Tem-me chegado à caixa de correio uma espécie de apelo contra o esquecimento de poemas e músicas, que deixaram de passar nas rádios ou só muito raramente passam.
Hoje chegou-me o Poema da Malta das Naus, de António Gedeão, com música e interpretação de Manuel Freire. Partilho-o com os leitores do De Rerum Natura para que não se esqueça.
Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.
Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo,
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.
Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.
Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.
Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.
Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.
Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.
Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.
O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.
Poema publicado em:
- Teatro do Mundo, Coimbra, 1958;
- Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor, Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997
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2 comentários:
http://youtu.be/bJQ_Kjr5VTY
Da malta são ondas que pensam os homens.
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