali foram redigidos em 1309, sob o título Charta magna privilegiorum. Quando a Universidade de Coimbra se formou já o papa português tinha falecido há 13 anos. A Universidade medieval portuguesa foi pequena e não ficou célebre: nunca teve muitos alunos e os seus professores, com uma ou outra excepção, não ficaram famosos. A Universidade circulou entre Lisboa e Coimbra. Em 1338 foi transferida de novo para Lisboa, onde permaneceu 16 anos, regressando a seguir a Coimbra. Após nova mudança para Lisboa, em 1377, só voltou definitivamente a Coimbra em 1537, por ordem de D. João III, a fim de fugir ao bulício da capital do reino. A Universidade de Coimbra foi até 1911, com a excepção do período entre 1559 e 1759, quando existiu uma outra universidade em Évora (jesuíta, não tão abrangente como a de Coimbra), a única não só no Portugal europeu, mas também no vasto império português, em claro contraste com o que se passou no  Império espanhol.

O ensino, em Coimbra como nas outras universidades medievais, estava baseado na leitura e comentário das antigas autoridades grego-latinas. A frase magister dixit traduz o facto de a lições serem lidas pelo professor (o “lente”) e de os alunos terem de as repetir. Havia discussões (disputatio), mas a palavra dos antigos, interpretada pelos mestres, era indiscutível. Não havia lugar ao erro. A ciência moderna estava ainda por surgir.

1 comentário:

Anónimo disse...

Toda a gente fala de história, desde o homem da rua ao eminente cientista. A história da ciência, assim, levezinha, jornalística e bloguista, até edifica e instrui as massas. Não fora os escorregões na ideologia que, aqui e ali, o eminente cientista vai distilando, na sua cruzada contra a não-ciência, qual Papa pós-moderno sem o querer ser, que usa o imaginário social da ciência como arma ideológica da entronização da cientificação dogmática de tudo.
Eminente cientista que glosa a história: no séc. XII, Anselmo de Laon cunhou uma máxima que ficará como um lugar-comum por 200 ou 300 anos. Diversi sed non adversi. Se o eminente cientista tivesse um mínimo senso de verdadeiro saber histórico, saberia que a sua ciência moderna, que tantas vezes é por si endeusada e atirada contra outros, diminuindo-a, portanto, do seu valor cognitivo, prestando um mau serviço ao conhecimento, dizia eu, o eminente cientista saberia que será a modernidade “que fará do consenso o melhor índice de verdade”. Diversi sed non adversi. A diversidade nas controvérsias é, ao mesmo tempo, um método de aprendizagem e de descoberta da verdade. Só os dogmáticos querem esmagar os adversários, anatematizando-os com todos os artifícios retóricos imaginados, como o fizeram a Abelardo, espírito livre e disputador leal que, no meio das mais acesas controvérsias, ele e muitos outros, nunca perderam a “clara e fundamentada percepção da insuficiência cognitiva das criaturas de Deus.”
Colocai a mão na consciência, eminente cientista, estudai, aprendei com os doutos, e sobretudo sede tolerante. Diversi sed non adversi.

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