Tigre, tigre, chama pura
Nas florestas, noite escura,
Que olho ou mão imortal cria
Tua terrível simetria?
De que abismo ou céu distante
Vem tal fogo coruscante?
Que asas ousa nesse jogo?
E que mão se atreve ao fogo?
(…)
O Tigre, magnífico poema de William Blake (1757-1827), de que acima reproduzi o princípio, talvez tenha prendido demoradamente a atenção de Jacob Bronowski. Por alguma razão, imagino-o a deter-se nele, a lê-lo várias vezes, a decorá-lo.... Na verdade, a força da escrita do poeta-artista inglês impressionou o matemático-filósofo ao ponto de lhe ter dedicado, tanto quanto sei, dois livros (um datado de 1944 – William Blake. A Man Without a Mask – e outro de 1958 – Selections from William Blake).
A convivência, quando era ainda muito jovem, com as obras de escritores como Blake, Goethe ou Dickens despertou em Bronowsky uma enorme curiosidade pela literatura e, em particular, pela poesia. A natureza destas formas artísticas era, no seu entender, perfeitamente conciliável com a natureza da ciência, porquanto ambas as actividades decorrem da imaginação e da capacidade de construção do saber que, como humanos, possuímos. O modo como perspectivou essa relação constitui um dos mais interessantes e completos que conheço.
Quando, neste Janeiro, dei conta que se completou um século sobre o nascimento de Bronowsky, foi dessa relação que me lembrei em primeiro lugar. Entendendo que ninguém melhor do que ele próprio a poderá explicar, transcrevo, de seguida um excerto de uma entrevista que o filósofo George Derferb lhe fez em 1974 e que, como o leitor perceberá, possui a frescura e a inteligência que perpassam na sua obra.
G. Derferb: (…) Sei também – como resultado do trabalho que efectuei sobre a sua vida e obra – que se dedica ao estudo da poesia e da crítica literária. Como é que este seu interesse particular foi influenciado pelos seguintes factores: atitudes a respeito da ciência, convicção da necessidade de se articular uma série de valores, e compreensão das operações visíveis e invisíveis que são inerentes à ciência?
J. Bronowski: Está a levantar agora uma questão fundamental. Não faz sentido pensarmos sobre a natureza do conhecimento se nos limitarmos no âmbito da actividade científica. As actividades artísticas são tão profundamente (o termo profissional é caracteristicamente), tão especificamente humanas, como as actividades ditas científicas. Inicialmente direi algo sobre a linguagem, já que é verdadeiramente indispensável se vamos falar de poesia.
A linguagem humana é, entre outras coisas, um género de arquivo do conhecimento humano. É diferenciada por um conjunto de características que representam certas potencialidades da mente humana. Há uma (…) que é única, tanto quanto sabemos. Temos um vocabulário de sinónimos que torna possível a articulação de frases que, embora à primeira vista pareçam idênticas, na verdade podem adquirir um tom emocional diferente. Noutras palavras, podemos – com este vocabulário – colorir as nossas predicações. Utilizo aqui o termo “colorir” no seu sentido mais belo e preciso, ou seja o estético. Esta característica que possibilita a criação poética é uma actividade tão específica à espécie como é a actividade científica. Além disso, estas duas actividades são inseparáveis, dada a existência dessa ligação entre as duas facetas da linguagem.
G. Derferb: No seu livro A identidade do homem, o professor explica uma outra relação entre a poesia e a ciência (…). Nesse livro caracteriza a poesia e a ciência como dois modos complementares de conhecimento.
J. Bronowski: Sim. Há dois modos pelos quais os seres humanos compreendem o que existe para além da subjectividade imediata. Por um lado, há o modo poético pelo qual compreendemos como as outras pessoas sentem, já que partilhamos esses sentimentos. A literatura entusiasma porque através dela conseguimos participar num grande número de emoções que possuímos de uma forma embrionária (…). A leitura de uma obra permite, a cada um de nós, um desdobramento das nossas potencialidades – boas e más – que até então não haviam atingido maturação. A ciência é outra parte da consciência humana (…).
O conhecimento humano é um empreendimento criativo que permite visualizar o mundo com os olhos novos e também formular analogias cada vez mais complexas, mais subtis. Para tal é necessário utilizarmos as duas facetas da imaginação humana. A imaginação tem de estar relacionada com uma vontade de conhecer, com a convicção de que cumprimos a nossa humanidade neste mundo através da produção de conhecimento (…)”
Texto: “A ciência, a poesia e a ‘especificidade humana’”. In J. Bronowski (1992). A responsabilidade do cientista e outros escritos. Lisboa: Dom Quixote.
Tradução do poema O tigre, de William Blake, por Vasco Graça Moura, publicada em Laocoonte, rimas várias, andamentos graves. Lisboa: Quetzal Editores, 2005.
Imagem retirada da BBC.
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4 comentários:
Meus cumprimentos pelo blogue e por este post em especial. Muito bom.
Vou colocar a série "The Ascent of Man" online para quem tem curiosidade em descobrir melhor o trabalho de Jacob Bronowski.
Irei deixar no meu blog os links e as instruções para como realizar o download e como melhor visionar os episódios.
http://thusbeginstheweb.blogspot.com/
Está muito bom este artigo. Não só a ciência e a poesia são facetas do conhecimento humano, mas outra qualquer forma de arte, a a religião, filosofia, ...
Excelente artigo, lembra-me um livro chamado Poezz, que faz uma ligação entre a poesia e o jazz.
Parabéns à autora
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