“Malditos sejam aqueles que se negam aos seus em horas apertadas” (Miguel Torga, 1907-1995).
É sempre com renovado interesse que me deparo com comentários como o de um leitor anónimo ao meu recente post intitulado “Ana Benavente e os Sete Pecados Mortais do Partido Socialista” (08/02/2010). Dele transcrevo o primeiro parágrafo por aflorar um problema que tem feito correr rios de tinta: “Muita da pouca vergonha que são as escolas públicas hoje em dia e, para ser franco, também algumas privadas deve-se, em grande medida, a políticas desta senhora e dos que a acompanharam no Ministério que se diz da Educação”.
Num tempo em que se caiu no perverso maniqueísmo de assacar todos os defeitos às escolas públicas e virtudes imaculadas às escolas privadas convencionadas entendo o dever de chamar, em defesa daquelas, ao tribunal da opinião pública, testemunhos alheios à minha pessoa com uma pequena transcrição de um texto de Clara Ferreira Alves (cujo título “roubei” à sua autora), intitulado “O render dos heróis” (DN, 22/10/1995).
Reporta-se ele aos professores do liceu, mas porque, segundo Lacan, “o mundo das palavras cria o mundo das coisas”, começa a sua autora por esclarecer “mesmo que liceu seja uma palavra que já se não usa, dá jeito, no caso vertente, para simplificar o discurso e toda a gente perceber a que é que ela se refere”. Transcrevo um pequeno trecho do seu comovente e premonitório texto:
“A barbárie não anda longe. Nunca andou. É contra o seu fundo de trevas que se desenha o brilho da civilização. É nesse mesmo fundo que, de tempos a tempos, o brilho se dissolve e a escuridão total desce sobre a floresta. É cíclico. Já aconteceu antes. Mais que uma vez. Não temos nenhuma razão, pelo contrário,para pensar que não volte a acontecer. Para evitar que assim seja temos nos professores do liceu a mais importante das nossas armas. Devíamos beijar-lhes as fímbrias do manto”.
Antigos liceus, hoje escolas secundárias (vá lá saber-se porquê!), que continuam sendo verdadeiros baluartes de um ensino sério e profícuo lutando desesperadamente por inverter a má preparação anterior de alunos que lhes franqueiam as portas. E, por acréscimo, dando razão às universidades de prestígio que se queixam de idêntico mal.
Folheando as folhas do calendário, evoco, agora, o valioso testemunho de Eugénio Lisboa, publicado neste blogue em post intitulado “Que terá acontecido?” Dele reproduzo um breve excerto:
“Frequentei o liceu de Lourenço Marques entre 1940 e 1947. Foi, posso dizê-lo, uma experiência mágica. E foi também uma festa. Muito do que sou e muito do que depois fui tiveram origem nesses anos de formação e descoberta.
O liceu de Lourenço Marques, de que era nessa altura reitor o inesquecível Eurico Cabral, o Penca, foi um dos mais notáveis liceus do antigo império. Dizia-se, com orgulho e farronca, que havia nele um único professor sem exame de Estado: o António Jardim, o qual, curiosamente, era o professor da famigerada cadeira de Organização Política e Administrativa da Nação.
Havia mestres inesquecíveis e, quanto a mim, inesquecidos. O Reis Costa, o Jaime Rebelo, o Duarte Marques, o Cardigos dos Reis, a Maria Luísa Soares, o Esquível, o Bernardino Gracias (ou Bi Gi), o Álvaro de Matos (vaidosão, falso terrorista, mas dando aulas interessantíssimas de Inglês), o Rosa Pinto, o César Fontes (excelente professor de Ciências Naturais, preocupadíssimo com a dimensão das testas e dotado de uma linguagem forte, estrumada e vicentina), o Vieira Júnior – são alguns exemplos, entre outros que poderia citar”.
Vivemos hoje em tempo de verdadeira escravatura a um “marketing” que faz correr o risco de ser esquecido que há escolas privadas de qualidade duvidosa que se enchem a abarrotar com alunos, sem dispêndio para as famílias, em concorrência a colégios privados não convencionados que pela sua real e tradicional qualidade fazem com que alguns pais continuem a fazer sacrifícios de equilíbrio financeiro em prol da formação dos seus filhos com o fundamento de que se, como nos legou Erasmo, “a principal esperança de uma Nação reside na educação apropriada da sua juventude”, essa esperança recai primeiramente sobre os ombros de quem faz esta opção.
Com argumento de peso, é evocado em defesa dos colégios privados o espectro do desemprego que paira sobre os seus docentes como se igual perigo não recaísse igualmente sobre os professores do ensino oficial pela elevada baixa de natalidade da população portuguesa. Qual espada de Dâmocles, esta uma situação comum a ambos estes sistemas de ensino.
Comete-se, por outro lado, uma gritante injustiça que leva ao esquecimento de antigos liceus de elevadíssimo prestígio em que em muitas das actuais escolas secundárias suas herdeiras se fazem verdadeiros milagres de heróis que não se rendem, perante condições adversas ditadas por um ministério da Educação que confunde a democratização do ensino com a sua mediocratização, avaliando, não poucas vezes, o mérito dos professores pela sua capacidade em se tornarem mangas-de-alpaca ao serviço constante de preenchimento de papéis e mais papéis. Esta situação traz-me à memória à história contada - com muita verve, acrescida do facto de ele gaguejar levemente - por um jornalista de Moçambique já falecido, de seu nome Manuel Luís Pombal. Reportava-se ele ao caso de um dia ao ser interpelado, num Congresso de Jornalistas, salvo erro no Cairo, por um colega estrangeiro se era da “Cortina de Ferro”, ter respondido : “Não, sou... sou da cortina do papel selado!” Hoje, corre-se o risco ao ser perguntado a um docente do ensino oficial se é professor ter-se como resposta: “Não, sou escriturário!”
Mas esta é apenas a ponta de um icebergue que não deve ser perspectivado, mais uma vez o digo, de forma maniqueísta. Como tudo na vida, há escolas oficiais boas e más e há colégios convencionados de impoluta qualidade e outros não. Este o leitmotiv, portanto, deste meu comentário em defesa de um ensino oficial com excelentes e briosos professores e resultados que muito os honram! E que, por isso, merecem que a sociedade lhes saiba ser reconhecida. Reconhecimento extensivo aos colégios convencionados dele também merecedores. Separando o trigo do joio, ambos muito terão a ganhar com o fim de um confronto que tende a considerar de uma duvidosa qualidade todas as escolas oficiais quando em confronto com colégios privados convencionados. Como escreveu Sá de Miranda, “tudo seus avessos tem!” Desta forma, continuo a assumir a recusa em comungar do desalento de Pessoa": "Já não me importo/ Até com o que amo ou creio amar. / Sou um navio que chegou a um porto / E cujo movimento é ali estar".
Na imagem: O Liceu Pedro Nunes (hoje escola secundária com o mesmo nome), alfobre de professores de elevadíssimo prestígio científico e pedagógico, frequentado por figuras de grande destaque na actual vida cultural, económica e social portuguesa.
2 comentários:
Para saber do que se fala julga-se oportuna a leitura de A evolução dos Liceus em Portugal.
Render heróis apenas é viáve,
outros heróis havendo, o que em verdade
presentemente, na actualidade,
se me afigura mais do que improvável!
JCN
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