Quando estava a terminar o meu doutoramento, no University College London, na década de 1960, o meu orientador deu-me um artigo técnico curioso para ler, «para me aliviar um pouco» do meu projecto principal. O artigo (que de facto não veio nunca a ser publicado na forma na qual o li) baseava-se numa palestra dada nos Estados Unidos pelo jovem cosmólogo e físico teórico inglês Brandon Carter.
O assunto era radical e diferente. O trabalho normal de um físico teórico é investigar um problema acerca de um dado fenómeno natural, ainda por resolver, aplicando as leis da física sob a forma de equações matemáticas, e depois tentar resolver as equações para ver a que ponto elas descrevem a realidade. Mas Carter estava a tratar de um tipo de problema completamente diferente, que tinha a ver com a forma das leis propriamente ditas. Fez a si mesmo a seguinte pergunta: «Suponhamos que as leis tinham sido escritas de forma um pouco diferente do que foram na realidade, num ou noutro aspecto— que consequências teria isto?» Os filósofos chamam «análise contrafactual» a este tipo de investigação, e embora os romancistas utilizem este tipo de ideia há muito tempo (li recentemente um romance em que os nazis derrotaram a Grã-Bretanha na Segunda Guerra Mundial e o Reino Unido se tornou um estado-fantoche da Alemanha), era inovadora para um cientista.
O foco da análise do tipo «e se» de Carter era mais uma vez pouco comum para um físico teórico. Dizia respeito à origem da vida. Mais especificamente, os cálculos de Carter sugeriam que, se as leis tivessem diferido mesmo que muito ligeiramente daquilo que hoje vemos, a vida não teria sido possível e não teria havido ninguém para observar o universo. De facto, dizia Carter, a nossa existência depende de uma dada quantidade de «ajustamentos precisos» das leis. Tal como a papa da Joana, as leis da física pareciam a Carter «mesmo boas» para a vida. Parecia batota — uma grande batota. De forma um tanto insensata, deu a este «ajustamento preciso» o nome de «princípio antrópico», o que produz a falsa impressão de que dizia respeito especificamente à humanidade (o que não foi nunca a sua intenção).
Embora o artigo de Carter tivesse um alcance modesto e fosse cauteloso nas suas conclusões, desencadeou nada menos que uma revolução no pensamento científico e provocou uma polémica furiosa que divide a comunidade científica até hoje. O estudo da análise contrafactual na física e na cosmologia foi levado a cabo na década de 1970 por Martin Rees e Bernard Carr, e dele resultou um artigo de referência publicado em 19791. Inspirado por esse artigo, escrevi um pequeno livro acerca deste assunto intitulado The Accidental Universe, que foi publicado pela Cambridge University Press em 1982. Alguns anos mais tarde surgiu um texto muito mais sistemático e aprofundado — The Anthropic Cosmological Principle, de John Barrow e Frank Tippler. Tem sido o ponto de partida de centenas de artigos ao longo dos anos.
No princípio da década de 1980, o princípio antrópico foi zurzido por muitos cientistas como uma patranha semi-religiosa. Numa crítica devastadora na New York Review of Books em 1986, o matemático e escritor Martin Gardner fez uma lista das várias versões do princípio antrópico (AP): Fraco (WAP), Forte (SAP), Participativo (PAP) e — a sua versão favorita — o Princípio Antrópico Completamente Ridículo (CRAP). Durante mais ou menos uma década o tom do debate foi esse. Contudo, os desenvolvimentos em física de partículas de altas energias e em cosmologia, especialmente no estudo do Big Bang que deu origem ao universo, mudaram aos poucos as opiniões. As leis da física, outrora encaradas como se estivessem gravadas em tabuletas de pedra, começaram a parecer menos absolutas. Acumularam-se indícios de que pelo menos algumas não eram leis verdadeiras, fundamentais, mas sim «leis efectivas», cuja forma familiar só se aplica a energias pequenas comparadas com a violência selvagem do Big Bang. É significativo que as análises teóricas tenham sugerido que algumas das características das leis poderiam ser acidentais, reflectindo os acasos da maneira como o nosso universo arrefeceu depois do Big Bang. Isto implicava claramente que a forma de baixas energias destas leis poderia ter sido diferente, e poderia mesmo ser diferente, em alguma outra região cósmica. Aquilo a que tínhamos chamado previamente o «universo» começou a assemelhar-se a um «multiverso» variado — «uma louca manta de retalhos com propriedades diferentes e leis da física diferentes», nas palavras de Leonard Susskind, um físico teórico e cosmólogo da Universidade de Stanford e um dos principais proponentes da ideia do multiverso. É claro que não seria surpresa nenhuma estarmos a viver numa região adequada à vida, porque obviamente não poderíamos estar a viver num sítio onde a vida fosse impossível.
Por esta altura, os ateus começaram a interessar-se pelo assunto. Insatisfeitos com o ajustamento preciso das leis da física por ele sugerir algum tipo de desígnio divino, agarraram-se à teoria do multiverso como explicação simpática da incrível adequação do universo à vida orgânica. Assim, estranhamente, o princípio antrópico acabou por ser encarado, exactamente ao mesmo tempo, quer como alternativa científica ao desígnio quer como teoria quasi-religiosa. Eu entrei para este atoleiro em 2003, quando convenci a John Templeton Foundation a patrocinar uma conferência acerca de cosmologia do multiverso na Universidade de Stanford, à qual presidi com o cosmólogo Andrei Linde. O resultado das nossas deliberações foi publicado num volume editado por Bernard Carr. Uma outra conferência na continuação desta, com mais atenção à teoria das cordas (a tentativa de unificar a física actualmente mais na moda), teve lugar em 2005.
Enquanto estes desenvolvimentos teóricos decorriam, eram feitos alguns avanços espectaculares em cosmologia observacional. Resultaram de levantamentos progressivamente exaustivos do universo pelo Telescópio Espacial Hubble e de diversas experiências terrestres, do mapeamento
pormenorizado do brilho cósmico do Big Bang por um satélite chamado WMAP e da descoberta inesperada de que o universo está a acelerar sob a acção de uma misteriosa «energia escura». Quase num estalar de dedos, a cosmologia, durante tanto tempo uma província científica longínqua e sem grandes desenvolvimentos, tornou-se uma ciência de vanguarda, com novas ideias a fermentarem, muitas das quais estranhas e contrárias à intuição. Parecemos entrar numa nova era, que está a transformar a nossa visão do universo e o lugar que a humanidade nele ocupa.
Neste livro irei explicar as ideias que servem de base a estes desenvolvimentos dramáticos, concentrando-me no «factor Cachos Dourados» — o facto de o universo ser adequado para a vida. Nos primeiros capítulos exponho os conceitos básicos da física e da cosmologia modernas e em seguida descrevo a teoria do multiverso e os argumentos a seu favor e contra ela. No fim do livro faço uma revisão crítica das diversas respostas ao problema do ajustamento preciso. Questionarei também se os cientistas estão prestes a produzir uma teoria de tudo — uma explicação completa e coerente de todo o universo físico — ou se sobrará sempre um mistério no coração da existência.
Para estes últimos capítulos inspirei-me no grande físico teórico John Archibald Wheeler, a quem dediquei este livro. Descobri o trabalho de Wheeler quando ainda era estudante, e nos anos seguintes vim a conhecê-lo muito bem, quer ao nível pessoal quer ao nível profissional. Visitei-o em Austin, no Texas, e ele veio visitar-me a Inglaterra em diversas ocasiões. Teve a simpatia de recomendar o meu primeiro livro, The Physics of Time Asymmetry, com elogios entusiásticos e dedicou grande atenção ao meu trabalho ao longo de um período de mais de três décadas. Foi um privilégio contribuir para a organização da conferência de celebração do seu nonagésimo aniversário, em Março de 2002, uma reunião de cientistas ilustres em Princeton, na Nova Jérsia, onde Wheeler começou e terminou a sua carreira. No final dos anos 30, Wheeler trabalhou com o lendário Niels Bohr em aspectos cruciais da fissão nuclear. Prosseguiu e encarregou-se do renascimento da teoria gravitacional na década de 1950, pegando no assunto onde Einstein tinha parado. Foi Wheeler que criou as expressões buraco negro e buraco de verme. Acima de tudo, reconhecia a necessidade de conciliar os pilares gémeos da física do século XX — a teoria da relatividade geral e a mecânica quântica — para formar uma teoria unificada de gravidade quântica. Muitos dos seus estudantes de pós-graduação seguiram carreiras científicas de grande prestígio; um deles foi o bem conhecido Prémio Nobel Richard Feynman.
O estilo de Wheeler era diferente. Ele era o mestre da «experiência conceptual». Tomava uma ideia aceite e extrapolava até ao seu limite máximo, para ver se e quando ela deixava de funcionar. Adorava concentrar-se nas questões realmente importantes: se a física podia ser unificada, se o espaço e o tempo podiam ser obtidos a partir de algum tipo de entidade mais básica, se a causalidade podia operar para trás no tempo, se as leis complexas e abstractas da física podiam ser reduzidas a uma única afirmação óbvia e simples e como se enquadravam os observadores nesse esquema. Inconformado com a mera aplicação das leis da mecânica quântica, queria saber de onde elas vinham: «Porquê o quantum?», perguntava. Insatisfeito com a disjunção entre os conceitos de matéria e informação, propôs a ideia de it from bit — a emergência de partículas a partir de bits de informação. A mais ambiciosa de todas as suas perguntas era «porquê a existência?» — uma tentativa de explicar tudo sem recorrer a nenhum tipo de fundamento para a realidade física que tivesse de ser aceite como um «dado».
Perguntei uma vez a Wheeler o que considerava o seu sucesso mais importante e ele respondeu, «Mutabilidade!». Com isto queria dizer que nada é absoluto, nada é tão fundamental que não possa mudar se for sujeito a circunstâncias adequadamente extremas — e isso incluía as próprias leis do universo. O conjunto destes conceitos levou-o a propor o «universo participativo», uma ideia (ou, como preferia Wheeler, «uma ideia para uma ideia») que ser tornou uma parte importante da discussão multivero/universo antrópico. Nas suas crenças e atitudes, Wheeler representava uma grande parte da comunidade científica: plenamente dedicado ao método científico de pesquisa, mas sem medo de enfrentar questões filosóficas profundas; sem ser convencionalmente religioso, mas inspirado pela reverência pela natureza e por um sentimento profundo de que os seres humanos fazem parte de um grande esquema que só vemos de forma incompleta; suficientemente arrojado para seguir as leis da física onde quer que elas levem, mas não arrogante ao ponto de acreditar que temos todas as respostas.
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