sábado, 17 de março de 2012

Carta a professores, alunos, pais, governantes, cidadãos, e quaisquer outros que possam sentir-se tocados ou identificados

De um leitor e comentarista do De Rerum Natura, António Bettencourt, recebi, com a adjectivação de “dilacerante”, um post, publicado no blogue Delito de Opinião (15/03/2012), que denuncia em carta, subscrita por Sara Fidalgo, as razões que conduziram a um destino trágico de sua Mãe, vitimada pela prepotência de medidas emanadas da 5 de Outubro e exercidas sobre os professores tornando-os numa espécie de escravos da Grécia Antiga (pedagogos), por vezes, servindo até de pasto a feras do circo romano em que se transformou o ensino em Portugal. Com a devida vénia, se transcreve o texto integral do supracitado post:
“As reformas na educação estão na boca do mundo há mais anos do que os que conseguimosrecordar, chegando ao ponto de nem sabermos como começaram nem de onde vieram.

Confessando, sou apenas uma das que passaram das aulas de uma hora para as aulas de noventa minutos e achei aquilo um disparate total. Tirava-nos intervalos, tirava-nos momentos de caçadinhas e de saltar à corda e obrigava-nos a estar mais tempo sentados a ouvir sobre reis, rios, palavras estrangeiras e números primos.
Depois veio o secundário e deixámos de ter 'folgas' porque passou a haver professores que tinham que substituir os que faltavam e nós ficávamos tristes. Não era porque não queríamos aprender, era porque as “aulas de substituição” nos cansavam mais do que as outras. Os professores não nos conheciam, abusávamos deles e era como voltar ao zero.

Eu era pequenina. E nunca me passou pela cabeça pensar no lado dos professores. Até ao dia 1 de Março.

Foi o culminar de tudo. Durante semanas e semanas ouvi a minha mãe, uma das melhores professoras de Inglês que conheci, o meu pilar, a minha luz, a minha companhia, a encher a boca séria com a palavra depressão. A seguir vinham os tremores, as preocupações, as queixas de pais, as crianças a quem não conseguimos chamar crianças porque são tão indisciplinadas que parece que lhes falta a meninice. Acreditem ou não, há pais que não sabem o que estão a criar. Como dizia um amigo meu: “Antigamente, fazíamos asneiras na escola e quando chegávamos a casa levávamos uma chapada do pai ou da mãe. Hoje, os miúdos fazem asneiras eos pais vão à escola para dar a dita chapada nos professores”. Sim, nos professores. Aqueles que tomam conta de tantos filhos cujos pais não têm tempo nem paciência para os educar. Sim, os professores que fazem de nós adultos competentes, formados, civilizados. Ou faziam, porque agora não conseguem.

A minha mãe levou a maior chapada de todas e não resistiu. Desculpem o dramatismo mas a escola, o sistema educativo, a educação especial, a educação sexual, as provas de aferição e toda aquela enormidade de coisas que não consigo sequer enumerar levaram deste mundo uma das melhores pessoas que por cá andaram. E revolta-me não conseguir fazer-lhe justiça.

Professores e responsáveis pela educação, espero que leiam isto e acordem, revoltem-se, manifestem-se (ainda mais) mas, sobretudo e acima de qualquer outra coisa,conversem e ajudem-se uns aos outros. Levem a história da minha mãe para as bocas do mundo, para as conversas na sala dos professores e nos intervalos, a história de uma mulher maravilhosa que se suicidou não por causa de uma vida instável, não por causa de uma família desestruturada, não por dificuldades económicas, não por desgostos amorosos mas por causa de um trabalho que amava, ao qual se dedicou de alma e coração durante 36 anos.

De todos os problemas que a minha mãe teve no trabalho desde que me conheço (todos os temos, todos os conhecemos), nunca ouvi a palavra “incapaz” sair da boca dela. Nunca a vi tão indefesa, nunca a conheci como desistente, nunca pensei ouvir “ando a enganar-me a mim mesma e não sei ser professora”.

Mas eraverdade. Ela soube. Ela foi. Ela ensinou centenas de crianças, ela riu, ela fez o pino no meio da sala de aulas, ela escreveu em quadros a giz e depois em quadros electrónicos. Ela aprendeu as novas tecnologias. O que ela não aprendeu foi a suportar a carga imensa e descabida que lhe puseram sobre os ombros sem sentido rigorosamente nenhum. Eu, pelo menos, não o consigo ver. E, assim, me manifesto contra toda esta gentinha que desvaloriza os professores mais velhos, que os destrói e os obriga a adaptarem-se a uma realidade que nunca conheceram.

E tudo isto de um momento para o outro, sem qualquer tipo de preparação ou ajuda. Esta, sim, é a minha maneira de me revoltar contra aquilo que a minha mãe não teve forças para combater. Quem me dera ter conseguido aliviá-la, tirar-lhe aquela carga estupidamente pesada e que ninguém, a não ser quem a vive, compreende. Eu vivi através dela e nunca cheguei a compreender. Professores, ajudem-se. Conversem.

E, acima de tudo, não deixem que a educação seja um fardo em vez de ser a profissão que vocês escolheram com tanto amor. Pensem no amor. E, com ele, honrem a vida maravilhosa que a minha mãe teve, até não poder mais”.
Sara Fidalgo

4 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Revoltarem-se, os professores?

Talvez só, e quando, algum for

morto em plena sala de aula. E

mesmo assim duvido.

Mas ainda há os que, a plenos

pulmões, chamam os "bois" pelos

nomes nas próprias (e múltiplas)

reuniões a que são sacrificados.

Um deles, um dia destes traduziu

as iniciais do delirante "projeto

curricular de turma", vulgo PCT, por

"plano cheio de trampa". E há mesmo

os que, no meio da sala de professores,

já tratam os produtores de pseudo

teorias pedagógicas por "bandalhos do

eduquês". E respondem "ao calhas" caso

sejam obrigados a preencher fastidiosos

inquéritos. E riem-se, com desprezo,

de algumas normas, até mesmo legais.

Desde o "rodriguismo", que tanto político

aplicado apoiou, que as coisas estão/ficaram

assim.

E não havia necessidade.

Por isso vejo como prudente e profilático,

mas sobretudo útil para o futuro do país,

que os professores constituam uma

organização que tenha uma palavra a

dizer no que tange ao exercício da sua

profissão.

Se não for assim não sei onde vamos

parar. Quando o desespero é muito...

Fartinho da Silva disse...

E pior vai ser, porque contra os lobbies não vejo ninguém marchar.

José Batista da Ascenção disse...

Pois, caro Fartinho, os professores são mais para a

"marcha" da obediência. E por vezes levam a obediência

ao extremo infernizando a sua própria profissão.

Nisso, os "lóbis" têm sido, e continuam a ser, de

grande eficácia.

Nota: lá acima, em comentário anterior, onde escrevi

..."reuniões a que são sacrificados"... queria ter

escrito ..."reuniões com que são sacrificados"...

Dúvida Metódica disse...

Sou professora do secundário e a
propósito deste testemunho fiz um comentário que pode ser lido em

http://duvida-metodica.blogspot.pt/2012/03/sinto-sempre-que-me-falta-fazer.html

Sobre um outro assunto, que se relaciona com o que é descrito nesta carta, a aplicação do modelo de avaliação de professores nos governos de Sócrates e também o novo modelo de avaliação, que irá ser aplicado pelo actual governo, pode ler-se em

http://duvida-metodica.blogspot.pt/2012/03/porque-e-que-avaliacao-dos-professores.html

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