sábado, 17 de outubro de 2009

No rescaldo de uma campanha ministerial

Novo texto de Rui Baptista (na foto o humorista e escritor Soares):

“Não existe cómico fora do que é propriamente humano” (Henri Bergson, 1859-1941)

No rescaldo de uma campanha ministerial de Maria de Lurdes Rodrigues contra os professores portugueses, deixo aqui para lembrança bem viva dos ataques de que os professores foram vítimas na legislatura que ora finda a voz do fino humorista brasileiro da TV Globo, Soares, com ampla e rendida audiência, tanto em terras de Santa Cruz como nesta “ocidental praia lusitana”. tece um retrato bem focado sobre a difícil e espinhosa condição de professor:
“SER PROFESSOR

O material escolar mais barato que existe na praça é o professor!
É jovem, não tem experiência.
É velho, está superado.
Não tem automóvel, é um pobre coitado.
Tem automóvel, chora de "barriga cheia".
Fala em voz alta, vive gritando.
Fala em tom normal, ninguém escuta.
Não falta ao colégio, é um "Adesivo".
Precisa faltar, é um "turista".
Conversa com os outros professores, está "malhando" nos alunos.
Não conversa, é um desligado.
Dá muita matéria, não tem dó do aluno.
Dá pouca matéria, não prepara os alunos.
Brinca com a turma, é metido a engraçado.
Não brinca com a turma, é um chato.
Chama a atenção, é um grosso.
Não chama a atenção, não se sabe impor.
A prova é longa, não dá tempo.
A prova é curta, tira as hipóteses do aluno.
Escreve muito, não explica.
Explica muito, o caderno não tem nada.
Fala correctamente, ninguém entende.
Fala a "língua" do aluno, não tem vocabulário.
Exige, é rude.
Elogia, é debochado.
O aluno é retido, é perseguição.
O aluno é aprovado, deitou "água-benta".
É! O professor está sempre errado, mas, se conseguiu ler até aqui, agradeça a ele”.
Ou seja, para abreviar razões e na voz do povo: “Preso por ter cão e por não ter!

Parece-me também, nesta ocasião, oportuno recordar um excerto de um meu artigo de opinião, intitulado “As fímbrias do manto do professor do liceu” (Correio da Manhã, 17/07/1996). Rezava ele:
“Foi com uma paz de alma muito reconfortante que li a belíssima crónica da festejada académica e bióloga Clara Pinto Correia, ‘O render dos heróis’ (Diário de Notícias, 22/10/1995) sobre os professores do liceu. E porque ‘o mundo das palavras cria o mundo das coisas’ (Lacan), esclarece ela que ‘liceu seja uma palavra que já se não usa, dá jeito, no caso vertente, para simplificar o discurso e toda a gente perceber a que ela se refere’.

Transcrevo agora parte do texto premonitório de Clara Pinto Correia: “A barbárie não anda longe. Nunca andou. É contra o seu fundo de trevas que se desenha o brilho da civilização. É nesse mesmo fundo que, de tempos a tempos, o brilho se dissolve e a escuridão total desce sobre a floresta. É cíclico. Já aconteceu antes. Mais que uma vez. Não temos nenhuma razão para acreditar que não volte a acontecer. Para evitar que assim seja temos nos professores do liceu a mais importante das nossas armas. Devíamos beijar-lhes as fímbrias do manto.”"
Resta-nos esperar para ver a forma como os professores passarão a ser tratados na próxima legislatura pelo(a) detentor(a) da pasta ministerial da Avenida 5 de Outubro.

Rui Baptista

13 comentários:

Américo Oliveira disse...

Alguém percebe por que em Portugal os artistas têm essa graça de serem modelos de tudo e por nada?
Ah, e como eu gosto de me citar...

Leonardo disse...

Aqui no Brasil, nós professores estamos à merce, não de um Estado, mas por ele. Acredito que a intervenção do Estado (aqui MEC) é seriamente prejudicial à educação, agora, inclusive, "estamos" prestes a incorrer em mais um erro, o Ministério está prestes a negar o pedido de lei que facilitaria e permitiria a educação domiciliar (aqui é proibido, com direito à pena). O currículo é unificado (num país de dimensões continentais). E num mundo que corre cada vez mais, felizmente, para uma sociedade do conhecimento, o nosso "mundo brasileiro" resolveu dar passos de cágado, quando não voltar pra trás.

Rui Baptista disse...

Caro Leonardo:

É sempre grato saber que o "De Rerum Natura" é lido no Brasil chegando até nós esse eco, através de comentários como o seu.

Ainda que correndo o risco de me citar, em resposta a um comentário brasileiro sobre os sistemas educativos dos nossos dois países, escrevi, tempos atrás, que cá e lá (aí no Brasil) más fadas há!

Mesmo que sejam simples desabafos o que aqui escrevemos, há um ditado português que diz que água mole em pedra dura tanto dá até que fura.

Desabafemos, pois, nem que seja apenas para termos a consolação de que não pactuamos com situações em que (como escreve) os nossos países, irmanados pelo Atlântico, dão "passos de cágado". O que, por si só, é decepcionante. Mas bem mais decepcionante é quando esses passos se assemelham aos do caranguejo tornando o presente pior que o passado e o futuro numa verdadeira tragédia!

Anónimo disse...

"No rescaldo de uma campanha ministerial de Maria de Lurdes Rodrigues contra os professores portugueses, deixo aqui para lembrança bem viva dos ataques de que os professores foram vítimas na legislatura..."
Será que alguem me explica o que foram, quais foram, os ataques da MLR? Ataques à MLR vi e ouvi muitos. A inversa continua a intrigar-me. Por favor explique e dê exemplos, que deve ser pedagógico.
Obrigada
M. Helena Cabral

Fartinho da Silva disse...

Quer exemplos, M. Helena Cabral?

Pois aqui vão eles:

1º obrigar os professores a professarem a fé das "ciências" da educação;
2º tornar todos os professores iguais, desde o professor do 1º ciclo até ao professor de física do 12º ano;
3º obrigar todos os professores a não prepararem aulas de forma a preencherem todos os relatórios, formulários, grelhas e outras tretas de igual importância para o ensino científico;
4º obrigar todos os professores a tomarem conta de jovens com 17 anos de idade;
5º dividir os professores em professores titulares e em professores, obrigando todos os professores para progredir na carreira a aspirarem a ser burocratas;
6º baixou os salários dos professores, uma vez que os professores do ensino público estão congelados desde 2005;
7º criou um estatuto do aluno que retira definitivamente toda a autoridade do professor perante o aluno;
8º obriga todos os professores a reunirem sistematicamente para discutirem o sexo dos anjos e a importância dos camelos nos ataques aéreos;
9º obriga todos os professores a preencherem toneladas de relatórios cada vez que decidem atribuir uma classificação negativa a um aluno;
10º A Mais importante de todas: colocou o populismo e a demagogia à frente dos interesses do país.

Todas estas tonterias levaram a que milhares de professores deixassem a profissão na escola pública; eu, por exemplo!

E agora para terminar deixo aqui algumas expressões da senhora, respectivos secretários de estado e apoiantes incondicionais:

1 - «[os professores são] arruaceiros, covardes, são como o esparguete (depois de esticados, partem), só são valentes quando estão em grupo!» (Margarida Moreira - DREN, Viana do Castelo, 28/11/2008 )

2 - «vocês [deputados do PS] estão a dar ouvidos a esses professorzecos» (Valter Lemos, Assembleia da República, 24/01/2008 )

3- «quando se dá uma bolacha a um rato, ele a seguir quer um copo de leite!» (Jorge Pedreira, Auditório da Estalagem do Sado, 16/11/2008 )

4- “admito que perdi os professores, mas ganhei a opinião pública” (Maria de Lurdes Rodrigues, Junho/2006)

Demorei cerca de 6 minutos a escrever este texto, imagine se demorasse 2 horas...

Américo Oliveira disse...

E demoraria mais de dois dias se falasse das preocupações dos restantes trabalhadores deste país e um tempo infinito para contar a história de cada um dos seus 500.000 desempregados.
Mas a tragédia laboral está nos professores, pois claro!
Por que será que em Portugal só quem está bem é que se queixa e faz greves?

Anónimo disse...

Agradeço a resposta de Fartinho da Silva, que é, como eu esperava, pedagógica. Breves comentários:
1- O facto dos diversos pontos de 1º a 10º começarem em diferentes tempos de verbo, deve dever-se aos 6 minutos que levou a escrita.
2- Os pontos escolhidos para demonstrar a perseguição da MLR aos professores falam por si, em particular o 10º (!!!)e a discordância entre o 2º e o 5º. Quando isto tudo é posto na balança com o que foi feito e o que tentou ser feito (e não foi conseguido, pela oposição dos professores) nem são precisos comentários.
3- Obviamente não subscrevo e repudio as quatro primeiras declarações citadas (serão verdadeiras ou serão como a declaração difamatória atribuída falsamente a Miguel Sousa Tavares?). Quanto á última, que é aliás a única da ministra, não só não é ofensiva como é verdadeira.
M. Helena Cabral (em 3 minutos)

Américo Oliveira disse...

Quanto às toneladas de papel de que fala Fartinho da Silva, elas não passariam de uma mera "folhita de papel" quando comparadas com os relatórios semanais, quando não diários, que muitos quadros necessitam de produzir, depois de 10 horas de trabalho diário.
(1 minuto)

Fartinho da Silva disse...

Cara M. Cabral,

A confusão entre á e à talvez se deva ao tempo que levou a colocar as suas ideias (?) neste espaço!

Afinal discorda do quê? E, já agora, porquê?

(15 segundos)

Fartinho da Silva disse...

Caro Américo,

Se considera que os professores estão bem, faça um favor a si, ao país e aos 500 mil desempregados, concorra a professor da "escola" pública...!

Américo Oliveira disse...

Agradeço o conselho, mas vem tarde.
Fui professor durante seis meses e rapidamente conclui que ali o mérito não era reconhecido.
Mas muitos outros continuaram, sabe-se lá porquê...
(num abrir e fechar de olhos)

Leonardo disse...

Caro Rui,

Gosto bastante deste site, e sempre obtenho boas informações daqui. Obrigado pela gentil resposta!

Por aqui, continuo com meu lema:

Educação livre, educadores livres.

Rui Baptista disse...

Prezada M. Helena Cabral:

Reconhecidas por ela própria como “pedagógicas”, começo por agradecer as razões apresentadas por Fartinho da Silva ao repto que foi lançado por M. Helena Cabral quando, em defesa da sua dama, Maria de Lurdes Rodrigues, escreve: “Será que alguém me explica o que foram, quais foram, os ataques da MLR?”Agradeço-as e subscrevo-as na integra.

Apenas, ressalto a seguinte crítica de Fartinho da Silva: “tornar todos os professores iguais, desde o professor do 1.º ciclo até ao professor de física do 12.º ano”. Em boa verdade, “o princípio da igualdade que está na Constituição significa que o que é igual deve ser tratado igualmente e o que é desigual deve ser tratado desigualmente”, como escreveu o antigo reitor da Universidade de Coimbra Rui de Alarcão. Não é isso que se passa no Estatuto da Carreira Docente (do ensino não superior), negociado ainda no tempo de Roberto Carneiro, com trinta associações de professores, em clima de tensão socioprofissional sob a passividade dos professores licenciados e a barreira de fogo dos sindicatos em defesa de uma sociedade sem classes ou no interesse de docentes não licenciados, caso de alguns dos seus dirigentes.

Estatuto que tive como uma versão actual do “Leito de Procusta” (título de um dos meus livros que conheceu o prelo em 2005), ou seja, uma cama de ferro em que um salteador da Ática atenazava as suas vítimas esticando os professores menos ilustrados e cortando as pernas aos mais habilitados para nele caberem todos os docentes com parca, ou nenhuma, distinção das respectivas estaturas científicas, técnicas e pedagógicas.

Quiçá por este "statu quo" o professor do antigo liceu deixou de ter o prestígio de outras classes profissionais de idêntica exigência académica, com excepção dos médicos por lidarem com a doença e serem a esperança na sua cura. "O tempora! O mores!"

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...