sábado, 13 de novembro de 2010

A Engenharia nas Grandes Escolas francesas

O Ensino Superior francês possui uma característica curiosa: os cursos de Engenharia encontram-se totalmente desligados das Universidades. Após uma formação de dois anos realizada numa Classe Préparatoire - dedicada exclusivamente ao estudo da Matemática e da Física - os futuros engenheiros ingressam numa Grande École, onde completarão, ao fim de mais três anos de estudos, a sua formação. As provas escritas dos exigentes concursos de admissão a estas escolas consistem grosso modo em três exames de Matemática e três exames de Física, que se sucedem durante cerca de quatro dias. Sem primeiras e segundas chamadas, épocas de recurso ou épocas especiais, o destino dos estudantes fica traçado após as provas orais que decorrem cerca de um mês depois e para as quais apenas são convocados os melhores candidatos da componente escrita do concurso. O leitor interessado no teor destas provas poderá consultar uma selecção aqui. Ficará provavelmente surpreendido com o volume de conhecimentos e a destreza científica que é possível adquirir em dois anos de trabalho sério e dedicado.

As raízes históricas das Grandes Écoles remontam ao século XVI, com a criação pelos jesuítas da Maison des Arts et Métiers. No século XVIII são fundadas a École Royale des Ponts et Chaussées e a École Royale des Mines. Alguns anos após a Revolução Francesa, Napoleão Bonaparte presidirá à reformulação daquela que é ainda hoje considerada a Grande Escola de referência: a École Polytechnique. Em 1829 é criada a École Centrale. Hoje existem cerca de 90 Grandes Écoles de Engenharia que se apoiam no princípio do Engenheiro com treino avançado em Matemática e em Física.

Naturalmente, não existem Grandes Écoles sem Classes Préparatoires. Estas surgiram durante o século XVIII e eram frequentadas por alunos interessados em seguir carreiras no Génio Civil, na Artilharia ou na Marinha. A sua entrada estava condicionada a um concurso instituído pelo Marquês de Vauban. Nas suas palavras, “Ninguém deve ser admitido com base em recomendações ou favores. É fundamental que apenas se tenha em consideração o mérito e a capacidade dos candidatos”. Os aspirantes deviam prestar provas de Matemática perante um membro da Academia das Ciências. Nos anos que precederam a Revolução Francesa, o júri destes concursos era presidido por Gaspard Monge e Simon Laplace.

Hoje em dia, a vida de um aluno de uma Classe Préparatoire é algo atribulada. Para além das cerca de 40 horas de aulas semanais repartidas por seis dias da semana, realizam cerca de três exames escritos por mês, com uma duração nunca inferior a três horas cada um. São interrogados oralmente durante cerca de duas horas por semana, por uma equipa externa à instituição, que assim verifica a consolidação da aprendizagem de forma praticamente contínua no tempo. Muitos alunos optam por frequentar estas classes preparatórias em regime de internato, a fim de não perderem tempo com deslocações e outras distracções. Afinal de contas, passados dois anos, há que estar o melhor preparado possível para os concursos, a concorrência será certamente muito dura!

Se atendermos às conquistas da engenharia francesa no decurso do século XX, fica claro que a estratégia de apostar em engenheiros com grande preparação em Matemática e em Física é uma estratégia de sucesso. Ao sistema das Grandes Écoles não é certamente alheia a capacidade de inovação tecnológica francesa. Citemos a título de exemplo, na indústria automóvel e na indústria aeronáutica, a Citroën, a Peugeot, a Airbus, a Dassault com os seus míticos caças Mirage, a Aérospatiale, com o primeiro avião de passageiros a jacto Caravelle, o primeiro avião de passageiros supersónico Concorde (em parceria com a britânica B.A.C.) e o foguetão Ariane que disputou taco a taco com o Space Shuttle a corrida ao espaço dos anos 80, tendo acabado por conquistar a liderança deste mercado após a trágica explosão do Challenger em 1986. Noutros sectores, as plataformas petrolíferas desenhadas pela Bouyghes ou as inovações da Cogema, da Framatome e posteriormente da Areva em matéria de design de reactores nucleares fizeram destas companhias referências mundiais nos sectores da engenharia civil e da energia nuclear, respectivamente. Se juntarmos a esta lista os reconhecidos desenvolvimentos franceses no sector das telecomunicações, do génio civil ou o comboio de alta velocidade T.G.V., produzido pela Alstom, facilmente se coloca a engenharia francesa entre as mais avançadas da actualidade. Por outro lado, os oito prémios Nobel em Física e as dez medalhas Fields com que foram galardoados ex-estudantes, professores e investigadores da École Normale Supérieure (Grande École vocacionada para a ciência fundamental) não encontram paralelo em qualquer outra Universidade do mundo. Aquando das negociações da Reforma de Bolonha do Ensino Superior, a posição francesa foi clara: façam-se as experiências pedagógicas nas nossas Universidades, O sistema das Grandes Écoles é para se manter inalterado, pois constitui um pilar estratégico de que não abdicamos.

Em Portugal, o conceito do engenheiro com sólida formação em Matemática e em Física não parece colher muitos adeptos, chegando a ideia a suscitar mesmo algum desprezo em sectores ligados às formações em Engenharia. Esta situação agravou-se ainda mais com a reforma de Bolonha - que veio reduzir significativamente o número de horas lectivas destas disciplinas - e com o declínio do ensino da Matemática e das Ciências a que se tem vindo a assistir no Básico e do Secundário. O ataque ideológico de que tem sido alvo o conhecimento científico em detrimento de um conhecimento supostamente mais prático e com “aplicabilidade imediata”, materializado nas famosas “competências”, tem conseguido relegar para segundo plano a preparação teórica dos alunos nas áreas fundamentais do conhecimento. Há até quem chegue a defender que a Matemática e a Física devem ser leccionadas, nas nossas escolas de Engenharia, por não-especialistas que seriam supostamente mais “conhecedores” das suas “aplicações”. Toda esta dinâmica levou infelizmente algumas escolas de referência a desistir de ensinar Análise Matemática aos seus alunos, substituindo-a, oficial ou oficiosamente, pelo seu parente pobre, o chamado Cálculo. Como em muitos outros aspectos da nossa sociedade, o investimento que não parece oferecer uma vantagem imediata tende a ser descartado. Naturalmente, todos estes factos não auguram nada de bom para o futuro científico e tecnológico do nosso país.

10 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

As famosas "competências" redundam no alastrar da incompetência. Isso começa realmente no ensino básico e continua no secundário. Nestes níveis chegou mesmo a defender-se que não se devia ensinar matemática mas antes ministrar "educação matemática". E há professores a ensinar matemática que não gostam de matemática, que nunca foram alunos razoáveis a matemática nem têm um curso de matemática.
Mas sobre isto ninguém quer falar. Nem se fala em avaliar. E muito menos em responsabilizar. Quanto mais em incriminar...

Rui Baptista disse...

Nós em Portugal temos o hábito (ou melhor dito, o péssimo costume) de desfazer em tudo quanto é nacional. Por outro lado, existe uma contracorrente que nos tenta convencer, com o slogan, de que o que é nacional é bom.

Mas reportemo-nos a exemplos de personagens da política nacional.

Escolas de Engenharia, como os das Grande Escolas francesa para quê? Para queimar os miolos da nossa juventude? A vida é bela, não demos cabo dela.

O que interessa é saber de cor e salteado, não a chata da tabuada que isso é exigir muito, mas o nome de todos os jogadores de futebol da I Liga.

Cursos exigentes de Engenharia como o Técnico e as Faculdades de Engenharia do Porto e Coimbra só servem parta gastar dinheiro do erário público...Contenção, portanto.

Criem-se Centros de Novas Oportunidades em engenharia que as equivalências ao 12.º ano do ensino secundário prostituiram-se tanto que quase já não chegam aos calcanhares da antiga 4.ª classe do ensino primário.

É certo que corremos o risco da perda da tradição de termos sido um país de marinheiros. Mas que diacho, modernizemo-nos: seremos um país de engenheiros. E como cereja em cima do bolo da ignorância acabe-se com a Ordem dos Engenheiros que só tem servido de empecilho para deixarmos de ser um país de doutores para sermos um país de engenheiros!

Anónimo disse...

Filipe Oliveira voltou a dar-me uma aula.
É sem dúvida uma excelente aquisição para este blog.
Infelizmente, aquilo que descreve neste post está a anos-luz de distância da realidade portuguesa.

Francisco Monteiro disse...

Todo o post está muito interessante e sendo eu um aluno do ensino superior revejo muito disto no meu percurso. Nota-se muito que de ano para ano os alunos sabem menos das áreas básicas como a física e a matemática e isso é algo grave, muito grave.
No entanto discordo completamente da comparação da Análise Matemática ao Cálculo. Há, de facto, instituições que substituíram o nome das cadeiras de Análise para Cálculo, mas os programas continuam praticamente inalterados. Mais ainda: das universidades que mantém cadeiras com o nome de Análise Matemática, vendo os programas destas cadeiras é algo ridículo. Não é mais que uma extensão à matéria leccionada no 12ºano.
Como bom exemplo é só consultar a página de uma cadeira de Análise Matemática, por exemplo da FCT da UNL.
Obrigado pela partilha de informação, que continuem por muitos anos.

Anónimo disse...

Mesmo no final da década de 1960, ensinavam-se, no Técnico, as chamadas Matemáticas Gerais, no 1.º ano, e a Análise Infinitesimal, no 2.º, bem como Probabilidades e Estatística. O principal livro recomendado em Análise Infinitesimal tinha o título de Advanced Calculus. Posteriormente aquelas disciplinas foram desdobradas em Análise I, II, III e IV, além de Álgebra Linear. Nos outros anos havia disciplinas de Matemática Aplicada. A Física ensinada era a Física Matemática.

Hoje há quem defenda, no mundo de fala inglesa, que o "Calculus" passe a ser uma disciplina da Física (e julgo que da Engenharia) e a "Analysis", da Matemática.

Anónimo disse...

Boa tarde, leio com agrado o vosso blogue, contudo, não posso deixar de comentar este artigo em particular.
A Airbus não é francesa, assim como o foguetão Ariane: são fruto de cooperação europeia e dizer que são resultado da engenharia francesa é quase um insulto a países como o Reino Unido ou a Alemanha, por exemplo. A Airbus pertence à EADS, já a Arianespace tem 24 accionistas de 10 países europeus.
O primeiro avião de passageiros a jacto foi de facto De Havilland Comet, e não o Caravelle (produzido pela empresa Sud Aviation).
Julgo que a tentativa de justificar a qualidade das escolas de engenharia francesas, sobre as quais não me pronuncio porque não conheço, levou a alguns argumentos não conseguidos. Espero que um blog de qualidade como este mantenha a necessária imparcialidade e precisão na altura de relatar factos como estes.
M.P.

Filipe Oliveira disse...

Caro M.P.,

no que diz respeito à Airbus, não pretendi de forma alguma minorar o papel da Alemanha e da Inglaterra no sucesso deste consórcio, e peço desculpa se de alguma maneira o dei a entender. A Airbus foi citada por ser um exemplo em que a engenharia francesa teve uma acção decisiva na história da aviação do século XX.

Já quanto ao Ariane - apesar de ser de facto um projecto europeu - será bem mais difícil de se negar a paternidade e a liderança francesa no seu desenvolvimento.

Quanto ao que diz sobre o De Avilland Comet, tem razão, é um lapso. No entanto, sendo conhecedor desta área, saberá decerto que esse avião não era viável, pelo que o Caravelle é geralmente considerado como o primeiro avião de passageiros a jacto "estável".

Agradeço-lhe as suas chamadas de atenção relativamente a estes assuntos e reitero que não quis de forma alguma denegrir outras escolas de engenharia que contam também com enormes sucessos e realizações.


Cumprimentos,
Filipe Oliveira

Guilherme Rodrigues disse...

Sou aluno finalista do curso de Engenharia Aeroespacial do IST. Não sigo regularmente o blog, foi-me antes enviado o link sobre este post não só por referir assuntos do "meu ramo" como pelo próprio tema discutido.

Orgulho profissional (assim como uma vincada costela anglófila) não me permite ignorar as falhas que o Sr Filipe Oliveira apresenta:
O comet foi, como MP referiu, o primeiro avião de passageiros a jacto. Não teve sucesso por falhas de concepção (janelas quadradas) mas desbravou caminho, e ao ter essas falhas permitiu que os outros fossem melhores. E convem referir que o Caravelle pode ter sido o primeiro "estável" mas utilizava motores ingleses, o que retira um pouco o orgulho francês no primeiro jacto. Relativamente ao Ariane, é uma proposta completamente Europeia, tendo nascido do foguete Europa que tinha 3 estágios, um Inglês, um Francês e um Alemão. Também referiu o concorde, que sendo um avião de colaboração também tinha um "sabor" inglês, pois foram estes que desenvolveram os motores e a aerodinâmica, os pormenores mais complexos. Não quero com isto insinuar que a engenharia francesa é desprezável, são (com a Inglaterra) a unica pequena potência que se conseguiram manter a par das grandes potências com material próprio.

Relativamente ao assunto discutido, embora discorde talvez um pouco com o intenso foco dado pelo autor às bases matemáticas do ensino (surgindo de diferenças de vocação), compreendo e concordo com o espirito. Estou no técnico há 5 anos, vi alterações de fundo de curriculos, Bolonha, seja o que for. Passei por vários planos diferentes, equivalências, alterações. Vi o nivel de exigência descer, vi o curso ser por vezes facilitado. Considero que tive uma formação de base (seja secundário, seja o inicio do curso) bastante completa, em geral mais profunda do que vejo ser dada agora, e sei o quanto isso me ajudou. Não sei se o esquema francês é perfeito, ou o ideal, mas sei que um facilitismo crescente do ensino não o é.

Melhores cumprimentos

Guilherme Rodrigues

Anónimo disse...

Caro Filipe Oliveira,
obrigada por ter considerado o meu comentário. A forma como enumerou os exemplos no seu artigo deixou transparecer uma supremacia francesa face a restantes países europeus que participaram nos mesmos projectos dando a entender que apenas França os teria desenvolvido. Acredito que não tenha sido a sua intenção desvalorizar a contribuição de outros.
Relativamente ao Comet vs Caravelle, decerto que concordo consigo, o Comet tinha os seus defeitos mas não é por isso que deixa de ser o primeiro jacto comercial. Afinal, os aviões que se lhe seguiram podem ter aprendido com as suas falhas, e isso também influencia o sucesso de futuras tentativas, como o Caravelle.
Cumprimentos e continuação de bom trabalho,
M.P.

Filipe Oliveira disse...

Caro Guilherme,

obrigado pela sua contribuição e pela precisão quanto à nacionalidade dos motores do Caravelle, que de facto desconhecia. Agora que já conhece o blog, espero que passe a ser nosso leitor habitual e já agora que o recomende, debatem-se aqui muitos assuntos ligados à ciência e à tecnologia que serão decerto do seu interesse.

Sem querer entrar consigo numa guerra franco-britânica dos 100 anos - até porque também sou grande admirador da tecnologia inglesa – só não posso mesmo concordar com a leitura que faz do projecto Ariane enquanto projecto em que vários países se empenham de forma igual. Colocá-lo no seguimento natural do projecto Europa (que foi de facto totalmente tripartido, como refere) é, no mínimo, abusivo. Depois da humilhação internacional que esse projecto constituiu (concedo-lhe que não foi por culpa inglesa, tanto quanto percebi, o primeiro estágio, que era o britânico, até foi o único que indiscutivelmente funcionou sempre bem!), o continente europeu andou literalmente a reboque da França quer na formação da Agência Espacial Europeia quer no desenvolvimento e consolidação da Ariane. Estes factos até se explicam bem de um ponto de vista histórico: o governo gaulista queria a todo o custo que a Europa não ficasse dependente dos Estados Unidos, pelo que deu muito apoio às indústrias e à investigação no sector. Esta ambição era partilhada com menos entusiasmo por alemães e ingleses. No seguimento das negocições entre os três países, a liderança do projecto Ariane é confiada ao Centre National d'Études Spatiales, tendo sido criada mais tarde a Arieanespace. A leitora M.P. diz mais acima, e muito bem, que a Arianespace tem 24 accionistas de 10 países. Mas mais de 60% do capital é francês e toda a administração (o CEO e os 6 vice-presidentes) é francesa. Por coincidência, o CEO, Jean-Yves le Esfolar, até é formado numa Grande Ecole, a Ecole Supérieure d'Optique. Para além de vários contributos tecnológicos extremamente importantes e até mesmo decisivos de vários países europeus, aqui o “sabor” é vincadamente francês.


Um abraço do
Filipe Oliveira

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