segunda-feira, 17 de outubro de 2011
Introdução histórica a Cálculo por Carl Djerassi
Publico a introdução de Carl Djerassi à sua peça de teatro Cálculo, que vai estrear, com a presença do autor, em Coimbra em Novembro próximo, ao mesmo tempo que a Imprensa da Universidade de Coimbra lança o livro contendo o respectivo texto. A peça aborda a rivalidade entre Newton e Leibniz a propósito da prioridade na invenção do cálculo:
"Praticamente todas as sondagens da escolha do público para as pessoas mais importantes do segundo milénio incluem o nome de Isaac Newton. Uma sondagem publicada na edição de 12 de Setembro de 1999 do Sunday Times Magazine de Londres classificou-o em primeiro lugar, acima mesmo de Shakespeare, Leonardo da Vinci, Charles Darwin e similares estrelas canonizadas.
Entre os seus feitos de mais relevo está a investigação, começada por volta de 1670, sobre a luz e a cor (publicada finalmente em 1704 no seu livro Opticks), mas ele é mais conhecido pela enunciação das leis do movimento e da gravitação e as suas aplicações à mecânica celeste, como está sumariado num dos maiores tomos da ciência, o Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, habitualmente encurtado para PRINCIPIA – cuja 1.ª versão foi publicada em 1687.
O ter colocado a Física sobre uma firme fundação experimental e matemática – uma abordagem cunhada de “Newtonismo” – granjeou a Newton a honra máxima de ser considerado o pai do pensamento científico moderno. Contudo, uma análise histórica revisionista, baseada, em parte, na descoberta do economista John Maynard Keynes de um enorme acervo de papéis e documentos não publicados, levou alguns investigadores a considerar Newton como o último grande místico em vez de primeiro cientista moderno. Apesar do seu trabalho em Física e Matemática ter desencadeado a época do Iluminismo, os historiadores revisionistas salientam que, nem como pessoa, nem como intelecto, ele lhe pertencia. À medida que, na última metade do séc. XX, se iniciou o desmascarar de alguma da hagiografia em torno de Newton, tornou-se evidente que este despendia muito mais tempo com a Alquimia e a Teologia Mística do que com a “ciência” – tendo escrito mais de um milhão de palavras sobre cada um destes dois interesses, muito mais do que todos os seus escritos sobre Física juntos! A sua biblioteca alquímica era enorme e as suas experiências alquímicas, embora mantidas secretas para todos à excepção de alguns de íntimos e alguns criados, consumiram muitas das suas horas do dia durante décadas.
Até as suas convicções religiosas tiveram de ser mantidas em segredo, porque a sua fé no Arianismo (que sustenta que Cristo e Deus não têm a mesma essência) era considerada herética no seio da Igreja Anglicana.
Nascido no dia de Natal no ano da morte de Galileu, Newton estava tão convencido dos seus poderes sobrenaturais que uma vez construiu um anagrama do seu nome (Isaacus Neutonus) em termos de “aquele que é sagrado para Deus” (Jeova sanctus unus). O seu estatuto de membro do Trinity College e de professor “Lucasiano” de Matemática em Cambridge (um cargo agora ocupado por Stephen Hawking), a sua posterior promoção para o importante cargo governamental de Master of the Mint, e a concessão do título de cavaleiro pela rainha Anne, teriam exigido uma clara adesão e até ordenação na Igreja Anglicana. Contudo, Newton, Provedor da Casa da Moeda, conseguiu evitá-la durante toda a sua vida de adulto, tendo um desafio aberto apenas surgido em 1727, no momento da sua morte, com 85 anos, quando recusou os últimos ritos. Mesmo este incumprimento não impediu um funeral de estado na Abadia de Westminster, nem a inauguração aí, em 1731, de um monumento como justo reconhecimento das suas elevadas contribuições para a ciência e dos seus serviços à Inglaterra.
Como pessoa, Newton não só era profundamente complexo, como também moralmente imperfeito. Alguns adjectivos que poderiam ser utilizados para descrever as facetas da sua personalidade são distante, solitário, reservado, introvertido, melancólico, “sem sentido de humor”, puritano, cruel, vingativo e, talvez o pior de todos, implacável. Mesmo uma das mais famosas citações de Newton, “Se eu vi mais além foi por me apoiar nos ombros de gigantes”, está aberta a diferentes interpretações. Muitas vezes citada como um sinal da sua modéstia, foi também interpretada como o derradeiro embrulhar venenoso de uma carta dissimuladamente cortês endereçada a um dos seus mais pungentes inimigos científicos, Robert Hooke, de pronunciada estatura anã. Vale a pena assinalar que a origem da frase antecede longamente Newton, uma vez que remonta pelo menos a John Salisbury, no século XII.
O traço de carácter mais relevante para a presente peça, Cálculo, é a natureza obsessivamente competitiva de Newton. Frank E. Manuel escreveu em 1968, numa das grandes biografias de Newton, que “a violência, a amargura, e a paixão incontrolada dos ataques de Newton, embora dirigidos através de canais socialmente aceites, são quase sempre desproporcionados face aos factos apurados e ao carácter das situações”. Este argumento, que caracteriza alguns dos conflitos mais conhecidos e acutilantes de Newton como aqueles com o físico Robert Hooke ou John Flamsteed, o astrónomo real, aplica-se como uma luva à batalha, longa de décadas, com um contemporâneo alemão de proeza intelectual quase semelhante, Gottfried Wilhelm von Leibniz.
Para além das suas contribuições monumentais para a Física, sumariadas no seu PRINCIPIA, Newton foi também um inventor do Cálculo (a que primeiro chamou Método de Fluxões). No alto do Parnaso ou no fundo do túmulo, ele exclamaria imediatamente: “Um inventor? Não fui eu o criador do Cálculo – um alicerce da matemática moderna uma vez que revelou pela primeira vez a relação entre velocidade e área?” Porque será que tal génio colocaria sequer tal questão? Porque Sir Isaac era também um ser humano falível, para quem a precedência – e especialmente a precedência quanto ao Cálculo – importava acima de tudo o resto.
Mas a precedência só pode ser estabelecida após se ter chegado a um acordo quanto à definição do termo. E, em ciência, onde múltiplas descobertas independentes ocorrem demasiado frequentemente, semelhante definição, sem ambiguidades, ainda não foi produzida.
Por exemplo, na peça Oxigénio (escrita em conjunto com Roald Hoffmann) perguntámos se a derradeira honra da descoberta do oxigénio – um acontecimento que desencadeou a revolução da química moderna – deveria ser atribuída ao primeiro descobridor, à pessoa que primeiro publicou, ou àquele que primeiro compreendeu a natureza da descoberta. No caso do Cálculo, é agora claro que Newton foi o primeiro em termos de concepção, mas Leibniz o primeiro em termos de publicação. Mas uma vez que, de acordo com o pensamento e as palavras de Newton, “segundos inventores não têm direitos”, a resolução desta disputa de precedência requereu, para ele, uma luta até à morte, como um gladiador num circo romano. Mas, ao contrário dos gladiadores, Newton era um mestre consumado no uso de sub-rogados, tendo continuado a luta mesmo após o enterro de Leibniz em 1716.
A luta pela precedência do Cálculo – com cada um dos protagonistas, no limite, a acusar o outro de pirataria – foi, nas palavras de William Broad, “travada na sua maior parte pelo amontoado de pequenos escudeiros que rodeavam os dois grandes cavaleiros”. É através da história de alguns dos “pequenos escudeiros” de Newton que a peça Cálculo procura examinar um dos maiores lapsos éticos daquele.
O cenário foi concebido por Nicolas Fatio de Dullier, um brilhante filósofo natural de uma família de Genebra, que se tornou no mais bajulador discípulo de Newton. Nos últimos anos têm vindo à superfície provas indirectas, mas razoavelmente persuasivas, de uma atracção homossexual (embora não consumada) entre Newton e Fatio, vinte anos mais novo. Por vezes intitulado de “o macaco de Newton”, Fatio disparou a primeira salva brutal, acusando abertamente Leibniz de plágio. Tal como Newton, Fatio nunca casou; tal como Newton, entregou-se a experiências alquímicas e ao fanatismo religioso; mas, ao contrário do seu mentor, ele foi muito mais além nesta matéria ao associar-se abertamente aos Profetas de Cevennes, que “falavam em línguas” e ficavam possessos durante êxtases religiosos. A acusação de Fatio a Leibniz não teve seguimento, em parte devido aos excessos religiosos do primeiro, mas em 1708 outro leal seguidor de Newton, John Keill (um membro da Royal Society assim como “um cavalo guerreiro, cujo ardor era tão intenso que por vezes Newton tinha de puxar as rédeas”), repetiu formalmente a acusação de plágio a Leibniz – uma acusação publicada no Philosophical Transactions da Royal Society, em 1710. E quando Leibniz, enquanto membro estrangeiro da Royal Society, exigiu uma retractação oficial, Newton, na sua qualidade de presidente, criou uma comissão de onze membros da Royal Society (“um Comité Numeroso de Cavalheiros de várias Nações”) para julgar o conflito. A 24 de Abril de 1712, um relatório de cinquenta e uma páginas (parcialmente em Latim e repleto de referências a cartas privadas assim como a cartas e documentos publicados, fundamentalmente na posse de John Collins, correspondente de Newton) foi publicado pela Royal Society sob o título “Commercium Epistolicum Collini & aliorum” (“troca de correspondência entre Collins e outros”) no qual a acusação de Keill era totalmente apoiada. Tal procedimento, gritantemente tendencioso, embora claramente condenável, era, apesar de tudo, de esperar, tendo em conta que Newton, enquanto presidente da Royal Society, tinha indirectamente nomeado o comité. Mas um exame minucioso revela pormenores ainda mais obscuros.
A composição do comité, que nunca subscreveu abertamente o documento, manteve-se desconhecida por mais de cem anos. Não só se sabe agora a identidade dos onze membros, mas, ainda mais importante, as datas das suas nomeações. O famoso astrónomo Edmond Halley, o físico e reputada personalidade literária John Arbuthnot, e os menos conhecidos William Burnet, Abraham Hill, John Machin e William Jones, foram todos nomeados a 6 de Março de 1712.
Francis Robartes (conde de Radnor) foi acrescentado a 20 de Março, Louis Frederick Bonet (o representante em Londres do rei da Prússia) a 27 de Março, e mais três membros, Francis Aston e os matemáticos Brook Taylor e Abraham de Moivre, a 17 de Abril. Porque serão estas datas importantes? Porque é manifestamente impossível que, pelo menos os últimos três membros, nomeados a 17 de Abril, tivessem algo a ver com um longo e complicado relatório lido publicamente 7 dias depois! De facto, nenhum dos onze membros era responsável enquanto autor, porque o próprio Newton escrevera o relatório! E, apesar do argumento de que o comité era composto por “Cavalheiros de várias Nações”, apenas dois dos onze – Bonet e de Moivre – poderiam ser categorizados como estrangeiros. No caso de Bonet, sabe-se tão pouco acerca dele que nem sequer o Sackler Archive Resource of Fellows da Royal Society contém a sua data e local de nascimento, embora os arquivos alemães e suíços lancem alguma luz sobre ele. Poder-se-á legitimamente perguntar qual a razão por que um grupo tão variado de membros da Royal Society, alguns deles da mais elevada distinção, ter-se-iam permitido ser tão descaradamente manipulados por Sir Isaac Newton – ostensivamente escolhidos para serem cães de guarda e depois rapidamente transformados em cães de circo mudos.
Cálculo traz alguma compreensão conjectural a este escândalo científico, através das personalidades de John Arbuthnot e dos dois estrangeiros, Louis Frederick Bonet e Abraham de Moivre, estando a maior parte das referências biográficas fortemente alicerçadas em registos históricos. E, apesar do encontro específico, em Cálculo, dos dois dramaturgos Colley Cibber e Sir John Vanbrugh ser inventado, ambos são personagens históricas cujas respectivas peças Love’s Last Shift e The Relapse: Or Virtue in Danger e a sua derradeira colaboração, The Provok’d Husband, são parte do orgulhoso cânone do drama inglês da Restauração."
Carl Djerassi, Introdução do Autor in Cálculo, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011 (tradução de Mário Montenegro, no prelo)
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1 comentário:
Se ainda forem a tempo corrijam, no antepenúltimo parágrafo do texto, na quinta linha a contar do (seu) fim, a expressão "razão porque" por "razão por que".
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