segunda-feira, 14 de novembro de 2011

PREFÁCIO A “CÁLCULO” DE CARL DJERASSI


Meu prefácio ao livro "Cálculo" de Carl Djerassi, saído na Imprensa da Universidade de Coimbra, que vou apresentar amanhã, dia 15 de Novembro, pelas 19 h. no Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, com a presença do autor, que faz uma conferência no mesmo local pelas 17 horas sobre ciência e teatro:

Um dos maiores confrontos intelectuais de todos os tempos foi o que ocorreu, no início do século XVIII, entre o inglês Isaac Newton e o alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz. O motivo da polémica foi o da invenção do cálculo infinitesimal, um ramo da matemática que acabou por mudar o mundo. De uma maneira resumida, o cálculo infinitesimal permite efectuar previsões sobre o movimento de um objecto desde que se conheça a sua posição e a sua velocidade. Por outras palavras, permite conhecer antecipadamente o futuro a partir de informação sobre o presente. Sem o cálculo não poderíamos nunca ter colocado astronautas na Lua nem, algo computacionalmente mais intrincado embora pareça trivial pois os resultados são publicados todos os dias nos jornais, saber o tempo meteorológico que vai fazer amanhã.

Hoje sabemos que Leibniz publicou primeiro os fundamentos do cálculo – e isso em ciência, pelo menos modernamente, é o que conta – embora, trabalhando de modo independente e usando outras notações, Newton se tenha antecipado a ele. Hoje em dia, apesar de Newton ter ficado mais famoso na galeria mundial dos sábios, preferimos usar as notações de Leibniz, um polímato com formação jurídica que deu não só inestimáveis contributos à ciência como, principalmente, à filosofia. Aliás ele deu também cartas nas leis, na religião, na história, na política e na literatura, revelando-se por isso um pensador muito mais completo do que Newton, que se concentrou à luz do dia na física, ao mesmo tempo que se dedicava na obscuridade à alquimia e à teologia.

A polémica entre os dois gigantes foi bem mais longe do que a disputa na primazia de um grande ramo da árvore da matemática: eles discutiram, embora Newton usasse uma interposta pessoa, o papel de Deus no mundo. Para Newton, Deus tinha criado o Universo, mas este não poderia funcionar sem intervenções pontuis da divindade. Havia uma espécie de “Deus de fato-macaco” que aparecia no mundo a fazer uns trabalhinhos de vez em quando, um pensamento que Lebniz considerava uma evidente heresia, pois ele significaria que Deus não seria perfeito e, portanto, não seria Deus. E a isto contrapunha Newton, pela voz do seu amigo Samuel Clarke, que a ideia de que o mundo é uma máquina, que funciona sozinha, tende a “banir do Mundo a Providência e a governação de Deus”. Era, cúmulo da balasfémia, chamar preguiçoso a Deus. Cada um chamava ímpio ao outro, a pior acusação que se podia fazer na época.

A peça de teatro do químico norte-americano Carl Djerassi que aparece aqui vertida em bom português pela mão do encenador e actor Mário Montenegro, precedida por uma nota do autor sobre as personalidades que são retratadas no enredo, é um magnífico contributo para a cultura científica portuguesa. Serve-se da linguagem muito expressiva do teatro para nos dar conta não só dos problemas do tempo da Revolução Científica – que não são no caso o que mais importa – mas também das perenes questões que têm a ver com o carácter humano da ciência. A construção da ciência é um drama que se insere no grande drama humano no mundo. A personalidade de Newton, em particular, dá ensejo, no teatro, à criação de um personagem que é ao mesmo tempo um génio e um vilão. Um grande génio, é certo, mas também um grande vilão, uma pessoa que, de forma inteligente, não hesita em escolher refinados meios para alcançar os seus pérfidos fins. Em particular, presidindo à Real Sociedade de Londres (Royal Society), a sociedade científica mais antiga do mundo em contínua actividade (foi fundada em 1660 e reconhecida dois anos mais tarde pelo rei Carlos II, o marido da nossa Catarina de Bragança), não hesitou em nomear uma comissão internacional de sábios inteiramente controlada por ele e com trabalho em larga medida fictício para lhe dar inteira razão na polémica da invenção, ou como alguns preferem, da descoberta do cálculo. Leibniz, sem ser ter sido visto nem achado, acabou condenado como um reles plagiador.

De Djerassi já existia na dramaturgia traduzida em português a peça Oxigénio, sobre a polémica associada à descoberta desse elemento químico, escrita em co-autoria com o Prémio Nobel da Química norte-americano Roald Hoffmann, que foi publicada pela Editora da Universidade do Porto em 2005 e posta em cena nesse mesmo ano pela companhia Seiva Trupe do Porto. Tinha, no ano anterior, sido representada no Teatro da Trindade, em Lisboa, a sua peça Esse Espermatozóide é Meu. Mas ainda não foi até à data representada entre nós uma sua peça Three in a Couch, inspirada nos heterónimos de Fernando Pessoa... O autor dá-nos em Cálculo, cuja representação é estreada em Coimbra, pelo grupo Marionet, quase em simultâneo com o lançamento deste livro, uma visão bastante original da polémica setecentista sobre as origens do cálculo. Em vez de Newton e Leibniz o embate é entre dois dramaturgos, os Senhores John Vanbrugh e Colley Cibber (de resto personagens reais da época). E há um teatro dentro do teatro, um pouco à maneira de grandes clássicos como William Shakespeare, em Sonho de uma Noite de Verão, e Bertolt Brecht, em O Círculo de Giz Caucasiano. Quase não há matemática, excepto num trecho em que um matemático come uma maçã – que outro fruto poderia ser? – mais depressa e mais devagar para explicar a noção de velocidade. Não há nenhum cálculo. Mas há pessoas calculistas. Há questões pessoais, retratos psicológicos, problemas éticos, tudo isso coisas que são bem anteriores ao século das luzes e que permanecem actuais nos tempos de hoje.

Carl Djerassi, que é professor jubilado da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, confrontado com a ameaça de um cancro, resolveu mudar de vida. De cientista passou a escritor, procurando como ele diz fazer “science-in-theatre”, isto é, colocar a ciência dentro da ficção: “Procuro contrabandear ciência na ficção para que a pessoas de divirtam e ao mesmo tempo aprendam”. Mário Montenegro, engenheiro de formação que competentemente dirige a companhia Marionet, tem revelado particular atracção pela sua obra, até porque lhe dedicou uma boa parte da sua tese de mestrado em texto dramático na Universidade do Porto. Agora só me resta, antes de abrir o pano, desejar que tanto os leitores do livro como os espectadores da peça se divirtam e aprendam. Que aprendam não tanto o que é a velocidade, e o que ela tem a ver com a mudança, mas mais que a natureza humana, desde os tempos das peças dos gregos Eurípides e Aristófanes, até à actualidade, aos tempos das peças dos autores anglo-saxónicos Tom Stoppard e Carl Djerassi, não mudou assim tanto como isso.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante.
HR

Francisco Domingues disse...

O problema de Deus que apaixonava os grandes pensadores desses séculos, aqui bem perto de nós, continua, nos nossos dias, a apaixonar multidões, a maior parte, infelizmente, alienada por pretensos defensores das religiões dos antepassados, sobretudo as quatro principais; judaísmo, hinduísmo, cristianismo e maometismo. E são alienantes, porque não permitem questionar nem Deus nem as suas supostas revelações aos Homens, de que dão testemunho os ditos livros sagrados, respectivamente, Tóra, Vedas, Bíblia (AT e NT) e Corão. Esperemos que num futuro próximo o homem perca os seus mitos e viva mais de acordo com a sua razão do que subjugado ao peso de Fés que, de razão, nada têm! Apenas, superstições! Quem quiser discutir a aprofundar estes assuntos, visite o blog "Em nome da Ciência" de acesso: http://ohomemperdeuosseusmitos.blogspot.com

Cláudia S. Tomazi disse...

"perenes questões que têm a ver com o carácter humano da ciência".

De facto, um desafio espirituoso!

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