Ao contrário do que a investigação científica (digna de crédito) tem apurado (ver, por exemplo, aqui) e do que agora a OCDE vem (surpreendentemente) reconhecer (ver, por exemplo, aqui), nem o nosso Ministério da Educação nem "grupos editoriais" têm mostrado sinais de vacilação: no trabalho escolar, de ensinar e de aprender, o suporte digital deve substituir o suporte de papel.
Para convencer, estes últimos recorrem ao marketing. E, de modo particular, a uma das estratégias que, em tempos de pós-verdade, mais convence: o "testemunho". Quem sabe, quem pode dizer, é quem está na situação, no terreno. Se quem vive o que efectivamente acontece diz que é assim, é assim com toda a certeza. Para quê pensar com base em conhecimento objectivo, nunca definitivo, se temos a garantia dessa estratégia subjectiva, sempre infalível?
Tratando-se de empresas, compreende-se que assim seja: recorrem às estratégias de marketing que mais vantagem lhes trazem. Já não se compreende que as políticas educativas sigam o mesmo caminho, mas isso é outra conversa... Neste texto pretendo, tão-somente, reproduzir um dos "testemunhos" a que me refir, o de modo que o leitor possa pensar melhor sobre o assunto (aqui). Repare como se recorre aos grandes chavões da dita "educação do século XXI". Omito identidades que de nada interessam.
Aluna. Chamo-me… tenho 13 anos, não… tenho 14 anos, sou de… da escola de…Mãe: Eu sou… sou a mãe de…Pai: Sou, pai da…Aluna: E tenho uma cadela que se chama… Gosto de sair com os amigos, também gosto de jogar, mexer nas redes sociais. Eu utilizo a Escola Virtual desde o 5.º ano. Também utilizamos a Escola Virtual nas aulas.Mãe: Eu escolhi comprar a Escola Virtual para a… primeiro porque achei, à partida, que seria uma ferramenta muito útil para o estudo dela.Pai: É uma tranquilidade. Estuda sozinha, não precisa de grandes apoios para conseguir bons resultados na escola.Aluna: Quando estou a utilizar, tenho a noção de como estou preparada e acho que isso é muito útil. Eu faço os testes temáticos depois vê-se o resultado.Mãe: Ao ouvir os vídeos e fazer os exercícios, dá-lhe confiança para quando vai para os testes sentir-se mais preparada.Aluna: Depois vamos vendo os resultados e, se forem bons, começamos a ficar mais confiantes.Pai: Aliás, ela própria, quando às vezes me levanta uma dúvida sou eu que lhe digo: Já foste à Escola Virtual?Mãe: Só não tem boas notas quem não quiser.Aluna: É tudo muito mais simples e divertido de aprender. Sim recomendo a Escola Virtual.Mãe: Recomendo a Escola VirtualPai: Recomendo plenamente.
Claro que não podia faltar o apelo à emoção.
Garanta o melhor ano lectivo para o seu filho com o serviço educativo mais completo do país.
E à cooperação entre a empresa, a família e a aluna. O professor é excluído.
Aprendemos juntos.
E também aos "cenários da escolaridade do futuro", sobretudo ao quarto.
Aprendemos em qualquer momento.
Aprendemos em qualquer lugar:Aprendemos a olhar para o futuro.
Que confirma, nesses cenários, a exclusão do professor.
Esta retórica já entrou nos nossos esquemas mentais. E funciona! Se não funcionasse as empresas não a usavam, como é bom de ver!
3 comentários:
Chamou-me a atenção a conclusão "exclusão do professor", que exprime de modo lapidar
e premonitório de grandes barbaridades, que até há uns meses consideraríamos inconcebíveis, quais sejam as invasões demolidoras e cruéis, num provocante desafio e desprezo, senão ódio, a todos os valores. Não é que a exclusão do professor seja o problema, ou um problema em si mesmo, mas é um sintoma da gravidade dos tempos que vivemos (nem sequer estou a considerar se são mais ou menos graves do que outras épocas). Nunca se havia falado tanto e tão a propósito, como nos últimos anos, de inclusão, de combate à exclusão, e isso, para quem tiver a noção do que significa, é da máxima importância, na perspectiva da justiça social e da paz e da construção de uma sociedade solidária, com o sentido da dignidade humana, da igualdade e da liberdade. Quando muitos de nós já tinham embarcado nesse discurso que, de tão evidente, ninguém rejeitaria, surgem, de todos os quadrantes, manifestações agressivas de que isso da inclusão é um problema para toda a gente, tanto para os ditos excluídos, que não querem ser incluídos sem mais nem menos, como para os includentes, que se sentem excluídos, e isso é sentido com amargura com uma espécie de incompreensão e de ingratidão. A inclusão e a exclusão devem ser vistas como faces da mesma moeda?
As mudanças na educação, nomeadamente nas escolas secundárias e primárias, e nos jardins de infância, que têm vindo a ocorrer com uma velocidade vertiginosa nas últimas quatro décadas, foram sujeitas, neste derradeiro quinquénio, a uma aceleração brutal.Tudo começou, pouco depois do 25 de Abril de 1974, quando simbolicamente se derrubou, do alto do pedestal socioprofissional em que se encontrava, a figura doutoral do professor do liceu, através da sua equiparação a educador de infância. Depois, foi o desfiar de ladainhas, carregadas de hipocrisia, pela intenção da reposição do prestígio social dos professores, como "A Paixão da Educação", de António Guterres, ou "É Bom Para Eles!", de Maria de Lurdes Rodrigues, para chegarmos a 2022, com organismos oficiais a promoverem a aplicação da filosofia ubuntu, nos processos de ensino/ aprendizagem, como a melhor estratégia para a "melhoria e recuperação das aprendizagens essenciais". Ora, é "uma evidência" que a formação retrógrada dos professores com mais de 25 anos de idade não lhes permite uma "apropriação fácil" das rubricas e domínios abarcados pelos novos métodos de ensino. Numa fase intermédia, antes da exclusão definitiva, os professores e os educadores de infância deverão ser progressivamente substituídos por mentores, ou "coachers", com formação em filosofia ubuntu, e, por fim, a educação escolar será completamente transferida para empresas, alunos e famílias.
Mal dos que estamos a passar pela absurdidade desta fase intermédia!
Prezados Leitores
A tese de que o professor pode (e deve) ser afastado dos alunos, com evidentes benefícios para estes últimos, é recorrente desde finais do século XIX/início do século XX. Um dos argumentos, que se vê apoiado em investigação produzida sobretudo nos anos sessenta, é que o professor veicula as opções curriculares do poderosos, menosprezando manifestações populares. Isto tem uma ampla discussão, mais complexa do que o "sim" ou o "não. Não vou entrar nela aqui. Só queria dizer que o que temos hoje de novo é a defesa/tentativa de substituição do professor por outros "agentes" que nada têm de educativo. Falo, como um dos leitores, de "mentores", "tutores", "coaches", etc. E, sim, da atribuição/transferência da educação escolar para entidades não escolares como empresas, fundações, famílias, autarquias, etc. Subscrevo que tudo isto toca o absurdo.
Cumprimentos, MHDamião
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