Do ensaísta Eugénio Lisboa publica-se, como o prazer e proveito de sempre, este texto saído no último número do "Jornal de Letras":
No
espírito tacanho e preconceituoso de alguns figurões da nossa praça literária,
Manuel Alegre “perde” por se lhe colar ao rosto lírico, de alto gabarito
emotivo e oficinal, a legenda de lutador político e campeador melhorista, com,
ainda por cima, a adensar-lhe o curriculum, anos de exílio em Paris e Argel. O
êxito retumbante – e sonoro – de obras de resistência, como “Praça da Canção” (1965) e “O Canto e as Armas” (1967) e a
permanente e impregante presença de canções de irresistível sedução como, entre
outras, a celebérrima “Trova do vento que
passa”, cantada por Adriano Correia de Oliveira, conferem a este eminente
bardo um teor de “popularidade” que, entre nós, sobretudo no território das
sílfides universitárias, sempre se paga pela tarifa mais alta. Gomes Leal,
António Nobre, Junqueiro, Sá-Carneiro, Régio, Torga ou Mourão-Ferreira são,
como Alegre, poetas que as pessoas trazem no ouvido (e no coração) – e isso não
lhes é facilmente perdoado por aqueles (e são muitos) de quem ninguém recorda
nunca, de cor, um único verso. Pessoa também anda nos ouvidos (e, às vezes, nos
corações), mas, a este, tudo se lhe perdoa, vá lá saber-se porquê.
A
militância política de Alegre – de resto legítima e altamente nobilitante –
nunca o abandonou de todo, embora se tenha vindo a diluir num lirismo cada vez
mais decantado e, oficinalmente, mais perfeito. Referindo-se um dia ao livro de
“sátiras e epigramas” contundentes – “A
Chaga do Lado”, de Régio – David Mourão-Ferreira aludia “ao fundo
social e religioso” do poeta de Vila do Conde, indicando que, “neste sentido,
Régio é o continuador directo de poetas como Herculano, Antero, Gomes Leal ou
Junqueiro, a quem os seus contemporâneos jamais deixaram de perguntar «em que ponto se encontravam»,
nas suas relações com os homens e com
Deus.” E com o seu país, acrescentaria eu.
Com
Manuel Alegre, algo de muito semelhante
se passa: a cada seu novo livro, de poesia ou de ficção (e a sua poesia
é também ficção e a sua ficção também poesia), apetece-nos ir ver, neles, entre outras coisas, em que pé se encontra o
escritor, no que respeita ao “estado da Nação”. Nada disto faz dele menos poeta
– menos grande poeta - muito embora, às vestais, convenha que assim pareça.
O
tema do exílio, que impregna tanto belo poema seu – mesmo deste seu último
livro ( “Nada está escrito”, D.
Quixote) – vem de longe e com altos títulos de nobreza: glosam-no, por exemplo,
Eurípedes, na “Medeia”, ou Homero, na”Odisseia”. Exílio que habita, até, em
poetas que, fisicamente, nunca, por aí além, se exilaram: mais ou menos,
todos...
Em
Alegre, várias “vantagens” se volvem depressa em “desvantagens”, aos olhos dos
falsamente “exigentes”. O poeta de “Senhora
das Tempestades” é um grande lírico dos sentires mais íntimos, mas é,
também, um bardo da tribo ou, se preferirem, da comunidade. Fala aos “happy few” – e com que finura de arte
consumada! – mas fala também à tribo mais vasta dos aflitos: dos que perguntam,
sofrem e suplicam.
O
poeta e crítico inglês Thomas Ernest Hulme, morto, com 34 anos acabados de
fazer, em 28 de Setembro de 1917, por estilhaços de granada, na 1ª guerra
mundial, deixou uma importante, embora pouco vasta, obra de poeta e crítico,
que muito influenciou poetas como Robert Frost e, de um modo geral, todo o
modernismo anglo-saxónico. É de Hulme esta passagem extraordinariamente lúcida,
que aqui evoco, com prazer, a propósito do lado “comunal”, digamos assim, da
poesia de Alegre: “A linguagem”,
dizia Hulme, “é, pela sua própria
natureza, uma coisa comunal, isto é, nunca expressa a coisa exacta, mas, antes,
um compromisso – o qual é comum a ti, a mim e a toda a gente.” Isto é, toda a linguagem procura fazer isto: entrar em compromisso, abdicar de um certo teor
de “exactidão”, para poder aumentar o leque dos que lhe têm acesso. Toda a
linguagem, repito. Mas, em alguns poetas, um certo e talvez inevitável lado
mais “obscuro” (de mais difícil acesso) excede, de longe, o lado mais acessível
– e a “dificuldade”, que Steiner estudou, impõe-se. Alegre acumula – tem passagens exigentes (ou mais exigentes) mas, mesmo
nessas, há uma óbvia sedução que agarra
o leitor e o obriga a não arredar, do poema, a sua atenção. Um dos recursos
(não o único) que Alegre não recusa – como não o recusam os grandes poetas do
modernismo anglo-saxónico – é a rima,
de que se afastam, como da peste, tantos cultores lusíadas do chamado “verso
livre”. Verso livre usa-o também Alegre, mas quase sempre bem “aguentado” por
“rimas de apoio”, ou abundantes, ou discretamente disseminadas. A rima serve,
como sabe quem sabe, para aumentar a força sugestiva do dizer, “valendo-lhe”, onde outras coisas lhe não valem, como muito
bem disse Régio, quando cantava o poder de sugestão da rima, numa conhecida
ode: “Tu lhe vales, /se as palavras não
chegam. Tu lhe trazes /a Frase-Espírito das frases /incompletas.”
A
rima, em suma, acrescenta: faz as
palavras “chegarem” até onde, de outro modo, chegariam menos... Numa sátira de
1664 (“Sur la difficulté de trouver la
rime” ), Boileau, dirigindo-se a esse mestre alado da rima, que foi
Molière, pede-lhe lições que lhe forneçam asas: “Dans descombats d’espritsavant maître d’escrime, / Enseigne-moi,
Molière; où tu trouves la rime” ( “Em justas de graça, sábio mestre de
esgrima, / Diz-me, Molière, onde achas tu a rima”). E nota, quase com inveja,
referindo-se à rima: “Ondirait, quando tu
veux,qu’elle te vientchercher” ( “Basta quereres, para ela te buscar”). E,
por fim: “À peine as-tu parléqu’elle-mêmes’yplace”
(“Mal deixas de falar, já ela aí está”).
Alegre
insinua a rima, nos seus poemas (mesmo os de verso livre), com a mesma “força
fácil” que Boileau , delicadamente, invejava ao mestre da comédia francesa,
sagrando-se ele, Alegre, igualmente mestre nesse “rude métier”, como lhe
chamava o autor da “Art Poétique”.
Tudo
isto me veio à mente, a propósito deste belíssimo livro – “Nada está escrito” – que Manuel Alegre acaba de publicar: nele
fremem, como sempre, melhor do que antes, todos os seus grandes temas e
obsessões, não excluindo, claro está, o do seu inextinguível amor à Liberdade.
O grande Alain, que suponho ser hoje muito pouco lido pelas gerações mais recentes,
observava que “Hugo é um desses homens
que voltam sempre à liberdade como fonte de todo o bem.” Alegre também:
veja-se o poema com esse título, que fulgura, já perto do fim do livro, na
página 80:
“Eles não sabem
do grande espaço aberto
onde voam os
patos e as narcejas
nem procuram as
sílabas perdidas
que há muito
outros cantaram e onde brilhavam
as espadas o sol
e a liberdade”.
A
poesia de Alegre ousa e vigia-se, atreve-se e contém-se, ilumina o escuro que
também a habita, hesita entre a mais ampla sonoridade e o mais fechado
silêncio: grita e cala-se. Sofre e levanta-se. Tenta o impossível. Alguém dizia
que a poesia é a tentativa endiabrada de pintar a cor do vento. A poesia de
Manuel Alegre por certo que ensaia
erguer-se até ao topo desta loucura.
P. S. – Na tradução dos versos de Boileau, que acima dou, procurei, para a
versão portuguesa, as mesmas doze sílabas do original.
Eugénio Lisboa
23 comentários:
Mesmo em termos poéticos, "pintar a cor do vento" não passa de uma patetice! JCN
"Patetice é não saber ler poesia. Isso aprende-se, lendo poesia. Há até livros e cursos. E há sobretudo não se julgar mais inteligente do que os outros." - Eugénio Lisboa
Patético!... JCN
Suponho que indirectamente me está chamando "inteligente"! Vou já pedir... uma qualquer equivalência, nem que seja a "pintor do vento"! JCN
Será que a poesia consiste em dizer... parvoeiras?! JCN
Obviamente JCN não sabe do que está a falar. Está num nível de leitura ainda muito básico. Segundo JCN, o verso de Camões, segundo o qual, amor "é ferida que dói e não se sente" não passa de uma "parvoeira" (para usar o seu glossário revelador). E um bom milhar de versos célebres, de todos os quadrantes do mundo, não passariam de "parvoeiras" (e algumas afirmações famosas da matemática - "um conjunto aberto não pode ser fechado" - não seriam mais do que lapalissadas...). Se ler um bocadinho (só um bocadinho...), começará a perceber. Sobretudo, se for humilde e, com humildade, fizer uso da sua inteligência (que eu, por acaso, me esqueci de lhe atribuir: percebeu mal).
P. S. - Não voltarei a isto. JCN não quer diálogo sério. Quer palco. Com a minha ajuda, não terá mais.
Eugénio Lisboa
Caro Eugénio Lisboa:
Não nos conhecemos pessoalmente, mas leio-o muito nas suas várias intervenções públicas de natureza literária. E tenho uma grande consideração intelectual e muito respeito por si.
Em relação a este senhor, que apenas conheço das suas frequentes intervenções no De Rerum Natura, num registo entre o provocatório e o jocoso, o Eugénio Lisboa cometeu pelo menos dois erros capitais que lhe feriram o ego.
Disse:
«No espírito tacanho e preconceituoso de alguns figurões da nossa praça literária»
e
«a permanente e impregante presença de canções de irresistível sedução como, entre outras, a celebérrima “Trova do vento que passa”, cantada por Adriano Correia de Oliveira, conferem a este eminente bardo um teor de “popularidade” que, entre nós, sobretudo no território das sílfides universitárias, sempre se paga pela tarifa mais alta».
Pois é, este senhor foi professor universitário e é praticante da arte de versejar, pelo que se sentiu duplamente atingido.
P. S. Quero dizer que não voltarei a comentar este assunto independentemente da previsível resposta ao melhor estilo petulante do senhor JCN.
Vá lá que, embora entre parênteses, ainda se lembrou... de ma "atribuir"! JCN
Temos de concordar que essa de "pintar a cor do vento", longe de ser uma qualquer metáfora, não passa de uma rotunda "parvoeira" que, no meu "glossário", é equivalente a patetice. JCN
Quanto a "palco", meu caro Senhor, andamos todos... ao mesmo! JCN
Nem toda a jocosidade
constitui provocação,
sendo tudo uma questão
de susceptibilidade!
JCN
Se a meu respeito não sabe,
Senhora, mais do que escreve,
dizer-lhe apenas me cabe
que lê menos do que deve!
JCN
Atirar pedra e fugir,
atrás do muro se pondo,
não é meu jeito de agir
pois meu rosto nunca escondo!
JCN
Cara Aurélia Santos, fico-lhe muito grato pelas suas palavras simpáticas. Claro que eu já pressentira, no palavreado obsessivo e malcriado do Sr. JCN, o clássico ressentimento dos mal-amados. Urso mal lambido dá sempre para o torto. Mas faz pena ver tanto espaço de um site tão interessante repetidamente ocupado por quem não cuida de encontrar modo mais curial de aliviar a sua bílis milenar. É a vida, como dizia o simpático António Guterres. Que fazer?, perguntava Lenine, que eu não admiro, particularmente, mas cuja pergunta (título de um livro) me serve para o caso vigente...
Ao que se desce, sr Eugénio! JCN
Que triste figura de "urso" vossemecê, sr. bem-amado Eugénio, acaba de fazer! Será falta de "lambidela"?... JCN
Letras ao decurso do assunto em questão. Que pena.
Será, caro Dr. Rui Baptista, que também para os "ursos" há discriminação?! Espero... para ver! JCN
Sinto-me enojado... com esta sua parcialidade, caro Dr. Rui Baptista! Os "ursos" ou lambem todos... ou haja moralidade: até o sapateiro de Braga sabia desta poda! Com que autoridade "moral" suprimiu os meus comentários... em legítima resposta?! "Quam terra sordet"! JCN
Tem razão, Cláudia S. Tomazi: "Que pena"! JCN
A reacção do senhor Eugénio Lisboa é deplorável. Mais um santo com pés de barro? Não conheço o João de Castro Nunes, mas estou com ele. Pintar a cor do vento é uma patetice. E mesmo que o não fosse. Isto anda pelas ruas da amargura.
Por uma última vez, venho aqui. O Senhor Ricardo Soares acha deplorável que eu me defenda civilizadamente dos insultos que ele e o Sr. JCN me dirigiram, a propósito de um texto que não entendem. Mas não acham deplorável confundirem comentário com insulto. Eu acho deplorável eles não saberem o que é realmente deplorável. E ignorarem de todo que um texto poético não se lê com o bom senso rasteiro que querem, por força, aplicar ao título que dei à minha crónica sobre um libro de Manuel Alegre. (O título foi, aliás, colhido em autor de reconhecido gabarito, cujo nome, já agora, não indico, por pirraça...)
Pelos vistos os meus "comentadores" ignoram a figura de retórica que dá pelo nome de "hipérbole", o que os levará a ter como "patetice", algumas das passagens mais célebres e contundentes dos adsmiráveis poemas de Álvaro de Campos (supremo pateta, no juízo sereno destes sages!) Só um exemplo de suprema patetice, num verso do famoso heterónimo de Pessoa: "Aquela que é o anel deixado em cima da cómoda". É claro que eu entendo, ao ler os "poemas" com que JCN inunda o DNR, que ele tenha dificuldade em ler poesia um pouco mais sofisticada. É deplorável, mas é compreensível.
É tudo. Só lamento que o meu texto sobre um belo livro de Manuel Alegre suscite, sobretudo, este tipo de "comentário". Faz pena.
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