terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

W.G. SEBALD: HISTÓRIA E TEMPO

Novo texto sobre W. G. Sebald, do nosso colaborador habitual Ângelo Alves (no foto, W. G. Sebald):


Face a tragédias e vitórias memoráveis muitos de nós já nos questionámos sobre quem faz a história. O livre-pensador responde que é o homem, o fatalista responde que há um Deus que guia os homens.

Liev Tolstói na sua epopeia “Guerra e Paz” desmistifica todas as façanhas de Napoleão Bonaparte, inclusive a batalha de Austerlitz, fazendo-o passar por um péssimo estratega militar. Para este escritor russo e nada ortodoxo, no sentido religioso, entre Napoleão e um vulgo não há diferença nenhuma, uma vez que ambos estão sujeitos a uma Causa Invisível e incognoscível que conduz a humanidade para o paraíso. É da actuação e soma de todas as forças que se origina a Força. Logo, o grande historiador, aquele que procura as leis comuns a todos, não deve menosprezar uma só força e centrar-se apenas nos estadistas, nos imperadores, etc. É neste ponto que Tolstói compara o movimento da humanidade com a lei da gravitação de Newton:

   "Quando Newton formulou a lei da gravitação, não disse que o Sol ou a Terra tinham a propriedade de se atraírem mutuamente, disse que todos os corpos, do maior ao mais pequeno, se comportavam como se atraíssem uns aos outros, isto é, deixando de lado o problema da causa do movimento dos corpos, enunciou uma propriedade comum a todos, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno."

Apesar de se falar somente em Newton, na lei da gravitação, todos os físicos sabem o papel que Robert Hooke teve. Não foi Hooke quem avançou com a teoria que todos os corpos caem para o centro da terra? Ora o historiador, neste caso de ciência, não pode centrar-se apenas em Newton e na sua maçã, correndo o risco de adulterar a história.

Uma visão diferente da história da humanidade é a de Stendal. Quem leu “Vermelho E Negro” e a “Cartuxa De Parma” sabe que para Stendal são os homens intrépidos, denodados e corajosos que acabam por triunfar e por realizar os seus desejos (só não vencem a morte). Aqui o homem é possuidor do livre–arbítrio, e são os seus feitos gloriosos que fazem com que ocupe um espaço de relevo na história. Para Stendal Napoleão era um desses homens.

W. G. Sebald em “Austerlitz” baralha tudo. Para ele a história e o tempo não existem. Tudo está aí algures, como se o futuro já existisse e o passado nunca passasse. Imagine, caro leitor, que se pensar agora no caso BPN, ele está aí a acontecer, se pensar que o Senhor Franklim Alves laborou no BPN, ele está a laborar lá; tudo isto está aí, assim como a boa fé do Senhor Relvas, a omissão nos currículos de passagens comprometedoras e o mutismo do nosso Presidente da República. Imagine que Lance Armstrong está a cortar a meta nos Campos Elísios e, na América, aceita o uso frequente de substâncias para melhorar o seu rendimento, isto em simultâneo. É estranho! 

Vejamos como Austerlitz nega a metáfora do tempo de Newton:

  "O tempo, disse Austerlitz na sala de astronomia de Greenwich, é de longe a mais artificial das nossas invenções e ligá-lo aos planetas aos planetas que giram em torno dos seus eixos não é menos arbitrário do que, digamos, um cálculo baseado no crescimento das árvores ou no tempo que uma pedra calcária leva a desintegrar-se, à parte o facto de o dia solar pelo qual nos guiamos não fornecer medidas exactas, pelo que, para obtermos a contagem do tempo, temos que inventar um sol médio imaginário com um movimento de velocidade invariável e cuja órbita não se incline para o equador. Se Newton pensasse, disse Austrelitz, e apontou pela janela para a curva que a água desenha ao rodear a Ilha dos Cães com a última luz do dia, se Newton realmente pensou que o tempo é uma corrente como a do Tamisa, então onde é que fica a nascente do tempo e a que mar vai ele no fim desaguar? Todos os rios, como sabemos, têm de ter margens de ambos os lados. Assim sendo onde estão as margens do tempo? Quais seriam as suas qualidades específicas, correspondentes talvez às da água que é fluida, algo pesada e transparente? Em que é que as coisas mergulhadas no tempo diferem das que ele não afecta? Qual o significado de mostrarmos as horas de luz e as de escuridão no mesmo círculo? Porque é que o tempo de um lugar fica eternamente parado e se esfuma e num outro se precipita? Não se poderá afirmar, disse Austerlitz, que o tempo ao longo dos séculos e dos milénios tem sido assíncrono? Afinal, não foi assim há muito tempo que ele se expandiu. E não tem sido a vida das pessoas em muitas partes do mundo até hoje regida menos pelo tempo do que pelas condições atmosféricas, logo, por uma grandeza não quantificável que desconhece a regularidade linear, que não avança sempre em frente, antes se move em turbilhão, que é marcada por estagnações e surtos, recorre sob a formas sempre diferentes e evolui para não se sabe que direcção? O estar-fora-do-tempo, disse Austerlitz, que ainda há pouco vigorava tanto nas regiões atrasadas e esquecidas do nosso país como nos continentes por descobrir além-mar, continua a vigorar mesmo numa metrópole temporal, como Londres. Os mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os doentes, em casa ou nos hospitais, e não apenas estes, basta um tanto de infelicidade pessoal para nos separar do passado e do futuro. Na verdade, disse Austrelitz, nunca possui qualquer relógio, de parede ou despertador, de bolso e muito menos de pulso. Os relógios sempre me deram vontade de rir, coisa basicamente mentirosa, talvez porque sempre resisti ao poder do tempo graças a um impulso interior que eu próprio não entendo muito bem, sempre me fechei à chamada actualidade, na esperança, penso que eu hoje, disse Austerlitz, de que o tempo não passe, não seja passado, de poder ir atrás dele, de encontrar à chegada tudo como dantes ou, melhor dizendo, de descobrir que todos os momentos do tempo existiriam simultaneamente, caso em que nada do que a história conta seria verdade, os acontecimentos não aconteceram, estão à espera de acontecer no momento em que pensamos neles, embora, naturalmente, a perspectiva pouco ou nada animadora da eterna infelicidade e interminável dor fique assim em aberto."

O pensamento de Austerlitz é obscuro e contraditório. Pretende desligar o tempo da matéria e, ao mesmo tempo, para justificar o “estar fora do tempo” socorre-se da matéria afectiva e sentimental, da desgraça da humanidade. Todavia põe questões para as quais ainda hoje não há resposta.

Esta ideia de Sebald, de o tempo ser uma ficção, não é nova. Ele certamente, como alemão, conheceu a escritora austríaca Ingeborg Bachmann e o seu romance “Malina”. Leia-se este excerto:

"O tempo não é “hoje”. Na verdade não existe tempo, podia ter ocorrido ontem tudo isto, ou há longos anos, é possível que torne a acontecer, infatigável, e certas coisas nem sequer ocorreram. Não há unidade de medida para este tempo onde outros tempos se inserem, não existe medida possível para o não - tempo onde se jogam coisas que nunca foram do tempo."    
 
Para mim o tempo, a história, pode de facto ser comparado a um rio, mas é o “rio de trevas” de Fernando Assis Pacheco. Deixo-vos com este poema, dos mais intemeratos, de “A Musa Irregular”:

“Morro Do Aragão”

Encosto a cabeça a um pneu/ acendo
o cigarro/ passarão anos sobre esta
lembrança entontecida.
Amanhã dormirei? /
foi agora que a morte/ o
sono dentro da cabeça/
este pneu sobre a lama.

Luzes de Nambuangongo
ao longe, amanhã estarei
deitado no meu catre.
As cartas enlouquecem / casa, pai!
Foi agora que as luzes. O sono,
o pneu / o cigarro sujo.

Pacheco, OK? A mão pesada
dentro da bolso/ o sono
Sobre o pneu.
Noite, noite entontecida.

Passarão anos, nascerão filhos
muito antes que eu esqueça.

OK, OK / rio de trevas."

Ângelo Alves
                          

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