Por Cátia Delgado
“... em vez de fazermos uma lista em função da designação dos cursos,
o que vamos ver é se, em número de créditos nas diferentes áreas científicas,
têm créditos que habilitam ou que conferem
uma habilitação científica sólida para se poder leccionar”.
Ministro da Educação, 2022.
Ministro da Educação, 2022.
Na verborreia da "educação do futuro", sobressai o elogio do professor, o reforço da sua formação e a (re)valorização da sua profissão. Portugal tem sido um particular entusiasta dela, na política, nas academias, nas escolas, na comunicação social, etc.
Veja-se agora a ironia: nas últimas semanas, assistimos à legitimação legal do recrutamento de professores a partir de critérios mínimos, em tudo contrários a essa verborreia.
Disse-se inicialmente que o recrutamento ficaria muito localizado em disciplinas para as quais não há Mestrado em Ensino (ciclo de estudos que confere qualificação profissional), como é o caso da Informática. Mas, Clara Viana, jornalista que costuma fazer bem o "trabalho de casa", num artigo muito recente do Público ("Patamar mínimo de formação é o critério para contratar novos professores de Português e Inglês"), mostrou que Português e Inglês (áreas disciplinares em que existem esses mestrados), estão numa situação crítica.
À data de hoje, são já 178 os horários em oferta de escola, para os quais não há candidatos profissionalizados disponíveis para leccionar no ano letivo que começa daqui a poucos dias. Na sua maioria são horários da área da Informática, mas também de Português, Inglês e Geografia, sobretudo na zona de Lisboa e Vale do Tejo.
Para ocupar um desses horários, bastará a um licenciado pós-Bolonha, ter reunido, nalguns casos, entre 60 a 80 ECTS (Sistema Europeu de Transferência de Créditos), na área disciplinar a que se candidata, o que corresponde a pouco mais de um ano de formação científica específica em instituição de ensino superior.
Por exemplo, no grupo de recrutamento:- 330 (Inglês) são requeridos 60 créditos para leccionar Inglês;- 300 (Português) são requeridos 80 créditos para leccionar Português
A consulta da legislação que estabelece a habilitação profissional para a docência (Decreto-Lei n.º 79/2014, de 14 de maio) permite compreender a determinação dos ECTS. Seguindo a referida notícia, para se ingressar em Mestrados em Ensino de Português e de Inglês do 3.º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário, são necessários, no mínimo, 120 créditos (sendo 60 na área de Inglês e 80 na área de Português).
O projeto do despacho que especifica os créditos requeridos nos diversos grupo de recrutamento será alvo de negociação com os sindicatos de professores, a partir de amanhã, não se esperando, porém, grandes alterações.
Estamos face a um precedente de desvalorização da formação de professores e da profissão docente a que não vemos retorno à vista, dadas as medidas que se lhe têm associado, nomeadamente, a "profissionalização em serviço", que tende a ser em regime de ensino "a distância", na modalidade de e-learning.
Num quadro tão preocupante e desanimador, não podemos deixar de perguntar (e o Ministério da Educação deveria responder sem subterfúgios): para se aceder ao ensino, "habilitação científica sólida" significa "mínimo dos mínimos"?
2 comentários:
Não sejamos ingénuos.
O projeto de despacho com as novas regras de habilitações para a docência remete sobretudo para os requisitos de formação académica dos profissionais que agora ocupam os lugares que, no tempo de Rómulo de Carvalho (António Gedeão), pertenciam aos professores do liceu. Nesses tempos, quando apenas a fidalguia e a alta burguesia tinham o direito de percorrer os corredores e entrar nos salões nobres das universidades, os educadores de infância, apesar de serem também filhos da pequena burguesia, tinham habilitações literárias e estatuto socioprofissional inferiores aos dos professores do liceu. Por obra e graça do 25 de Abril de 1974, agora somos todos livres e iguais. Quem tem formação universitária em Números Complexos, ou em Física Quântica, foi integrado na carreira profissional dos antigos professores primários e educadores de infância. Para trabalho diferente, os revolucionários da educação portugueses optaram por salário igual, mas pequeno!
Para a maioria dos alunos e encarregados de educação, vale mais um diploma na mão do que mil conhecimentos essenciais, ou até etéreos, que, muitas vezes, não chegam para ganhar o pão e o vinho de cada dia. O diploma, só por si, até poderá não abrir muitas portas, mas pelo menos certifica que o cidadão tem perfil democrático e cumpriu os 12 anos obrigatórios de escolaridade. Se quiser, está pronto para ir trabalhar lá para fora.
Resumindo: o nosso sistema de ensino é bom para alunos e encarregados de educação que querem, acima de tudo, notas altas e canudos redondos, e é bom para quem se candidata a professor porque lhe exigem habilitações diminutas, quase insignificantes, consentâneas com a ausência nos currículos escolares das matérias mais importantes que deveria lecionar. Com esta linha de pensamento, espero despertar consciências de altas autoridades governamentais portuguesas, nomeadamente as da área da educação, para a urgência de tomar medidas, de sentido oposto ao do politicamente correto, que evitem o desmoronar do nosso depauperado sistema escolar.
Educar, todos e tudo educa.
Cuidado com a educação. Quem não se queixa da educação que recebeu (o termo é muito significativo e carregado de tradição) ainda deve estar mais de sobreaviso.
Ensinar é mais complexo, mais solidário, mais honesto, mais explícito, mais confiável, mais amigável, mais avisado, mais avançado, mais revolucionário.
Putin educa, Hitler educou, Estaline dava isso como garantido e os religiosos sempre puseram todas as fichas na mesa das apostas da educação para concretizarem os desígnios divinos.
Ensinar é outro negócio, é outra história, é outra narrativa. Se não é oposta a educar, pelo menos é crítica, contestatária, muitas vezes feita à revelia da educação oficial.
Educar é perigoso, ensinar é promissor. Transmitir valores, crenças, normas de conduta é algo que se tem revelado catastrófico, trágico, incurável, abominável, fatal. É certo que há sempre o outro lado da medalha. É o apelo aos valores que mobiliza para a guerra e para a vitória. Uma bomba lançada sobre o inimigo é um acto sublime. Uma bomba lançada pelo inimigo é um acto cobarde e imperdoável.
Não devemos combater uma crença com outra crença? Ou seja, não devemos combater? E temos outro remédio?
Há os que educam, por exemplo, para agradar e obter as bençãos do Sr. Abade, ou do Regedor, ou do professor, e há os que educam para se perfilarem nas hostes políticas e dominarem o jogo dos interesses, avessos a obediências ditadas por opositores, ainda que posicionados em cargos de supremacia de facto, seja fiscal, seja política, seja administrativa. E há os párias, que rejeitam todas as propostas e são educados para não precisarem dessas estruturas viciadas de favorecimento e de nunca vergarem, nem fingirem respeitos que não devem a ninguém, que são educados a esperar todo o tipo de maus tratos e de desprezo e de discriminação, que só podem contar com a sua força e não deixam que lhes indiquem o personagem sagrado que vão vestir nas procissões dos corpos dos deuses. E isto vem de longe, de muito longe. E, para tristeza e preocupação de muita gente, está a agravar-se. O nepotismo anda à solta, a par com a corrupção e a batota na disputa de méritos e de reconhecimentos. Então o partidarismo e o favorecimento no acesso a funções públicas, vão-se instituindo cada vez mais como procedimentos “normais”, como se o público e o Estado fossem a oportunidade dada a alguns privados que pensam e actuam como se estivessem nas suas quintas, enquanto estiverem.
Entre os que educam para o jogo, com os trunfos na mão e os que educam para o jogo da batota, a diferença é óbvia.
O ensino é outra coisa.
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