quinta-feira, 17 de novembro de 2011

"A vida plena é a vida do equilíbrio difícil"

Por ocasião de recente visita do nosso Presidente da República aos Estados Unidos da América, foram entrevistados vários empresários portugueses bem sucedidos. Um dos mais bem sucedidos, senhor de uma enorme fortuna, começou assim: “Se alguns têm prioridades que não seja o trabalho...” e continuou, afirmando a ideia de que esses alguns não vão a lado nenhum.

Deu-me que pensar: na vida – nos poucos, pouquíssimos, anos que temos de vida –, a nossa prioridade absoluta deverá ser o trabalho? O trabalho que se faz para ganhar dinheiro?

As pessoas são muito diversas e talvez, o trabalho, só o trabalho, nada mais do que o trabalho, faça felizes algumas delas. Nada tenho a opor, só tenho de aceitar isso como uma opção… de vida.

Outras pessoas haverá que, trabalhando, não circunscrevem a sua vida ao trabalho, por assumiram opções igualmente legítimas: apreciar o dolce fare niente, dedicar-se à família, aos estudos, embrenhar-se nisto e naquilo.

Se pensarmos no assunto, além destas, encontraremos, obviamente, muitas outras opções de vida, até aquelas em que o trabalho está excluído.

O que eu pretendo dizer é que querer-se que toda a gente assuma a mesma opção para a sua própria vida, sem ter em conta uma margem de livre arbítrio é, no mínimo, questionável. E mais questionável será não se tendo a certeza dessa opção de vida cumprir o desígnio do humano.

Pode o leitor argumentar que estamos face à mera opinião dum empresário que usa o seu exemplo pessoal como bandeira de discurso. Não é assim: a sua voz é uma voz que se ouve cada vez mais alto.

E tanto assim é que, passados dois ou três dias, ouvi mais um eco dessa voz. Era de um político, também português, que, justificando o aumento de tempo de trabalho e a redução de salários afirmava, sem denotar qualquer dúvida ou incerteza: “Temos de competir a nível mundial”. Se passarmos, como me pareceu estar implícito, dos níveis nacional, europeu e ocidental para o “nível mundial” teremos de incluir a China, por exemplo, onde os desígnios da vida são... o que são.

Ambas as declarações me fizerem lembrar de Agostinho da Silva, um apologista do ócio, apesar de muito ter trabalhado deste e do outro lado do Atlântico. No Dia Mundial da Filosofia não me parece descabido convocar as palavras dum filósofo como alavanca para pensarmos nas opções de vida neste (ainda) início de século).
“Uma das coisas que nos oprime na personalidade é o facto de termos de exercer no mundo uma profissão, de termos de ter um trabalho. Então por mais que cultivemos as nossas vocações, na realidade pomos muita coisa de parte porque a complexidade do mundo não dá tempo para o homem ser, por exemplo, ao mesmo tempo um grande médico e um grande engenheiro, embora num ou noutro ponto possa ter uma ideia da engenharia ou ser um engenheiro com uma ideia de medicina, mas como profissão, como aplicação total das suas forças, não é possível. Então o segredo para nós podermos desenvolver a nossa personalidade vai ser o de ver de que maneira vamos abolir no mundo a obrigação do trabalho, de que maneira vamos organizar as coisas de modo que as coisas materiais, digamos, as máquinas, trabalhem para nós. Ora, para construir as máquinas, só podemos fazê-lo sob o imprevisível. Nunca ninguém enamorado do imprevisível conseguiu construir uma máquina.

Então foi preciso que a Humanidade vivesse completamente no domínio do previsível e no qual, provavelmente vai ter de continuar ainda algum tempo, anos ou séculos, não sabemos, para que realmente a máquina chegue à sua máxima elaboração, cujo fim, será o de nunca nos oprimir, em que só tenham de trabalhar com ela os homens que lhe tenham amor, homens que estejam apaixonados pela máquina; ao passo que hoje a maior parte das pessoas trabalha com ódio à máquina e por isso é que tanta gente tem medo das invenções técnicas, porque tem medo que elas venham a ser opressoras da Humanidade (…)

A vida plena é a vida do equilíbrio difícil. A vida do equilíbrio fácil é aquela que leva hoje quase toda a gente no mundo, mas em que as pessoas na maior parte das vezes estão tristes. Há milhares de médicos que vivem da depressão das pessoas, e esses milhares vivem de uma coisa que grande parte da sociedade explora, que são os meios de deprimir as pessoas."
Referência completa: Agostinho da Silva (1994). Vida conversável. Lisboa: Assírio e Alvim, pp. 37-38.

2 comentários:

Anónimo disse...

"In praise of idleness" Bertrand Russell

Anónimo disse...

- O que é uma vida plenamente vivida?

Há na nossa existência uma expressão terrivelmente dramática (lato sensu).

A "Paulino".
" Verás os homens mais poderosos, e elevados aos mais altos postos, deixar escapar palavras nas quais desejam e louvam o ócio e o preferem a todos os seus bens. Por um momento desejam abdicar daquela sua proeminência, se for possível fazê-lo em segurança, pois ainda que nada venha do exterior assaltá-la ou abalá-la, por si só a fortuna se desfaz. O divino Augusto, a quem os deuses, mais do que a qualquer outro mortal, favoreceram, nunca deixou de almejar repouso para si próprio e desejar folga dos assuntos públicos; todas as suas falas voltavam sempre ao mesmo ponto: a esperança de ócio. Isto distraia suas penas com o seguinte consolo, fingido, contudo doce: um dia haveria de viver para si mesmo. Em certa carta endereçada ao Senado, como prometesse que seu repouso não haveria de ser desprovido de dignidade e seria condizente com sua glória passada, encontrei essas palavras: É porém mais ilusório que essas coisas se realizem do que podem ser prometidas. Contudo o desejo daquele tempo, que tanto ambiciono, me anima de tal forma, que antecipo algo do desejado pela doçura das palavras pronunciadas, ainda que tarde seu deleite. O ócio era uma coisa tão almejada, que, por não poder dele usufruir, antecipava-o em pensamento. Ele, que via todas as coisas dependerem unicamente de si, que decidia a sorte dos homens e das nações, com muita satisfação pensava no dia em que se despojaria de sua grandeza. Estava ciente de quanto suor exigiam aqueles bens que brilhavam por todas as terras, de quantas inquietações reprimidas eles ocultavam: forçado primeiramente a combater os cidadãos, depois os amigos, e finalmente os mais próximos de si, em mar e em terra fez correr sangue. Tendo levado a guerra à Macedônia, Sicília, Egito, Ásia e a quase todas as costas, dirigiu os exércitos já cansados de oprimir romanos às guerras externas. Enquanto pacifica os Alpes e subjuga inimigos infiltrados em meio à paz do Império e estende as fronteiras para além do Reno, do Eufrates e do Danúbio, na própria Roma contra ele se voltavam os punhais de Murena, Cepião, Lépido, Egnácio e de tantos outros. Ainda não havia escapado das armadilhas destes, e sua filha e muitos jovens nobres entregavam-se ao adultério, como se isso fosse um sacramento, atormentando dessa forma sua velhice; e ainda havia uma segunda e temível união de uma certa mulher a um Antônio. Ele arrancava esses males com suas próprias mãos, e outros, latentes, irrompiam; tal como num corpo ferido e sangrando, uma outra parte qualquer sempre se rompia. Por isso desejava o ócio; todos os seus labores residiam nessa esperança e pensamento: tal era o desejo daquele que podia satisfazer todos os desejos."

Lucius Aneus Sêneca
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