sábado, 8 de dezembro de 2012

Para repensar uma estranha moda "pedagógica"

Texto na sequência dum outro intitulado Obviamente, já lá estão!

I. A prática

No início do ano lectivo, as (ou muitas) escolas portuguesas, sobretudo do Ensino Básico, através dos directores de turma, distribuem a alunos menores de idade uma ficha, questionário ou inquérito de carácter "sócio-biográfico" para que eles e/ou as suas famílias preencham. Os dados recolhidos são apresentados aos professores da turma e guardados algures na escola. Mais recentemente, tenho percebido que a sua divulgação ultrapassa essa barreiras, encontrando-se com facilidade na internet.

A justificação vulgarmente apresentada é a de conhecer e compreender diversas dimensões da vida pessoal, familiar e social dos aprendizes a que a escola não tem acesso imediato e que se entendem como relevantes para organizar o agora designado Projecto de Trabalho de Turma. Entendendo que esta prática, mais do que desnecessária, é errada, podendo ter consequências negativas, sobretudo para os alunos, apresento, de seguida, os argumentos de ordem ética, mas também de ordem legal e pedagógica, em que me baseio.

II. Os argumentos

1. Em termos legais, muitos dos itens constantes nesses instrumentos colidem com o direito de reserva da vida privada bem como de protecção dos dados pessoais, que se encontra regulamentado em diversos normativos internacionais e nacionais [1].

2. O respeito por esses direitos constitui um dever dos profissionais da educação, estando isso mesmo consagrado em letra de lei [2].

3. Ainda que não existisse explicitação legal desses direitos, o dever de os respeitar é recorrentemente afirmado nos trabalhos académicos que se realizam na área da ética e deontologia das profissões de educação Mais, tal dever é invariavelmente contemplado em Cartas e Códigos Deontológicos publicados ou em proposta [3].

4. Pode argumentar-se que sendo, em vez dos alunos menores, os seus encarregados de educação a preencherem os instrumentos, fica ao seu critério proporcionarem as informações, não se pondo o problema acima enunciado. Esta circunstância é, no entanto, mais complexa por duas ordens de razões.

Uma razão prende-se com o “consentimento esclarecido” que o sujeito dará, depois de lhe terem sido proporcionadas, com objectividade e sem constrangimento de qualquer natureza, as devidas explicações sobre o objectivo da recolha de dados, seu tratamento, difusão e preservação. No caso concreto, este conjunto de requisitos não se encontra reunido.

Outra razão prende-se com o facto de algumas das informações dizerem directamente respeito, não aos encarregados de educação, mas aos alunos. Ainda que menores de idade, o seu direito à privacidade e intimidade deve ser sempre acautelado. Em última instância, é o interesse superior do menor que deve prevalecer.

5. Em certos casos, mesmo que os alunos e/ou os seus encarregados de educação manifestem iniciativa de expor, por escrito ou verbalmente, aspectos do foro privado e íntimo, cabe aos profissionais de educação filtrar o que devem aceitar que seja partilhado. Efectivamente, o seu discernimento e responsabilidade ética terá de ser superior ao das pessoas comuns.

6. No plano pedagógico, o facto de os instrumentos em causa se entregarem, em geral, aos alunos, para que os preencham e, se forem muito novos, encontrarem ajuda junto dos encarregados de educação põe-nos numa situação delicada de intermediários entre a escola e a casa (Ver aqui).

7. É também nos menores que deve pensar-se quando se lhes pede para prestarem informações relativas a si mesmos, à sua família e aos seus amigos, sendo que eles podem ter uma dupla percepção (e muitos tê-la-ão): de que estão a transgredir regras de confiança básicas ou que, para não as transgredir, terão de omitir ou alterar dados; e de que estão a facultar a possibilidade de se estabelecerem comparações entre a sua condição e dos seus pares (Ver aqui).

8. É, ainda, nos menores que deve pensar-se, quando se lhe pede algo que, por princípio, se en-contra em desacordo com valores fundamentais que devem ser ensinados e/ou consolidados na escola, entre os quais se contam, naturalmente, o da confiança e da reserva da vida privada e íntima.

9. Complementarmente, e ainda em termos pedagógicos, é importante referir que as informações recolhidas, pelo processo descrito, acerca dos alunos e do contexto que o rodeia, deixarão muitas dúvidas quanto à sua validade, pelo facto de os sujeitos tenderem a dar respostas socialmente comprometidas, procurando expressar a imagem de si que lhes parece ser favorável  – Efeito de desejabilidade ou de desiderabilidade social – ou da qual podem colher proveitos vários.

10. Não menos importante é referir que a informação obtida sobre outrem condiciona necessariamente a interacção, pelo que todo os dados de que os professores dispõem sobre os seus alunos não funcionam no sentido da neutralidade. De facto, ainda que de modo pouco ou nada consciente, desencadeiam diversos efeitos psicossociais (como o de Pigmaleão, de Hallo, de Brandura), os quais pesam nas apreciações e acções de ensino.

11. O que até aqui se afirmou, com base em argumentos de ordem legal, ética e pedagógica, não pode levar a concluir que os profissionais da educação terão de recusar toda e qualquer informação relativa aos alunos. Pelo contrário, lidando com menores, assumem, para com eles, um especial dever de cuidado, sendo sua obrigação tudo fazer para os ensinar da melhor maneira possível e, em simultâneo, protegê-los de ameaças que façam perigar a sua vida ou estabilidade afectiva, independentemente de quem partirem e da sua natureza.

12. Nessa medida, terão de dispensar uma atenção cuidada ao estado e evolução do comportamento e expressão dos seus alunos, sendo que, no caso de encontrarem sinais de alarme, deverão indagar pelos seus próprios meios a situação e/ou solicitar apoio especializado. Mas, isto sempre com a maior discrição, de modo a não agravar a situação detectada seja no que for.

13. O que acima se disse será tanto mais pertinente quanto mais melindrosas forem as circunstâncias de vida dos alunos, não sendo de desprezar a ressonância afectiva que essas circunstâncias têm no seu “eu”. Factores individuais como a vulnerabilidade e a resiliência devem ser calculados, pelo que o raciocínio por vezes usado de que as crianças e jovens têm de aprender a encarar adversidades não pode ser aceite.

14. Será também mais pertinente se ao levantamento de dados em contexto restrito de turma, se proceder à sua exposição pública (a encarregados de educação, à comunidade escolar e ao acesso livre). Uma vez saídos do controlo do professor podem ser-lhe dados usos vários, distantes daqueles que presidiram à recolha, que pode ter sido bem-intencionada. 

15. A recolherem-se informações de teor socio-biográfico, elas devem restringir-se às estritamente necessárias para a adequada identificação dos alunos e dos seus encarregados de educação, o que, de resto, se encontra contemplado na Ficha de Matrícula. Face a esta evidência, devem os directores de turma recuperar informação desse documento e ficar a par dela para as diligências que forem necessárias.

III. Em suma

O uso desses instrumentos de carácter “socio-biográfico” é, nas escolas portuguesas, generalizado (estando presente em todas ou na maioria delas), indiscriminado (igual para todos os níveis de escolaridade e alunos…) e repetido (todos os anos ou em todos os inícios de ciclo).

Trata-se duma realidade já com algumas décadas, tendo, eventualmente, surgido por boas razões (conhecer os alunos como pessoas para melhor os ensinar). A sua implantação ganhou força de imposição, ainda que não haja qualquer indicação de obrigatoriedade por parte da tutela.

Em termos pedagógicos, o raciocínio de que o apuramento de dados relativos aos alunos, com apoio dos instrumentos ditos socio-biográficos em causa, apoiarão a construção do Projecto curricular/de trabalho de turma não colhe, pois o diagnóstico pedagógico que, para tanto, se requer terá de incidir nos conhecimentos que os alunos dominam e nas capacidades que revelam. São esses, e não outros aspectos, que cientificamente se recomenda que se indaguem.

Mas, ainda que se recomendasse a indagação de aspectos de ordem pessoal e social haveria que garantir que esses aspectos não invadiriam a privacidade e intimidade dos alunos, que, em termos éticos, deve ser preservada e, em termos pedagógicos, ensinada e/ou reforçada.

Assim, entendo que as escolas e os professores (sobretudo os directores de turma) devem repensar o sentido, a substância e o procedimento da estranha "moda" pseudo-pedagógica em destaque neste texto.

NOTAS

[1] Vargas Gomes sistematiza na obra O Código da Privacidade e da Protecção de Dados Pessoais na Lei e na Jurisprudência (nacional e internacional) (2006) os diplomas normativo-legais relativos à privacidade e protecção de dados dos sujeitos, os quais não encontram excepção em contexto escolar.
 DIPLOMAS FUNDAMENTAIS 
• Declaração Universal dos Direitos do Homem 
• Convenção Europeia dos Direitos do Homem:
- Protocolo n.º 1, de 20/03/52
- Protocolo n.º 4, de 16/09/63 
• Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 
• Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais 
• Convenção sobre os Direitos da Criança 
• Carta Social Europeia (Anexo)
DIPLOMAS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA 
• Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia 
- Resolução da Assembleia da República n.º 69/00, de 28/10 
DIPLOMAS FUNDAMENTAIS NACIONAIS 
• Constituição da República Portuguesa (Evolução legislativa do artº 35º)
• Código Civil 
• Código de Processo Civil 
• Código do Procedimento Administrativo 
DIPLOMAS FUNDAMENTAIS DE PROTECÇÃO DE DADOS 
• Convenção “108” do Conselho da Europa, de 28/01/81 (Protocolo adicional)
• Directiva Comunitária 95/46/CE, de 24/10/95 
• OCDE - Linhas Directrizes, de 23/09/80 
• Protecção de dados pessoais nos órgãos comunitários - Regulamento CE 45/01, de 18/12
• Evolução legislativa nacional 
- Lei 2/73, de 10/02 
- DL 555/73, de 26/10 
- Lei 3/73, de 5/04 
- Lei 10/91, de 29/04 
- Lei 28/94, 29/08 
- Resolução da Assembleia da República n.º 53/94, de 19/08 
- Lei 67/98, de 26/10 
- Lei de Organização e Funcionamento da CNPD - Lei 43/04, de 18/08 

 [2] Destaca-se
A Carta Deontológica do Serviço Público - Resolução do Conselho de Ministros nº 18/93, de 17 de Março.
Estatuto da Carreira Docente, Decreto-Lei n.º 41/2012 de 21 de Fevereiro, SECÇÃO II - Deveres Artigo 10.º
                                                           
[3] Destacam-se os seguintes trabalhos:
d`Orey Cunha, P. (1995). Para uma deontologia da profissão docente, II Análise e proposta de um código. Brotéria, vol. 140, pp.135-153.
Estrela, M.T. (1993). Profissionalismo Docente e Deontologia. Colóquio Educação e Sociedade, n.º 4, 185-210.
Monteiro, A.R. (2005). Deontologia das profissões da educação. Coimbra: Almedina
Silva, L. (1995). Para um código deontológico dos professores. Colóquio Educação e Sociedade, n.º 4.

10 comentários:

José Batista disse...

Este texto devia seguir para todas as escolas, para ser lido já nas próximas reuniões de diretores de turma e relembrado na primeira reunião de diretores de turma do próximo ano letivo (e dos seguintes, se houver necessidade).
Devia?
Mas quem o pode fazer, com a mínima garantia de sucesso?

Anónimo disse...

"e/ou" ... que português horrível.

capitão disse...

Parabéns pelo texto.
Há nos nossos licenciados uma sensação de que muita informação é fundamental para boas decisões , sem contarem que se a tiverem vão ter que se debater com muito lixo.
As melhores decisões são as que são tomadas com informação "suficiente " e é aqui que entra a inteligência. Saber colher para cada caso essa informação e esquecer toda a outra.

Cisfranco disse...

Em minha opinião, o anónimo podia encarregar-se de apontar os verdadeiros erros, que às vezes também se veem por aqui que não neste caso. A descrição evidencia bem por que pode ser uma situação ou outra. Daí que está correcto o uso de "e/ou". Depois, na escrita (como em quase tudo) , também é preciso contar com o estilo de cada um.

Anónimo disse...

Com o etilo e o gosto. O português de "e/ou" é péssimo, a lógica ... num exame de lógica daria para reprovar. E cada um embirra com os erros que o sensibilizam...ou ferem. (E se eu pusesse aqui "e/ou"?).

Anónimo disse...

Estou completamente de acordo com a autora deste «post». Junto uma história pessoal que talvez tenha interesse para o caso. Há cerca de 6 anos, frequentava a minha filha o Ensino Secundário, e foi entregue aos encarregados de educação um inquérito semelhante (ao erferido no texto do post) que o Ministério de Educação de então tinha distribuído às escolas com a indicação de preenchimento obrigatório. Na altura enviei o inquérito para a Comissão Nacional de Protecção de Dados, exprimindo o meu total desacordo com o seu conteúdo. Este organismo respondeu dizendo que o Ministério da Educação não podia solicitar tais dados e que, depois de várias queixas, tinham encetado contactos para definir em que termos poderia ser efectuado o inquérito. Pelo que me recordo, o Ministério da Educação acabou por abandonar o inquérito (cujo objectivo era criar uma base nacional de dados).
Este tipo de inquéritos, destinados a criar bases de dados (seja qual fôr o objectivo em causa)têm de ter sempre parecer prévio da Comissão Nacional de Protecção.
As importantes questões éticas envolvidas, a sua inutilidade pedagógica, a tendência cada vez mais crescente para a ingerência das instituições na vida privada dos cidadãos, recomendam a maior prudência e a necessidade da recusa deste tipo de instrumentos por parte dos cidadãos, da comunidade escolar, em particular professores, encarregados de educação e alunos (quando maiores de idade).
Com os melhores cumprimentos,

Manuela Almeida, Lisboa

Cisfranco disse...

"(E se eu pusesse aqui "e/ou"?)."

Se fizesse isso, num exame da sua lógica, segundo as suas palavras, não se safaria mais. Estava reprovado...

Helena Damião disse...

Estimada Leitora Manuela Almeida
Agradeço-lhe ter dado destaque à Comissão Nacional de Protecção de Dados. Sempre que se pretenda recolher dados em contexto escolar relativos a sujeitos, alunos e professores, deve solicitar-se-lhe parecer. As escolas não constituem excepção.
É justo que se referira o trabalho meritório desta Comissão. As recomendações da sua autoria de que de tenho conhecimento seguem estritamente a Lei, que é uma Lei que defende os princípios éticos envolvidos na privacidade e intimidade das pessoas.
Sempre que se tenham dúvidas relativas a este aspecto, elas devem ser apresentadas à referida Comissão, que, em geral, responde prontamente.
Cordialmente
Maria Helena Damião

Anónimo disse...

Acabem com o Construtivismo na Educação, já para não irmais longe, porque a Comissão Nacional de Protecção de Dados já foi cilindrada.
Não se recordam?
http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=2152653

J. F. Guimarães disse...

O ensino como está tem sequer algum futuro? Sériamente duvido e muito.

Hoje em dia é dados para tudo que já quase não nos querem deixar algum tempo para respirar. É a banca que quer vasculhar a vida do cliente, são os contadores inteligentes, são os sensos, são as escolas, é as finanças, é o estado, é a polícia, quase tudo quer bisbilhotar a vida do cidadão para assim o poder controlar e até escravizar.
Se eu sei como me chamo porque cargas de água tenho de ter um BI? E agora até existe a paranóia de os bebés também terem um. Algo não vai bem nesta alegada democracia capitalista, comunista, socialista ou lá o que é. Facto é que existem países onde não existe BI ou algo semelhante e no entanto os habitantes desses países não são menos felizes que em Portugal, até pelo contrário.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...