Por Cátia Delgado
(Estudante de Doutoramento em Ciências da Educação)
Na sequência de texto antes publicado (aqui)
Fonte: OECD Education and Skills Newsletter: July 2022
A OCDE publicou em julho deste ano um “resumo de política” que questiona os efeitos, em termos de aprendizagem, da crescente tendência de leitura em ecrãs. As duas analistas que assinam o resumo, afetas a esta organização (Ikeda & Rech, 2022) recuperaram dados do PISA (Programa Internacional de Avaliação dos Alunos) de 2018, cujo foco foi a leitura, concluindo que a competência leitora dos alunos que leem em suporte de papel é superior à dos alunos que leem só em suporte digital.
Sublinhando a relação direta entre o desempenho na leitura e o suporte usado para ler, alertam as “partes interessadas” na educação para a necessidade de se olhar para as condições de equidade pois o acesso a livros em papel em casa tem implicações favoráveis no desempenho e prazer de leitura dos jovens. Escreveram: “embora grande parte do mundo esteja cada vez mais digitalizado, a questão da igualdade de acesso aos livros impressos não deve ser esquecida”.
Quem acompanha de perto a produção de relatórios, estudos e conferências da OCDE, sobretudo nos últimos dois anos, ficará surpreendido com esta declaração. Na verdade, em muita dessa produção, a pretexto da pandemia, vê-se repisada a necessidade da digitalização da educação. Eis alguns exemplos, de frases que se repetem:
“A digitalização sobrepor-se-á”;
“A pandemia mostrou-nos que a educação pode funcionar fora da sala de aula e apresentou-nos os benefícios da tecnologia”;
“Lições da pandemia: (...) a digitalização e a inclusão devem ser a principal prioridade para a educação”;
“Esses mesmos desenvolvimentos tecnológicos e convulsões sociais – incluindo, mas não se limitando à pandemia – estão a alterar fundamentalmente a maneira como vivemos as nossas vidas numa escala global, o que significa que os modelos tradicionais de educação estão cada vez mais desatualizados e desadequados ao propósito”;
“A digitalização está a mudar a educação globalmente, estimulada pela pandemia”;
“A pandemia provocou uma grande mudança ao tornar a tecnologia digital a principal ferramenta de ensino”;
“Currículos digitais possibilitarão mudanças ainda mais rápidas e menos onerosas”;
“As escolas são centros intergeracionais únicos, e a crescente dependência de ferramentas digitais no ensino trazida pela pandemia covid oferece uma oportunidade única para indivíduos de diferentes gerações aprenderem uns com os outros e colaborarem para enfrentar esses desafios”;
“A tecnologia digital aprimora as experiências de aprendizagem dos alunos e leva-os a melhores resultados”.
As vantagens atribuídas à digitalização ultrapassam as aqui mencionadas: reportam-se ao ensino e à aprendizagem, à socialização e à cooperação, à organização institucional, à formação de professores (à sua imprescindível capacitação digital), à motivação dos alunos, à promoção do bem-estar geral, etc.
O que expliquei até aqui mostra um dissenso veiculado pela mesma organização, ainda que isso não seja abertamente reconhecido por ela. Como interpretar tal situação?
No meu entender, há que olhar para a já antiga estratégia da OCDE de “estimular conversas entre atores influentes nos sistemas nacionais de educação”, a qual lhe permite exercer um “controle simbólico”, sobre eles, diz Robertson (2012). Nos seus discursos, a organização põe a tónica neste ou naquele aspeto em função de interesses próprios e de alvos que pretende atingir num certo momento. Quanto mais amplo for o espectro de ideias veiculadas - mesmo contraditórias, como é o caso que aqui trouxe - mais vasto será o público abrangido e que credibiliza a sua ação.
Esta atitude, bastante proativa, permite-lhe avançar para novos temas e questões-chave, a que se segue a definição de agendas e tendências políticas, fazendo, em simultâneo, passar a mensagem de que o público é “necessitado e carente" de informação, "assim, cultivando a dependência da organização" (Berkovich & Benoliel, 2017, p.12), os denominados mecanismos “soft" através dos quais a OCDE amplia o seu poder (Martens e Jakobi, 2010).
E, no "pragmatismo" que faz passar, dificulta a crítica: através, nomeadamente, de uma “abordagem dualista” (apresentar algo e o seu contrário), identificada por Berkovich & Benoliel (2017), “naturaliza” e “neutraliza” diferenças encontradas.
Lembro que em 2016, Andreas Schleicher, diretor da Diretoria de Educação e Habilidades da OCDE, nesta dualidade discursiva, reconheceu que o processo de digitalização do ensino “até piora as coisas”, mas isso não levou a OCDE, como mostrei acima, a deixar de a incentivar.
Conjeturo que a publicação a que me refiro, cujo conteúdo já havia sido divulgado em publicações anteriores, nomeadamente num relatório de 2021, não é alheia à publicação, em finais desse ano, do relatório da UNESCO intitulado “Reimaginar os nossos futuros juntos” (no qual a OCDE participou como membro do Conselho Consultivo, através do seu diretor da Diretoria de Educação e Habilidades).
Neste documento, defendendo-se a transformação da escola e a implementação do digital, vê-se mais cautela. António Nóvoa, presidente da Comissão de Pesquisa e Redação da Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação, reafirmou recentemente:
“é impressionante a fantasia futurista, como se o futuro da educação fosse feito por robots, inteligência artificial, pelas novas tecnologias, as plataformas, os gadgets mais extraordinários possíveis e que, na maior parte dos casos, diminuem a ideia de que o professor é um profissional” (in Jornal de Letras, 23 a 26 de julho de 2022).
Face às "evidências", figura que a OCDE tanto preza, podemos, então, voltar ao suporte de papel nas nossas escolas?
Parece que não.
Nas nossas escolas, o movimento para incluir a tecnologia está instalado e em franca expansão. O Plano de Ação para a Transição Digital, que prevê a substituição dos manuais em papel (para manuais digitais), envolverá, no próximo ano letivo, o triplo dos alunos do projeto-piloto constituído no ano que terminou.
No relatório final deste projeto de desmaterialização de manuais escolares e outros recursos educativos, publicado em dezembro de 2021, pelo mencionado Ministério, em articulação com a Universidade Católica, sublinha-se a necessidade de desenvolver no aluno “competências do século XXI”: “adaptar-se e progredir num mundo em rápida evolução” (p.12). Considera-se que as tecnologias potenciarão a sua ação ao longo do processo de aprendizagem, para que esta seja "significativa" (p.16)
Relembra-se que a Comissão Europeia “definiu a educação e a formação em tecnologias digitais como uma das prioridades para a próxima década, intenção que se concretizou no Digital Education Action Plan 2021-2027. Resetting education and training for the digital age” (p.12).
Assim se justifica “investir em recursos e ferramentas digitais mais interessantes e exigentes do ponto de vista cognitivo, envolvendo os alunos de forma ativa no processamento de informação e na criação de conhecimento” (p.17).
Abrevio os comentários que poderia fazer a estas passagens no seguinte reparo (e antecipo o tom irónico): ao que parece, os alunos que estudam em suporte de papel, não aprendem a pensar, limitando-se a repetir mensagens que nada lhes dizem, no quadro de um “modelo tradicional de ensino assente na transmissão e reprodução de conhecimento” (p.16). Faz-se crer, então, que as ferramentas digitais usadas no estudo são mais exigentes do ponto de vista cognitivo...
É nesta "dualidade discursiva" que se confunde a opinião e se vai fazendo passar a mensagem da imprescindibilidade do digital na escola (ou noutros ambientes que se considerem educativos). Isto, apesar, repito, de termos em mãos conclusões que apontaram para a sua irrelevância no estudo e, mesmo, para os seus malefícios, sobretudo para os alunos de meios económicos mais desfavorecidos.
Em suma, entre discursos de organismos supranacionais que ora pendem para a validação de ferramentas assentes no digital, ora pedem cautela no seu uso, e decisões da Tutela que denotam a mesma oscilação, tendendo, no entanto, a seguir um determinado sentido, temos como educadores de fazer valer a perspicácia (como modo de identificar propósitos que se ocultam), a reflexão (informada em conhecimento fiável) e o bom senso (organizado a partir do fim que nos deve guiar: a educação).
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REFERÊNCIAS:
REFERÊNCIAS:
- Berkovich, I., & Benoliel, P. (2020) The educational aims of the OECD in its TALIS insight and lesson reports: Exploring societal orientations. Critical Studies in Education, 61(2), 166-179. 10.1080/17508487.2017.1370428
- Ikeda, M. & G. Rech/ OCDE (2022). Does the digital world open up an increasing divide in access to print books? PISA in Focus, n.º 118. Paris: OECD Publishing. https://doi.org/10.1787/54f9d8f7-en.
- Martens, K. & Jakob, A. (2010). Introduction: The OECD as an Actor in International Politics. In Martens K. & Jakob, A. (eds.). Mechanisms of OECD Governance - International Incentives for National Policy Making?, pp.1-25. Oxford: Oxford University. - Robertson, S. (2012). Placing teachers in global governance agendas. Comparative Education Review, 56(4), 584–607.
- Viennet, R. & Pont, B. / OCDE (2017). Education policy implementation: A literature review and proposed framework. OECD Education Working Papers, n.º 162, Paris, OECD Publishing.
6 comentários:
“… as reformas educativas contemporâneas, de pendor ideológico neoliberal e de convergência com as políticas educativas da OCDE, tendem a responder a problemas, que não especialmente os educativos, associados sobretudo à sustentabilidade económica dos Estados, e ao controlo social. (…) Vários autores sustentam que se recorre, politicamente, à estratégia de redução dos gastos públicos com a Educação, pela descredibilização da escola pública e da competência dos professores, conservando, assim, apoios à manutenção do poder, face aos fracos resultados escolares obtidos sob políticas de indeferimento de recursos, dificultando ou impossibilitando a solução dos vários problemas educativos e sociais acrescidos à Escola”
Hélia Velez Grilo (2019)
O digital mais deslumbrante para as crianças e os jovens é sobretudo a imagem, seja ela estática ou dinâmica.
Já o antigo rifão diz que uma imagem vale mais do que mil palavras, mas não diz, porque não é verdade, que as imagens substituem completamente as palavras ditas ou escritas em livros, por exemplo.
Todos os artefactos digitais que se usam atualmente em contextos de sala de aula, de rua, de praia, ou de campo, foram construídos e funcionam com base nos princípios matemáticos e nas leis da física, em sentido lato. Que mais não fosse, bastariam as razões de enquadramento histórico do desenvolvimento científico, alavancado pela difusão dos livros impressos em papel, ao longo dos últimos séculos, para que disciplinas como português, matemática, física, química, história, geografia, biologia, inglês, francês, filosofia, estivessem de pedra e cal nos programas oficiais do ministério e não escondidas e desfiguradas como “aprendizagens essenciais” , essa fraude na educação com que se proíbe aos professores o ensino, digital ou analógico.
O ministério da educação de João Costa quer queimar, em sentido figurado, ou eliminar, em sentido real, o suporte de papel, enquanto instrumento de ensino das nossas escolas, por motivos meramente economicistas, mandando às malvas os aspetos psicológicos e pedagógicos positivos da leitura e aprendizagem em livros de papel.
Caro Rui Ferreira, agradeço-lhe a referência. Desconhecia o livro de que tirou a citação pois nos últimos anos só esporadicamente tenho leccionado avaliação de modo que não tenho estado atenta ao que se publica. Fiquei surpreendida com o trecho que seleccionou por se desviar da narrativa (que se quer) instituída. O desvio, desde que devidamente fundamentado, como me parece ser o caso, é precioso pois mantém a discussão aberta num campo, como é a educação, em que ela não pode ser fechada. Cumprimentos, MHDamião
Caríssimo leitor Anónimo, sinto e partilho o seu desalento. A nossa riquíssima Língua substituída pelo 'digitês', simplório e extremamente redutor, que resultará num 'eduquês' ainda mais pernicioso. Acrescento, como referiu um funcionário da Google em entrevista ao NYtimes: a tecnologia é concebida para ser de fácil utilização; não há razão para expor crianças e jovens tão cedo a estas ferramentas em detrimento do desenvolvimento de outras aptidões que, noutro tempo, não se formarão com a mesma plenitude, como a linguagem, por exemplo. Cumprimentos, Cátia Delgado
Caro Leitor Anónimo, o argumento económico é invocado a par do argumento protecção do planeta para justificar a mudança do papel para o digital na escola. Nem um nem outro me convencem, ainda que não tenha "evidências" para me justificar. Fica muito caro aos Estados a compra e manutenção de equipamento digital e às famílias os manuais digitais continuarão a custar caro; o lixo informático é tão ou mais danoso, em termos ambientais e humanos, do que o uso do papel. É evidente que os manuais escolares que temos (ou tínhamos) não são (eram), por diversas razões, aceitáveis: o tipo e quantidade de papel, o tempo de vida que se lhes destina (destinava), dada a mudança frequente e o pouco aproveitamento de uns alunos para outros, etc. Porém, nesta questão como noutras não se pode deitar a criança fora com a água do banho, teria sido preciso uma regulação do Estado... que este nunca teve coragem de fazer junto das editoras. Cumprimentos, MHDamião
Bem haja, Cátia!
Se, nos próximos tempos, nada for feito, as escolas EB 1,2,3 + JI + S de Portugal sucumbirão por completo às investidas da OCDE, e seus lacaios, e serão como terra queimada onde a esperança de contribuir para a construção de um mundo melhor acabará por morrer. Os jogos de sombras, feitos com base em citações deturpadas de autores estrangeiros - com que os "especialistas" da educação, incluindo os da educação "especial", procuram esconder o objetivo de destruir a escola pública, enquanto lugar de encontro, de pensamento, de ensino e de aprendizagem -, impossibilitam o debate franco e alargado a outros atores do processo educativo. Por exemplo, se houvesse discussão aberta sobre os caminhos da educação em Portugal, muitos professores poderiam vir a convencer os especialistas das aprendizagens essenciais, por domínios, subdomínios e rubricas, que a disposição das cadeiras em U, em contexto de sala de aula, ou a melhoria das aprendizagens catalisada pela filosofia ubuntu, mais uma vez em contexto de sala de aula, são metodologias de ensino muito modernas e na moda, mas que não podem ter caráter de aplicação obrigatória para cada um dos professores que, no exercício das suas funções, goza de autonomia pedagógica, de acordo com a lei em vigor.
Cumprimentos.
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