quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

"AS NUVENS" DE ARISTÓFANES


A minha relação com o teatro é a de simples espectador, embora um espectador muito atento e interessado sobretudo em todo o teatro que tenha a ver com a ciência. Já o disse noutro lado, levar a ciência ao palco é uma das melhores formas de fazer cultura científica. Mas uma relação tão simples e banal não impediu a Faculdade de Letras da Universidade do Porto de me convidar para um congresso sobre retórica e teatro que organizou há poucas semanas.

Escolhi a peça “Vida de Galileu” do dramaturgo alemão Bertold Brecht para dar alguns exemplos de retórica e teatro. Brecht põe na boca do sábio pisano uma retórica que abala algumas verdades estabelecidas. Por exemplo, na cena três, passada na cidade de Pádua em 10 de Janeiro de 1610 (falta pouco para o quarto centenário das primeiras observações celestes com o telescópio, realizadas em 1609), Galileu declara, depois de espreitar o céu com o seu instrumento: “Não pare de olhar, Sagredo. O que você vê é que não há diferença entre céu e terra. Hoje, 10 de Janeiro de 1610, a humanidade regista em seu diário: aboliu-se o céu” (estou a usar a edição brasileira “Teatro Completo” de Brecht, vol. 6, Editora Paz e Terra, 1991, tradução de Roberto Schwartz, a versão original é de 1938 mas há mais duas, durante e após a a guerra). E, mais adiante, quando Sagredo pergunta a Galileu “Onde é que fica Deus?”, obtém como resposta: “Lá não! Do mesmo jeito que ele não existe aqui na Terra, se houver habitantes de lá que queiram achá-lo aqui!”

Presente estava uma grande conhecedora do teatro clássico, a minha colega da Universidade de Coimbra Maria de Fátima Sousa e Silva, que lembrou muito a propósito que esse tipo de retórica a respeito de Deus e da observação dos céus já se encontrava, muito séculos antes, no teatro grego. E nomeou a comédia “As Nuvens” de Aristófanes, representada pela primeira vez no ano de 423 no teatro de Dionísio, na Acrópole, em Atenas. Eu já devia saber que os gregos tinham antecedido todos, em quase tudo, mas não tinha bem presente a trama da peça. Tinha apenas uma vaga ideia de que se tratava de uma paródia aos sofistas.

Fui procurá-la à Internet, onde está em texto integral em inglês (há até várias traduções). Mas dias depois tinha o grato prazer de receber, para minha instrução e proveito, o livro de Aristófanes “Comédias I” da Biblioteca de Autores Clássicos co-editada pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. O volume, saído em 2006, tem uma introdução geral de Maria de Fátima Silva, que foi também responsável pela introdução, tradução e notas das peças Acarnenses” e “Cavaleiros”. A terceira e última peça do livro, precisamente As Nuvens”, tem introdução, tradução e notas de Custódio Magueijo (professor de grego da Universidade de Lisboa; a quem o apelido soe familiar, faço notar que ele é pai de um conhecido astrofísico português que trabalha em Londres). Magueijo tinha já sido o autor de uma tradução da mesma peça publicada pela Editorial Inquérito com primeira edição em 1984.

Pois lendo agora essa bela tradução, encontro, de facto, vários excertos que se podem colocar em paralelo com Brecht (que era aliás um grande conhecedor do teatro grego).

A acção é relativamente simples. Um abastado proprietário rural, Estrepsíades, procura educar o seu filho, Fidípedes. O filho era o que hoje se poderia chamar um “playboy”, grande gastador dos proventos do pai em cavalos caros e carros de corrida. O velho quer então meter o filho a aprender com Sócrates, o “sofista”, e, perante a resistência do filho, vai ele próprio ver como é essa tal escola, chamada Frontistério ou Pensatório, e que é uma espécie de faculdade de ciências, letras, etc. Estrepsíades é mal sucedido, mas o filho acaba por aceitar lá entrar. Sócrates apresenta ao aluno duas personagens, o Raciocínio Justo e o Raciocínio Injusto, que representam afinal os métodos pedagógicos antigo e moderno. Do duelo entre os dois sai vencedor o Raciocínio Injusto, o que é afinal uma maneira de o conservador Aristófanes ridicularizar as novas pedagogias. O conflito de gerações dá para o torto, porque o filho não só bate no pai como justifica a sua acção usando o que aprendeu com o Raciocínio Injusto. O pai, deseperado, deita fogo, no final, ao Frontistério. A peça é bastante divertida, mas acaba por ser injusta para com Sócrates, que não é particularmente bem retratado. Ele não passa de um mestre de retórica, que se faz pagar pelos seus serviços, e que se põe ao serviço de qualquer causa. Este Sócrates não é lá muito amigo da verdade...

A peça, que hoje é um clássico entre os clássicos de Aristófanes (Maria de Fátima Silva é a autora de vários trabalhos sobre Aristófanes, entre os quais o recente Ensaios sobre Aristófanes” nos Livros Cotovia), não teve sucesso quando foi estreada. Ficou até em terceiro lugar nas Grandes Dionísiacas, depois de duas obras de autores menores cujos textos não chegaram até nós. O autor reescreveu depois a peça – o texto conhecido resultou dessa reescrita – e lança no meio uma invectiva aos espectadores (a chamada parábase) sobre a sua falta de sentido de humor.

Mas onde está o paralelismo com a “ausência de Deus” brechtiana? Pois está num pitoresco diálogo entre Estrepsíades (E) e Sócrates (S) que é um bom exemplo do uso da retórica, ou arte do convencimento, em palco:

“E- Mas... Então e Zeus?... Vejamos pela Terra!... Então Zeus Olímpico não é deus?

S- Qual Zeus nem meio Zeus!... Não digas asneiras: Zeus... não existe!

E- Que é que estás dizendo? Então quem é que chove? Sim, antes de mais nada, explica-me lá essa coisa.

S- São elas [as nuvens] que chovem, obviamente. E é isso mesmo que te vou demonstrar com provas irrefutáveis. Ora bem: onde é que já alguma vez viste chover sem haver nuvens? Em boa verdade, ele, Zeus, deveria chover com céu limpo, na ausência de nuvens.

E- Por Apolo! Com tal argumento provaste muito bem essa teoria... E eu que dantes cuidava que era mesmo Zeus a mijar por um regador!... Mas... Explica-me mais uma coisa: quem é que troveja, que até me põe todo a tremelicar?

S- São elas que, ao rebolarem-se, provocam, os trovões.

E- Mas como é isso, criatura tão desmedida?

S- Ao encherem-se abundantemente de água, são forçadas, por via disso, a deslocar-se. Ora, assim cheias de chuva, forçosamente ficam penduradas para baixo... Vai daí, mais pesadas, caem uma sobre as outras, rebentam e estalam.

E- E quem é que as força a mover-se? Não é Zeus?

S- Nada disso... É o Tornado etéreo.

E- O Tornado? Eis uma ideia que nunca me tinha passado pela cabeça, que Zeus não existe, e que agora, em vez dele, quem reina é o Tornado...”

E assim os deuses começaram a cair na Antiga Grécia. Primeiro no teatro e depois na vida real. Muito antes de Galileu ter posto (via Brecht) as estrelas a ocupar o lugar de Deus, já Sócrates (via Aristófanes) punha os fenómenos meteorológicos naturais a ocupar o lugar dos deuses, em particular do maior deles todos, o poderoso Zeus. Dada a distância no tempo entre Aristófanes e Brecht impressiona a actualidade do primeiro.

Que o teatro de Aristófanes se mantém actual prova-o também o facto de, recentemente, quando estava a começar a guerra do Iraque, ter havido por todo o mundo numerosas representações de “Lisístrata”, a peça em que as mulheres de várias cidades em guerra fazem greve ao sexo com os seus maridos e companheiros na tentativa de acabar com o conflito armado...

1 comentário:

almariada disse...

Dada a distância no tempo entre Aristófanes e Brecht impressiona a antiguidade do segundo! ;)

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