segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O ABISMO VERTIGINOSO DE ROVELLI


Minha recensão no ultimo JL:
 

 O italiano Carlo Rovelli é não apenas professor de Física na Universidade de Aix-Marseille, em Marselha, que desenvolveu a teoria quântica dos laços, que junta a teoria da gravitação de Einstein com a teoria quântica, mas também, desaparecido que está Stephen Hawking, um dos físicos mais mediáticos do globo. A sua obra Sete Breves Lições de Física, saída no original italiano em 2014, foi um grande sucesso internacional, ao vender mais de um milhão de exemplares em dezenas de línguas. Em português saiu na Objectiva em 2015, tendo sido também um best-seller. Depois deste livro, surgiram, em português, outras quatro obras de Rovelli: A Ordem do Tempo (Objectiva, 2018); A Realidade Não É O Que Parece (Contraponto, 2019); Anaximandro de Mileto (Edições 70, 2020); e E se o Tempo Não Existisse? (Edições 70, 2022). Acaba de sair em português um novo livro de Rovelli, portanto o sexto, intitulado O Abismo Vertiginoso e subintitulado Um Mergulho nas Ideias da Física Quântica, que trata da origem, significado e implicações da mecânica quântica. 

 O Abismo Vertiginoso é a tradução, num trabalho competente de Silvana Cobucci, de Helgoland (Allen Lane, 2021). Helgoland é o nome de um arquipélago de ilhas alemãs no mar do Norte. Apesar do seu reduzido tamanho, essas ilhas estão ligadas à ciência e à arte. Foi aí que o físico alemão Werner Heisenberg, num lampejo genial, criou, em 1925, a teoria quântica moderna, quando se estava a curar de uma arreliadora febre dos fenos. Foi também aí que o poeta alemão August Heinrich Hoffmann escreveu, em 1841, a Deutschlandlied, que, com música de Joseph Haydn, é o hino nacional alemão. Foi a Helgoland, que significa «terra sagrada», que Johann Wolfgang von Goethe chamou «um lugar que exemplifica o infinito fascínio da Natureza». 

Rovelli começa o seu novo livro precisamente com a história da descoberta da teoria quântica, pelo jovem Heisenberg (tinha então 23 anos). A sua formulação, conhecida por «mecânica de matrizes» por usar matrizes ou tabelas de números, descreve bem as propriedades do átomo de hidrogénio, avançando para além das conclusões do dinamarquês Niels Bohr em 1913. Uma formulação rival, a «mecânica ondulatória», do austríaco Erwin Schrödinger, foi um pouco posterior à de Heisenberg. As duas são equivalentes: embora as filosofias subjacentes fossem diferentes, davam os mesmos resultados. Ficou famosa na história da ciência a epifania vivida por Heisenberg, que Roveli transcreve porque não pode ser melhor dito o que o descobridor descreveu na primeira pessoa: «Sentia-me muito abalado. Tinha a sensação de que, através da superfície dos fenómenos, estava a olhar para um interior de estranha beleza; sentia-me aturdido só de pensar que agora tinha de investigar essa nova riqueza de estrutura matemática que a natureza tão generosamente dispunha diante de mim.» Roveli diz que essas palavras (mormente «interior de estranha beleza») «nos arrepiam». Heisenberg abriu-nos, de facto, um abismo vertiginoso. A teoria quântica, parafraseando Pessoa, «de início estranha-se e depois entranha-se». É estranha simplesmente porque a Natureza é estranha: ela é como é e não como nós gostaríamos que fosse. Schrödinger tentou atacar a sua própria teoria ao inventar o gato com o seu nome, que está meio vivo meio morto (Roveli, condoído do animal, coloca-o antes acordado ou a dormir). Sobre as probabilidades quânticas, Einstein disse que «Deus não joga aos dados» (ao que Bohr ripostou que não cabia a Einstein dizer a Deus o que Ele devia fazer). Mais perto da atualidade, o físico Richard Feynman disse: «Creio que posso dizer seguramente que ninguém entende a mecânica quântica.» 

O autor dá-nos conta da sua tentativa de compreender a mecânica quântica, num discurso bastante inteligível. Fala da sobreposição de estados (gato ao mesmo tempo vivo e morto, num estado zombie), do problema da medição (a interferência do observador sobre a coisa observada) e do emaranhamento ou entrelaçamento (a bizarra ligação entre duas partículas que estiveram em contacto). Elabora sobre as implicações filosóficas da teoria quântica: existirá, na escala microscópica, uma realidade objectiva, independente de nós? Existe determinismo ou estamos limitados a fazer previsões probabilísticas? Estarão as partículas do mundo interligados de uma forma holística? É por causa dessas implicações que grupos hippies e New Age ficaram tão fascinados pela teoria quântica (Rovelli conta que já teve farta cabeleira atada por uma fita, mas nunca foi dado a misticismos). Há várias interpretações da teoria quântica, mas a preferida do autor é a «mecânica quântica relacional», que enfatiza as relações entre os objectos do mundo e entre estes e o observador. Ele sumaria a sua interpretação dizendo que: 1) se não houver relações não há propriedades; 2) as propriedades são apenas relativas. E pergunta: «É possível que algo seja real em relação a si e não seja real em relação a mim?» Responde que sim. 

 No Cap. V, Roveli faz uma incursão histórico-filosófico-politica. Conta a polémica entre os russos Vladimir Lenine e Aleksandre Bogdanov, o primeiro materialista e o segundo empirio-criticista (para Lenine e seus apaniguados, o idealismo era uma espécie de insulto, nalguns casos mesmo uma sentença de morte). Roveli está claramente do lado de Bogdanov, a quem agradece no fim. A propósito, ele discorre sobre literatura, lembrando o livro do escritor austríaco Robert Musil O Homem Sem Qualidades, que começa com uma notável descrição do tempo meteorológico, por um lado em linguagem cientifica e por outro m linguagem quotidiana. Rovelli também envereda por temas espirituais ao referir a obra de Nagarjuna, um pensador indiano do século II. No final, trata o famoso problema corpo-mente, enfatizando que a Natureza já o resolveu, apenas faltando que nós compreendamos o modo como a Natureza o fez. 

O Abismo Podigioso, que em parte foi escrito em Lisboa (onde o físico tem uma casa), termina assim: «A interconexão das coisas, o facto de se reflectirem umas nas outras, tem o brilho de uma luz clara que a frieza da mecânica setecentista não conseguiu capturar. Mesmo que nos deixe estarrecidos. Mesmo que nos deixe uma sensação profunda de mistério.»

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