quinta-feira, 1 de outubro de 2009

«O homem pensa»

Do livro de Daniel Barenboim - Está tudo ligado: o poder da música -, recentemente editado em Portugal, reproduzo um excerto onde, com base em Espinosa, filósofo a que o De Rerum Natura tem dado atenção (ver, por exemplo, aqui, aqui e aqui), se explica, de modo muito claro, o significado da "liberdade de pensamento", bem como a sua importância no tempo presente, nas mais variadas circunstâncias da nossa vida.

"Li Espinosa pela primeira vez quando tinha treze anos. É claro que, na escola, estudávamos a Bíblia – que para mim é a obra filosófica suprema. Todavia, a leitura de Espinosa abriu-me uma nova dimensão, e é essa a razão da minha continuada dedicação às suas obras. Um simples princípio de Espinosa, «O homem pensa», tornou-se para mim um quadro de referência existencial; o meu exemplar da sua Ética já está coçado e com os cantos dobrados. Durante anos levei-o comigo nas minhas viagens, e nos quartos de hotel ou nos intervalos dos concertos deixava-me absorver por muitos dos seus princípios. Ler a Ética de Espinosa é o melhor exercício intelectual que se pode fazer, acima de tudo porque Espinosa ensina, de forma mais completa que qualquer outro filósofo, a liberdade radical de pensamento.

Esta acepção de liberdade de Espinosa não é uma rejeição da disciplina em favor da arbitrariedade de pensamento, mas sim um processo activo. Quanto mais capazes de determinar os nossos próprios pensamentos – aliás, de causar os nossos próprios pensamentos, criando assim a nossa própria experiência da realidade – mais possível é atingir a autodeterminação, a verdadeira liberdade.

Na moderna civilização ocidental é muito fácil a uma pessoa julgar-se livre, com tantas opções de escolha que tem – a escolha de onde viver, o que ler, o que quer ver na televisão ou na Internet – quando na verdade este tipo de realidade pressupõe uma consciência aguda dos nossos apetites. Sem ela somos meros escravos desses apetites e não temos o poder de moldar as nossas próprias ideias e acções.

Esta consciência tornou-se para mim uma espécie de auto-análise pré-freudiana; Espinosa ajuda-me a ver-me, e àquilo que me rodeia, com objectividade. É isto que pode tornar a vida suportável, mesmo em situações de sofrimento; os ensinamentos que encontramos na Ética ajudam-nos a ver o mundo como um lugar governável

O próprio Freud escreveu um dia numa carta a Bickel: «Reconheço que devo muito aos ensinamentos de Espinosa.» Em contrapartida, Espinosa admite, prefigurando a análise freudiana, que não podemos controlar completamente as nossas emoções (proposição 7.ª da 4.ª parte), escreve: «Uma emoção não pode ser reprimida nem removida senão por uma outra emoção contrária àquela que se quer reprimir, e mis forte do que ela.» Portanto, não basta compreender intelectualmente que o ciúme, por exemplo tem um efeito negativo sobre o organismo; tem de ser contrariado por uma emoção igualmente forte – talvez a generosidade ou o amor. Todavia, a faculdade de criar um equilíbrio emocional está dependente da consciência intelectual do problema. Desta forma Espinosa exige a integração de todos os aspectos humanos para se chegar à verdadeira felicidade.

Também na música o intelecto e a emoção caminham de mãos dadas, tanto para o compositor como para o executante. As percepções racional e emocional não só não estão em conflito uma com a outra como, pelo contrário, cada uma guia a outra com vista a alcançar um equilíbrio e compreensão em que o intelecto determina a validade da reacção intuitiva e o elemento emocional fornece ao racional a dimensão de sentimento que confere humanidade ao todo. Há músicos que se deixam cair na convicção supersticiosa de que uma análise demasiado profunda da peça musical destruirá neles a qualidade intuitiva e a liberdade de execução, confundindo conhecimento com rigidez e esquecendo que a compreensão racional não só é possível mas absolutamente necessária para que a imaginação tenha pulso livre.

O grande Votaire acusou um dia Espinosa de «abusar da metafísica». Hoje em dia, porém, o carácter irredutível da metafísica é mais importante do que nunca. Pensar de forma metafísica significa, epistemologicamente, ir para além do físico, do tangível e do literal para compreender a essência de uma coisa e a sua relação com todas as outras coisas, quer se trate de uma pessoa, de um governo, de uma voz numa fuga de Bach ou de um facto da história. De facto, o pensamento libertado tornou-se uma das nossas liberdades mais preciosas, numa época em que os sistemas políticos, os condicionamentos sociais, os códigos morais e o politicamente correcto controlam frequentemente o nosso pensamento.”

Rerência bibliográfica completa:
- Barenboim, D. (2009). Está tudo ligado: o poder da música. Lisboa: Bizâncio, páginas 51-53.

1 comentário:

Rui leprechaun disse...

Puro pensamento oriental, esse da "Ética" de Espinosa. Logo, trata-se da redescoberta de algo que os antigos rishis já sabiam, porque o tinham vivenciado, e assim deixaram escrito nalguns dos livros mais antigos da humanidade.

Agora, a pergunta natural que se segue é de que modo é possível essa "liberdade radical de pensamento", já que não basta simplesmente afirmar a sua imperiosa necessidade. Segundo esses sábios de antanho, tal reside no autoconhecimento só possível através de práticas concretas de interiorização, ou aquilo a que comummente se chama "meditação".

A este respeito, e já na tradição taoísta, há um livrinho que é uma das mais espantosas jóias na senda da auto-descoberta:

"The Secret of the Golden Flower"

E de algo tão indizivelmente belo nada se pode dizer... há que ler p'ra saber compreender!

Que essa emoção mais pura...

Rui leprechaun

(...dentro ecoa e perdura! :))

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