Mais um episódio da história química de animais marinhos. Desta vez a raia eléctrica, que ajudou a descobrir a electricidade e contribuiu para o entendimento da transmissão dos impulsos nervosos nos animais, abrindo caminho ao desenvolvimento de medicamentos mais específicos e eficazes.
A raia eléctrica (Torpedo marmorata L.) possui orgãos eléctricos que podem dar um choque de mais de duzentos volts durante cerca de um segundo. Este peixe, assim como a enguia eléctrica e o peixe-gato eléctrico, desde sempre maravilharam os naturalistas e atraíram a atenção de médicos e cientistas. Os orgãos eléctricos destes peixes comportam-se como verdadeiras pilhas eléctricas com as quais estes animais podem atordoar as suas vítimas, mas só depois do final do século XVIII tal começou a ser entendido. O excêntrico Cavendish, ao construir um modelo da raia eléctrica com base numa garrafa de Leiden, que era na altura um objecto científico bem conhecido pelos choques eléctricos que dava, convenceu a comunidade científica de que a mordedura destes peixes era de natureza eléctrica. Mais tarde, a discussão entre Galvani e Volta sobre a existência da electricidade animal, conduziu Volta ao desenvolvimento da primeira pilha eléctrica. A pilha de Volta revelou-se um modelo muito melhor da raia eléctrica, com a vantagem de proporcionar uma corrente eléctrica contínua. Estava aberto o caminho aos desenvolvimentos científicos e tecnológicos que a electricidade nos trouxe. E tudo isso com a ajuda de uns peixes exóticos!
Mais recentemente, a raia eléctrica e os seus primos eléctricos revelaram ser um óptimo meio para estudar os mecanismos de transmissão dos impulsos nervosos nos animais. Os cientistas puderam fazer isso medindo as correntes eléctricas ao mesmo tempo que manipulavam células nervosas da raia eléctrica e mediam as concentrações dos iões no seu interior e exterior. Verificaram que o processo envolvia os iões sódio e potássio que circulavam para dentro e para fora das células nervosas através de canais com a ajuda de uma molécula chamada acetilcolina que estes peixes produzem em grande quantidade e para a qual têm muitos receptores. Os cientistas contaram também com a ajuda de venenos de outros peixes e cobras que usaram para bloquear a transmissão dos impulsos nervosos e assim estudar melhor o funcionamento e controlo destes impulso.
Só há pouco tempo foi possível perceber qual a estrutura tridimensional dos canais iónicos e entender melhor porque os canais de sódio e potássio são específicos para cada um destes iões e não permitem a passagem do outro ião.1 Para isso, os cientistas contaram com uma técnica muito poderosa para determinar a estrutura das moléculas: a difracção de raios x.2
Mas voltando à raia eléctrica: por que razão não dá esta choques em si mesma, pergunta o meu filho? Os peixes eléctricos controlam, através do seu sistema nervoso, o momento em que produzem a descarga eléctrica. São também muito sensíveis aos campos eléctricos que os rodeiam, controlando muito bem as descargas eléctricas que produzem. Os peixes eléctricos não dão choques em si mesmos porque as suas células produtoras de electricidade, assim como os órgãos que originam a descarga eléctrica, estão muito bem isolados do resto do seu corpo. Por outro lado, as suas vítimas recebem o choque eléctrico em todo o corpo, através da água. Assim, embora não dêem choques em si mesmos, os peixes eléctricos poderiam na prática dar choques uns aos outros, o que normalmente não fazem.
Referências
- The Shocking History of Electric Fishes: From Ancient Epochs to the Birth of Modern Neurophysiology, S. Finger e M. Piccolino (OUP, USA, 2011).
- Biochemistry, J. M. Berg, J. L. Tymoczko e L. Stryer (Freeman, USA, 2002).
Notas
1O sódio não passa no canal de potássio por, paradoxalmente, ser muito pequeno e assim não ser favorável, em relação à energia de solvatação, a energia de interacção deste com os resíduos moleculares do canal. Já o potássio não passa no canal do ião sódio por ser demasiado volumoso.
2A difracção de raios x está relacionada com as típicas radiografias apenas por usar radiação da região dos raios x. De facto, a imagem que a difracção de raios x permite obter das moléculas é conseguida de forma indirecta. Primeiro é preciso que as moléculas tenham sido cristalizadas. Em seguida, como num cristal as distâncias entre os átomos apresentam regularidades periódicas, aparecem padrões no espectro dos raios x difractados que, depois de analisados (actualmente usando programas de computador), revelam a estrutura tridimensional da molécula. Vale a pena o esforço, pois conhecer a estrutura e o funcionamento dos canais iónicos é muito importante para um melhor entendimento dos mecanismos de controlo da dor e do vício das drogas e se poderem desenvolver medicamentos mais específicos e eficazes. Apenas em 1998 foi obtida a estrutura dos canais de potássio por raios x (Prémio Nobel em 2003). Nos livros de bioquímica publicados até 2011 não aparecem estruturas tridimensionais do canal de sódio. De facto, só em Julho de 2011 foi publicado na Nature (The crystal structure of a voltage-gated sodium channel, Payandeh J, Scheuer T, Zheng N, Catterall WA, Nature. 2011, Jul 10) a estrutura obtida por difracção de raios x de um canal de sódio de uma bactéria, revelando os truques utilizados para a sua especificidade para o sódio.
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2 comentários:
Muito bom!
Bela resposta (mais uma) a quem pergunta para que serve estudar ciência básica!
Há rios brasileiros com este peixe.
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