Novo texto do poeta Ângelo Alves:
René Char
Em Portugal, os grandes poetas do século vinte nasceram e viveram quase
todos na cidade. A minha Bairrada não é conhecida pelos seus poetas, mas pela
sua uva tinta Baga. Nas últimas semanas procurei informação sobre os poetas da
“Terra Verde”. Só conhecia Jaime Cortesão, Carlos de Oliveira – este mais
Gandarês -, João Grave e o poeta cavador e popular, Manuel Alves. Encontrei uma
lista de mais de uma dezena de versejadores, dos quais dois me prenderam a
atenção: Adão de Figueiredo e Rodrigo dos Santos. O primeiro, autor de “Cúria,
Flor da Bairrada”, nascera no Bolho, concelho de Cantanhede, levara uma vida de
boémio e acabara por se deixar seduzir pelo regime de Salazar. O segundo, autor
de “Clarão Vermelho”, poeta e ferroviário que nascera em “Vendas Da Pereira”,
Anadia; este livro fora, decerto, um dos livros em que a afronta ao salazarismo
se fizera de uma forma directa, despeitada e sem receios. Isto em 1936! Para
quem não conhece o livro deixo aqui dois sonetos:
Libelo Acusatório
Sociedade maldita, envenenada
Na bílis de asquerosos Preconceitos,
Detêm-te na carreira, ó desgraçada,
E segue outros caminhos mais direitos!
Já na Banda Oriental outra Alvorada
Vai assomando aos velhos parapeitos!
Corre, vem depressa, ó Luz amada,
Corrigir infamíssimos defeitos!
Legiões de famintos sem trabalho!
Virgens transpondo as portas do serralho,
Vendendo a carne, em flor, ao Capital!
Miséria! Fome! Lama! Escravidão!
Habitações sem Luz! Bocas sem pão!
Tuberculose, afia o teu punhal!
Se Cristo Existisse…
Jesus Cristo, foi nulo o sacrifício
Que fizeste na Cruz, para remir
A devassidão torpe, o crime, o vício
Dos ricos, que só gostam de oprimir!
Pregaste o Amor, a Igualdade, o Bem!
Nasceu o Ódio, a Prepotência, o Mal!
Se uns têm Palácios, outros nada têm,
Campeia o luxo em doido bacanal!
Jesus Cristo, meu pobre Nazareno!
De que vale seguir o teu Exemplo,
Se em vez de Pão vamos colher veneno?
Se visses alguns quadros que eu contemplo,
Vinhas pisar, de novo, este terreno,
Para expulsar os Vendilhões do Templo.
Os sonetos falam por si. Como é óbvio Rodrigo Dos Santos fora detido e
perdera seu emprego. Este autor vira seus ideais na tríade da revolução
francesa (liberdade, igualdade, fraternidade). Aliás, também três dos valores
que norteiam minha vida, e nortearam a de Samuel Maia, poeta de Ílhavo, que escrevera:
“A igualdade é o elemento primeiro da felicidade humana.” A desigualdade na
nossa sociedade é sem dúvida um dos principais motivos de nossa obscuridade.
A poesia de Rodrigo dos Santos tem métrica, tem ritmo, tem rima, tem
cabeça, tem sarcasmo, enfim tem tudo o que os críticos esperam da poesia. É,
para mim, surpreendente que o “Clarão Vermelho” esteja enterrado e que ninguém
o reacenda. As editoras portuguesas editam certos livros - as “bestas
célebres”-, que posteriormente se vem a saber que são plágio de Bob Dylan,
entre outros (se Marcel Proust fosse vivo, decerto reafirmaria que as
personagens de “À Procura do Tempo Perdido” são todas fictícias, excepto uma),
e, esquecem-se dos autores portugueses. Relembro os mais distraídos que
Guilherme Faria e Daniel Faria, dois grandes poetas, só recentemente foram
descobertos.
Regressando a Rodrigo dos Santos, quem se der ao trabalho de ler,
porque ler não é um ócio, vai encontrar muitas analogias com a poesia de
Natália Correia, sobretudo na visão que ambos tiveram da sociedade em que
viveram e na sua linguagem sem grilhetas. Se Natália Correia usara a expressão
“Vendilhões do Tempo”, Rodrigo dos Santos usara a expressão “ Vendilhões do
Templo”.
Ângelo Alves
2 comentários:
A tríade completar-se-ía a verité. Na França de francos, 1789.
Simples. Gostei.
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