segunda-feira, 15 de agosto de 2022

UM PRECEDENTE MUITO PREOCUPANTE NO QUE RESPEITA À PROFISSÃO DOCENTE

Por Maria Helena Damião e Cátia Delgado

Na sequência de texto anterior (ver aqui).

Soubemos hoje que, na passada sexta-feira, foi publicado um novo diploma legal que estabelece as normas de execução do orçamento do Estado (Decreto-Lei n.º 53/2022, de 12 de agosto). No seu artigo 161.º (referente à "habilitação própria para a docência no procedimento de contratação de escola") consta que:
... a seleção de docentes com habilitação própria (...), aplica-se, ainda, aos cursos pós-Bolonha

Ou seja, são agora reconhecidos como detentores de habilitação própria os licenciados pré-Bolonha (a quem essa habilitação já era reconhecida) e quem, num contexto pós-Bolonha reúna

... os requisitos mínimos de formação científica, adequada às áreas disciplinares dos diferentes grupos de recrutamento... 

Isto, que fique bem claro, é válido apenas e só para...

... a seleção de docentes em procedimentos de contratação de escola...

O que está aqui, efectivamente, em causa?  

Mesmo que a medida seja restrita a um ano escolar (2022-2023) e que tenhamos de reconhecer o problema da falta de professores profissionalizados, a verdade é que esta medida da tutela abre um grave precedente no que respeita ao que é "ser professor". Lembramos que um professor é diferente de alguém que "dá umas aulas" porque não existem professores.

Parecia assente, depois de 2007, que para se ser professor teria de se fazer um Mestrado em Ensino, curso que asseguraria a formação pedagógica (com diversas dimensões) numa articulação com a formação científica, numa ponte entre teoria e prática supervisionada. 

Podemos alegar que estes Mestrados padecem de limitações várias. Sim, é verdade. Porém, uma coisa é reconhecer essas limitações e tentar superá-las; outra, bem diferente, é contornar o marco que a sua figura traduziu. E bem!

Para melhor entendimento desta opção ministerial, que é um real retrocesso no difícil caminho que tem sido o da profissionalização do ensino, reproduzimos a informação disponibilizada no site da Direção-Geral da Administração Escolar, ainda de acordo com o quadro jurídico anterior ao que o normativo em causa prevê (e, logo, em desacordo com ele) (aqui):
Os cursos que foram reconhecidos como habilitação própria para a docência são todos cursos científicos anteriores ao Processo de Bolonha que constam de diversos normativos publicados entre 1984 e 2007 e não conferem qualificação profissional para a docência. Esgotada a possibilidade de colocação de docentes profissionalizados, os estabelecimentos públicos de educação e ensino que ministrem o 2.º e o 3.º ciclos do ensino básico e o ensino secundário podem, a título excecional, selecionar docentes detentores de cursos reconhecidos como habilitação própria... 
Ainda é possível lecionar com habilitação própria? O atual regime jurídico da habilitação profissional para a docência (...) determina a posse de habilitação profissional como condição para o exercício da função docente. 
Os cursos que qualificam profissionalmente são os mestrados em ensino (...). Em consequência, a habilitação para a docência passou a ser exclusivamente profissional, deixando de existir a habilitação própria, pelo que a partir de 2007 deixou de proceder-se ao reconhecimento de novos cursos como habilitações próprias para a docência. 
Importa salientar que as habilitações próprias para a docência são referentes a cursos pré-Processo de Bolonha. Assim, apenas na fase de contratação de escola (...), e perante a ausência de docentes com habilitação profissional, podem ser recrutados candidatos possuidores de cursos reconhecidos como habilitação própria.

4 comentários:

Anónimo disse...

A desvalorização do ensino e aprendizagem dos conhecimentos disciplinares ditos "clássicos", como sejam Português, Matemática, Física, Química, Biologia, História e Geografia, entre outros, é patente nos cortes profundos infligidos pelo próprio ministério da educação nas matérias que os professores ainda estão autorizados a lecionar. Há poucos anos atrás, no ensino profissional, fui testemunha de orientações governamentais que , para agilizar percursos formativos, impunham a aprovação de alunos que não concluíssem a totalidade dos módulos de cada uma das disciplinas, na presunção de que a percentagem de matéria do não aprendida pelo aluno, apesar de estar programada, não era essencial, concluo agora eu!. Por outro lado, a sociedade em geral já interiorizou que a finalidade principal da escola é passar diplomas a torto e a direito - os saberes e as competências adquiridos na escola não valem mais do que a formação dada pela universidade da vida, que, aliás, também possibilita a obtenção de diplomas, nem que seja por equivalência (ver José Sócrates).
A alteração das habilitações “exigidas” para dar aulas só pode ir no sentido de reforçar a componente psicopedagógica do percurso formativo do candidato, em detrimento da componente científica. Ao longo das últimas décadas, o ensino tem vindo a perder qualidade em Portugal porque quem manda corrompeu os programas das disciplinas, acabou com os exames e a justiça nas avaliações e semeou a confusão e a indisciplina nas escolas.
Para as chefias da escola flexível das aprendizagens essenciais o problema da habilitação para a docência é um não problema.
Mesmo a mim, que só tenho uma licenciatura - com estágio integrado-, já me puseram a dar matemática, física, química, biologia, geologia e geografia
Para o baixo nível a que isto chegou, qualquer diplomado com a 4.ª classe, do tempo do Professor Marcelo Caetano, está mais do que habilitado a lecionar as duas disciplinas fundamentais, Português e Matemática, dos currículos das escolas EB 1,2,3 + JI + S.

Anónimo disse...

É o facilitismo no seu máximo esplendor!
Em Portugal, somos todos obrigados, enquanto alunos, a frequentar uma escola fácil. A seguir, o ingresso na profissão docente é facilitado por despachos de ministros que praticamente conferem habilitação para a docência a todos os licenciados dos ensinos politécnico e universitário.
No entanto, é muito estranho que, apesar de toda a facilidade na educação, Portugal permaneça na cauda da Europa no que diz respeito ao seu desenvolvimento cultural e económico. Será que a saída deste pântano em que estamos atolados não passa por uma requalificação completa de todos os professores e educadores de infância, no ativo e em formação, abrindo as portas de par em par a quem queira abraçar as novas profissões de mentores, gurus, tutores e coachers, devidamente habilitados para levarem os seus aprendizes a estádios de felicidade plena que o dinheiro não compra. Talvez assim consigamos que os portugueses fiquem todos muito felizes e bem preparados para continuarem a ir trabalhar lá para fora.

Miguel disse...

Os "mestrados em ensino de" são uma chachada monumental e por isso é que ninguém os vai tirar. Não têm pés nem cabeça e nem existem para todos os grupos de recrutamento. Esse foi logo o erro para começar. Se querem ter realmente professores, a solução passa por aceitar as habilitações próprias (o percurso científico) como chave, e depois a formação pedagógica ser dada em pós-laboral e no início da carreira (num período experimental, durante os primeiros 2 contratos, por exemplo, mas paga pelo índice 126 ou mesmo 151 dependendo da habilitação) "no terreno". Como se foi fazendo com a profissionalização em serviço da universidade aberta. Ser "professor" não é, nem pode ser uma "carreira pedagógica" fechada e urdida nas superiores de educação, isso não tem sentido algum. Tem de ser sempre uma carreira científica, que permite às pessoas que querem dar aulas poderem dá-las uns anos, poderem dar a meio tempo também, poderem ir para a indústria e voltar, ou mudar de carreira. Nos tempos modernos pensar ser "professor" como uma vocação eterna e fechada no mesmo grupo disciplinar para 30-40 anos, é uma utopia e um erro de meia dúzia de maluquinhos. Por isso é que vão faltar professores e profissionais em inúmeras áreas. Sobretudo com o Inverno Demográfico. Depois vão ficar muito admirados e a queixar-se que não há professores, e serem todos substituídos por vídeos e cursos online à la Tele-escola, porque não vai haver mesmo alternativas em certas áreas geográficas e certos grupos de recrutamento. Mas também não vai haver muito mal: aprendi muito mais a ver professores a sério em "vídeo" e cursos online do que a aturar certas iluminárias que nos calhavam à frente na vida real. Se calhar um dia ainda vão perceber que, sobretudo nas matérias mais expositivas, mais vale ter 2 ou 3 professores a dar aulas para dois milhões de alunos, do que ter milhares deles medíocres... isto vai dar uma grande volta vai, e não adianta muito reclamar, porque o modelo simplesmente não funciona com a realidade, nem com as pessoas que existem no terreno.

Anónimo disse...

Se muitas "iluminárias" de carne e osso fossem obrigadas a frequentar cursos de formação pós-laboral em filosofia ubuntu, ganhariam elas, aumentando seu brilho intelectual, e ganharíamos nós que, durante o tempo dos cursos, não teríamos de as aturar.

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