quarta-feira, 24 de agosto de 2022

EVITAR EDUCAR PARA NÃO DOUTRINAR?

Ao artigo de António Barreto, saído no Público de dia 13 com o título “Escola, cidadania e democracia”, respondeu, no dia 18, no mesmo jornal, Francisco Teixeira, professor do ensino secundário, doutorado em Filosofia (cf. página 7 na edição em papel ou aqui).

Antes de lhe "passar a palavra", devo dizer que compreendendo, de alguma forma, a tese que me parece ser a que António Barreto defende, tenho dificuldade em identificar as premissas que invoca para a sustentar. Elas não são claramente expressas nem explicadas.

A tese será a seguinte: "educar" é uma coisa, "doutrinar" é outra. Daqui resulta que a escola pública deve "educar", não pode "doutrinar".
[Esclareço sou a "a favor" de se educar para a cidadania na escola. Melhor, não poderia deixar de o ser, dado que toda a escola, desde a Antiguidade até ao presente, que assuma a sua vocação educativa, preocupa-se em educar para a cidadania. Essa escola, reconhece não ser possível educar à margem de valores éticos, universais. Educar para a cidadania é, pois, em rigor, educar eticamente].
Contudo, António Barreto perde-se nessa (que será a sua) tese. Defende uma escola "livre" de valores (éticos), recusando-lhe, por inerência, a função educativa. E, assim, dá terreno a ganhar ao "doutrinamento" (ou seja, à manipulação do outro, em função da ideologia que interessa a determinados grupos) mas também ao "alheamento" (ou seja, a desresponsabilização pela formação do "bom carácter" e, em última instância, pela pessoa e pelo mundo).

Deixando de lado as contradições patentes no texto do sociólogo e identificadas por Francisco Teixeira, sublinho - agora sim - o que, das palavras deste último, se me afigurou deveras importante para se pensar a educação para a cidadania em contexto escolar.

1. A impossibilidade de educar (para a cidadania) num cenário de neutralidade axiológica, pois educar implica sempre escolhas, ainda que estas possam ser mais ou menos conscientes. Convém que sejam conscientemente orientadas, como disse acima, por valores éticos:
"... escreve que «a escola não deve (…) condenar ideias», no que diz respeito a sistemas, natureza dos regimes políticos ou à história da liberdade e da tirania. Primeiro (...) se eu considero a história da liberdade e da tirania estou, naturalmente, a (...) “condenar” umas ideias e não outras, incluindo quando estou a favor da tirania e contra a liberdade.  
(...) ensinar o que foi o Gulag ou a Shoah sem os valorar, e antes, quiçá, justificando-os em lógicas milenaristas e escatológicas emancipatórias, como há quem o faça! (...) explicar o fascismo português sem o valorar, sob perigo, imagine-se, de doutrinação democrática." 

2. Educar para a cidadania, no caso, para um valor ético que a integra, a democracia, implica um trabalho pedagógico-didáctico específico:

"Como com muitas outras coisas, também na democracia o exemplo e a prática são decisivos na aprendizagem (...) É que se a escola for democrática estará a ensinar a democracia e a formar consciências.  
Mas o exemplo não chega como instrumento de aprendizagem democrática profunda. Como com muitos outros saberes, as aprendizagens práticas e implícitas devem ser acompanhadas de aprendizagens explícitas, teóricas e reflexivas, suscetíveis de compreensões mais profundas, mais complexas e de maior alcance cognitivo." 

3. Nesse trabalho, são de especial importância as “artes e as letras”, as quais António Barreto mistura com «jogos» e considera poderem ser relegadas para «fora das horas de aulas». Ora, as disciplinas associadas às artes e letras, se devidamente reconhecidas e programadas, encerram um enorme potencial em termos de educação axiológica. A sua secundarização, que, está, de facto, a acontecer é uma tragédia também a este nível:

(...) o que eliminaria do currículo disciplinar as disciplinas de Português, Filosofia, História, Desenho, etc. (...) fazendo recuar a humanidade para as suas cavernas mais recônditas. 

António Barreto é uma voz conhecida e prestigiada na sociedade portuguesa, pelo que, se me permite, deixo-lhe a sugestão de voltar à sua tese e aos argumentos que avançou. Em última instância, eles podem fazer concluir que, para não doutrinar, há que evitar educar. Voltar a pensar pode trazer uma nova luz, no caso, mais consentânea com os desígnios da escola pública.

9 comentários:

CCF disse...

Helena, de acordo consigo...e é preciso responder, fazer ouvir outras vozes...pois a dele tem ainda muito peso.

Helena Damião disse...

O seu comentário, leva-me a acrescentar o seguinte: O artigo de António Barreto teve o mérito de evidenciar algumas, das inúmeras, ideias confusas e, até, erradas que gravitam à volta da dita educação para a cidadania. Foi motivo para pensarmos no assunto. E bem precisamos de fazer isso pois os documentos curriculares que dizem respeito a esta área a isso obrigam. Cumprimentos, MHDamião

Ildefonso Dias disse...

Quando a vaidade de um indivíduo supera o seu talento o povo torna-se a sua vítima.

Helena Damião disse...

Prezado Leitor não gostaria de entrar pelo argumentum ad hominem (argumento contra a pessoa, contra características que se podem atribuir à pessoa). Todos podemos, como pessoas, ser vaidosos (não me vou pronunciar se é o caso ou não), isso de nada interessa na discussão, na crítica elaborada. O que interessa são os argumentos substantivos usados. Precisamos de nos distanciar das especificidades das pessoas para percebermos melhor se o seu pensar é alinhado (ou não) pelas regras da racionalidade e... da razoabilidade! Cumprimentos, MHDamião

Rui Ferreira disse...

Hoje no Público, nas Cartas ao Director, Luís Torgal assina um artigo intitulado “O debate no Público em torno da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento”, no qual me revejo na sua totalidade. Destaco o seguinte: “A disciplina de CD é redundante, artificial e dispensável. Os seus conteúdos são demasiado prolixos e sérios para serem tratados à vol d’oiseau, em tempos lectivos exíguos e dispersos (…) por professores que não estão cientificamente habilitados para abordar, com o esclarecimento e rigor adequados, todos os temas abrangidos pelo seu programa (…)”.

Helena Damião disse...

Caro Rui Ferreira, concordo com o texto de Luís Torgal. Temo, contudo, que o debate a que é necessário submeter a "Cidadania e Desenvolvimento" ponha em causa o educar para a cidadania. É preciso distinguir com clareza as duas coisas. Cumprimentos, MHDamião

Anónimo disse...

Sra. Dra. Maria Helena Damião;

Porque é que o senhor António Barreto escreve no Público, vai às TV's e o Manel, o João, a Maria e todos os outros anónimos igualmente inteligentes, que estudam e tambem têm idéias próprias não vão?

As idéias dessas pessoas anónimas valem menos que as do previligiado senhor António Barreto e, por isso, não lhes é dada a mesma oportunidade de as apresentar?

Certamente que Não, essa ideias Não valem menos Sra. Dra. Helena Damião.

E é precisamente por valerem o mesmissimo, e não serem igualmente consideradas, que a Sra Dra. MHD não têm razão no comentário que faz (especificidades das pessoas que a Sra. Dra. MHD diz que não importam).

Sra. Dra. MHD, se a oportunidade das pessoas em fazer valer as suas idéias fosse igualitária, que não é, nem mesmo aí, a Sra Dra. MHD teria razão no seu comentário, precisamente, porque o problema só existe, pelos previlegios que têm certos individuos em apresentar as suas idéias e opiniões.

Sra. Dra. MHD, o direito à igualdade, de pavonear as idéias já é doutrina. E, para ser ensinada na Escola.

Esse pavonear de idéias é uma vaidade que os Antónios Barretos deste país não estão interessados em abdicar? Esse é o problema Sra. Dra. MHD.

Anónimo disse...

No comentário anterior, e no último parágrafo deve ser:

Esse pavonear de idéias é uma vaidade que os Antónios Barretos deste país estão interessados em abdicar? Não estão, e esse é um problema Sra. Dra. MHD.

Rui Ferreira disse...

Completamente de acordo Cara Helena Damião. A aquisição de conhecimento escolar (científico) tem como meta, exatamente, tornar o ser humano melhor cidadão. A leitura e interpretação de textos clássicos em Português é de uma beleza gigante (gosto particularmente do Sermão de Santo António aos Peixes do Padre António Vieira). A lecionação da História é fabulosa neste campo. A potencialidade pedagógica que é conferida à prática das atividades físicas e desportivas (esforço, resiliência, respeito, disciplina) é outro exemplo. Se juntarmos ao contributo das diferentes disciplinas do currículo a orientação dos alunos nas diferentes funções que exercem na escola, entendo estarem reunidas as condições para uma aquisição efetiva e duradoura da cidadania (membros da Assembleia de Turma, Delegado e Subdelegado de Turma, Associação de Estudantes, representantes no Conselho Geral). A aplicação rigorosa dos direitos e deveres dos alunos consagrados no EAEE não pode deixar de ser vista, também, como uma forma de desenvolver a cidadania.

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