sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

PERIGO DE MORTE?



Minha crónica publicada no "Público" de hoje:


De Norte a Sul do país muita tensão tem havido por causa das linhas de alta tensão. Na periferia ocidental de Lisboa protestos populares levaram ao fecho de uma nova linha da Rede Eléctrica Nacional (REN). O Tribunal Constitucional negou provimento a um recurso interposto pela REN. Esta empresa chegou entretanto a acordo com a Câmara Municipal de Sintra para enterramento dessa linha, com os custos, que não são pequenos, suportados pela autarquia, isto é, pelos locais. Noutros sítios do país – nomeadamente Guimarães, Batalha, Almada e Silves – tem havido lutas semelhantes contra linhas existentes ou a existir. Já houve greves de fome junto à Assembleia da República. Há aproveitamento por parte de forças políticas, com destaque para o Bloco de Esquerda, cujo líder chegou a afirmar que este seria "o primeiro grande movimento popular do século XXI”. Se o comunismo era os sovietes mais a electricidade, o pós-comunismo há-de ser os sovietes contra a electricidade...

Afirmam os cidadãos em protesto que há uma relação de causalidade entre as radiações electromagnéticas emitida por instalações eléctricas, em particular as linhas de alta tensão, e alguns cancros. Terão razão? Tornando curta uma história que pode ser alongada, a resposta é não. O melhor conhecimento proporcionado pela ciência até à data diz que não existe essa relação. Mais, nem sequer está provada qualquer relação entre a exposição à radiação electromagnética e os males cancerosos que infelizmente afligem a humanidade. O facto de uma pessoa sofrer, por exemplo, de leucemia não significa que a causa da doença se encontre no poste de alta tensão mais próximo. Claro que também não está provado que uma causalidade desse tipo não exista de todo, mas essa prova é impossível. A ciência, neste como em muitos outros casos, dá probabilidades e não certezas. Por isso, não se podem construir linhas por cima das casas ou casas por baixo das linhas: há regras.

A Sociedade Americana de Física, a maior associação de físicos do mundo, divulgou em 1995 um parecer sobre o assunto, que voltou a divulgar em 2005, por não terem surgido alterações de monta. Diz lá claramente: “A literatura científica e os relatórios de revisão de outros painéis mostram que não há nenhuma ligação consistente e significativa entre cancro e linhas eléctricas. A literatura inclui estudos epidemiológicos, pesquisa de sistemas biológicos e análise de mecanismos teóricos de interacção.” E mais adiante: “Os custos da mitigação e litigação relacionados com a ligação entre linhas eléctricas e cancro subiram a milhares de milhões de dólares e ameaçam subir mais. O desvio de recursos para eliminar uma ameaça para a qual não há uma base científica convincente é perturbador. Problemas ambientais mais graves são negligenciados por falta de fundos e da atenção do público e o peso dos custos que recai nas pessoas não é comensurável ao risco, se é que este existe”. Eu, que também sou sócio, assino por baixo.

Não tenho interesses na REN nem conheço quem tenha. Nem sequer tenho qualquer simpatia por essa empresa, que bem podia ser mais selectiva no mecenato científico. Para dizer a verdade, até fiquei a antipatizar com ela depois de saber que vai dar 37 milhões de euros a um centro em formação na Faculdade de Farmácia de Lisboa para fazer um estudo “pioneiro” sobre o assunto (informação do último “Expresso”). A REN? É parte interessada, quer certas conclusões. Estudo pioneiro? A questão foi há muitos anos levantada em vários países e as conclusões são, em suma, as que estão em cima. Suspeito que essa verba não será subtraída aos lucros da REN, mas sim acrescentada nas despesas, o que significa que será paga por nós, com o agravamento dos custos da electricidade. Ora eu não quero pagar para isso, não quero pagar para saber o que já sei. Na Faculdade de Farmácia? Pode-se sempre saber mais do assunto, mas não deve ser na Farmácia. Já alguém, com humor, sugeriu que fosse na Faculdade de Letras, porque assim as conclusões viriam mais bem escritas.

15 comentários:

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Está bem, mas as linhas são feias, e isto também é um custo. Dizer que as linhas de alta tensão provocam o cancro é metaforicamente verdadeiro.

Anónimo disse...

Exmo Sr. Prof. Carlos Fiolhais

Já no seu outro post tinha notado o seu desagrado por ver a Farmácia brindada com uma espécie de euromilhões em fatias e a Física só ter conseguido um bilhetinho do BCP para ingresso numa exposição sem muito interesse.

Deixe lá. Tempos melhores virão. E, já agora, parabéns pelo resto do post (o último parágrafo mostra muita "dor de cotovelo"... mas desculpa-se porque somos humanos e todos temos cotovelos...)

Orlando disse...

Caro CF,
realmente a sua resposta é muito curta. Diz que não se descobriram relações causais. Esse facto esgota o assunto? Quanto a mim, não. Não me costumo deixar impressionar por argumentos de autoridade...

O corpo humano é uma pouco mais complexo do que a teoria das partículas. Muitos medicamentos são considerados como sendo efectivos ou não para tratar uma doença por razões puramente estatísticas. Ninguém compreende completamente as relações de causalidade.

Como tal é em termos estatísticos que a discussão se deve basear.

Convém lembrar que até há uns anos as companhias de tabaco também diziam que não havia relações causais entre fumar ou fumar passivamente e contrair cancro de pulmão.

Julio Maugénio disse...

Cro CF
Eu assino por baixo o seu post. Também não há provas de que o leite creme queimado não provoque o cancro e toda a gente continua a comer. Já agora podiam encomendar mais este estudo aos farmaceuticos ...pelo menos dava-lhes a oportunidade de aplicar os seus métodos analíticos...

Mono disse...

Boa, Prof. Carlos Fiolhais, simples, eficiente e com muito bom senso, como de resto nos habituou.

C. Indico disse...

O problema é o valor da propriedade do solo ! Mas enterrada ainda fica mais perto!

Nuno Sousa disse...

Caros senhores:
Este artigo nitidamente resume a situação actual.
Ao senhor Parente, que aparentemente ficou ofendido com a critica do Dr. Carlos, só gostava de lhe perguntar o que realmente vão estudar.
Sinceramente não consigo compreender o que é que um farmacêutico pode fazer nesta área (admito que até possa fazer alguma coisa!!!). Na verdade, acho que para a análise deste tipo de situações, deve-se fazer um estudo conjunto com um departamento de física ou eng. e claramente com medicina. Agora Farmácia?

Cumprimentos

PS: Dr. Carlos, parabéns pelo artigo

Anónimo disse...

Sr. Nuno Sousa

O Sr. Parente não é parte interessada neste assunto. Nem é físico nem farmacêutico. Para mim a REN pode dar o dinheiro a quem quiser, é-me completamente indiferente.

Não fiquei ofendido com o post do Prof. Fiolhais. Achei apenas graça à insistência no subsídio da REN.

Nuno Sousa disse...

Sr. Patente:
Espero não rude por insistir no assunto, mas pelo que entendi não concordou com o comentário do Dr. Carlos relativamente à atribuição do dinheiro para investigação a um departamento de farmácia. Tanto não concordou, que ainda gozou tentando fazer uma piada.
Só gostaria de saber porque é que concorda com a atribuição do dinheiro a um departamento de farmácia, não achando que é capaz de ser dos menos competentes na avaliação deste problema.

Os melhores cumprimentos

Nuno S

Nuno Sousa disse...

Peço perdão pelos erros no post anterior, entre eles o nome da pessoa ao qual me referia.

Nuno Sousa

José M. Sousa disse...

Estes nossos brilhantes académicos domésticos acham que tudo se explica exclusivamente pela ciência que pretendem dominar.
É ou não verdade que a partir de um certo grau os campos electromagnéticos afectam a saúde? Segundo o documento abaixo da Organização Mundial de Saúde é! Ainda em Junho de 2007 recomendava o seguinte:

«O governo e a indústria devem monitorar a ciência e promover programas de
pesquisa para aprofundar a redução da incerteza da evidência científica de efeitos
sobre a saúde pela exposição a campos ELF. Através do processo de avaliação de
risco de ELF, lacunas no conhecimento foram identificadas e formam a base para
uma nova agenda de pesquisa ( www.who.int/emf ).
• Os Estados Membros são estimulados a estabelecer programas de comunicação
abertos e efetivos com todos os interessados para possibilitar uma tomada de
decisão fundamentada. Isto pode incluir incrementar a coordenação e a consulta
entre indústria, governo local e cidadãos no planejamento de instalações emissoras
de ELF-EMF.
• Quando construindo novas instalações e projetando novos equipamentos, incluindo
eletrodomésticos, formas de baixo custo para a redução de campos devem ser
exploradas. Medidas de redução da exposição variarão de um país para outro.
Entretanto, políticas baseadas na adoção de limites de exposição arbitrários mais
baixos não são recomendadas.»

Assim sendo, a ICAR (INTERNATIONAL AGENCY FOR RESEARCH ON CANCER
) embora admitindo não ter chegado a uma relação de causalidade, também admitiu:

«No consistent relationship has been seen in studies of childhood brain tumours or cancers at other sites and
residential ELF electric and magnetic fields. However, these studies have generally been smaller and of lower
quality.»

Mas, como diz, e bem, o problema está no cumprimento das regras; acontece que, em muitos casos, seja por culpa da REN e/ou das autarquias, essas regras não são cumpridas.

Por outro lado, ninguém está a defender o enterramento geral das Linhas de Alta Tensão. Porque será que nos bairros de gente mais abastada as linhas não foram enterradas? Porque, por exemplo, isso implicaria, quer se queira quer não, uma desvalorização das habitações.

Portanto, Sr. Prof. isto não se resume a uma lição de Fisica!

Quanto ao Bloco de Esquerda, se tivesse assistido a uma sessão de esclarecimento promovida por ele promovida, teria visto que o assunto foi tratado com seriedade, nomeadamente pelo Prof. da Faculdade de Medicina do Porto (António Bastos Leite)
e pelo Dr. António Tavares do Instituto Ricardo Jorge

José M. Sousa disse...

Correcção:

1) quis dizer IARC e não ICAR

2)Porque será que nos bairros de gente mais abastada as linhas FORAM enterradas?

Anónimo disse...

Sr. Nuno Sousa

Nem concordo nem discordo. É-me indiferente que o dinheiro seja entregue a A ou B.

Fiz uma pequena piada mas fazer pequenas piadas não significa "gozar".

Se interpretou desse modo temos duas hipóteses: 1) expressei-me mal; 2) o sr. Nuno Sousa não me entendeu.

Admito perfeitamente que não me expressei do modo mais adequado neste tema.

Armando Quintas disse...

Sobre este assunto temos que ver várias questões, ponto I, já foram feitos estudos suficientes sobre esta tematica? Se sim, optimo, senão que sejam feitos por independentes, ponto II as regras de construção foram respeitadas? Se sim optimo, senão devem ser-lo de modo coercivo, III e mais importante, se os estudos foram suficiente e não demostram relação entre 1 coisa e outra que se investigue o meio local, ha elevada taxa de cancros na zona? que tipo? será derivado da industria local se a houver ou de outras questões como a agua consumida? É que na idade media a peste provinha de agentes microscopicos e pensava-se no diabo, e se esses cancros existem em quantidade suficiente será melhor começar a investigar outros culpados tambem, se não existem cancros de forma alarmante então trata-se novamente de demagogia barata de interesses instalados e de jornalismo de sarjeta dos media..

Maria disse...

A Sociedade Americana de Física é, entre outras coisas, um grupo de lobbying. Todos nós defendemos defendemos, uma vez por outra, os nossos interesses. Usando todos os meios ao nosso alcance. Entre eles a nossa credibilidade científica. Its only fair. Desta vez CF usa a sua credibilidade cientifica para mostrar que um departamento de física podia executar este trabalhinho à REN mais barato e melhor. Até acredito que seja verdade.

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