domingo, 28 de agosto de 2022

O ESTRANHAMENTO COMO CONDIÇÃO DE APRENDIZAGEM ESCOLAR

Recentemente, alguém, que se identifica como estudante universitária do Mestrado em Ensino de Português e também como militante do Bloco de Esquerda, escreveu um texto para Público com o título: E se fizéssemos uma revisão ao programa de Português?

Como futura professora e muito segura nas críticas que faz ao ensino da disciplina, ignora o facto de já não existirem "Programas"; o que existem são "Aprendizagens essenciais" como documentos estruturantes das disciplina. Nessa medida o "programa actual" de Português não pode ser "defendido com unhas e dentes por muitos, por outros e outras é visto como antiquado", na medida em que foi revogado.

Referindo-se no ensino secundário, considera que a falta de "gosto" que (supostamente) os alunos denotam pela disciplina decorre (exclusivamente?) da dificuldade de se identificarem com a linguagem das obras que são de leitura obrigatória. Os seus autores, todos eles homens, terão mérito, mas o que está em causa é a relevâncias das obras "para a actualidade". Assim sendo, as obras a seleccionar devem traduzir os valores da nossa sociedade.

Socorrendo-se de uma investigação em curso nos EUA sobre uma dessas obra (e já objecto de várias notícias), detém-se no racismo. Do que li, interpreto o seguinte: qualquer conteúdo que sugira uma atitude racista deve ser, se não retirado do horizonte dos alunos, pelo menos acompanhado de um aviso inequívoco (a famosa "nota pedagógica") de que aquilo que estão a ler traduz tal atitude. O mesmo para conteúdos que sugiram atitudes nacionalistas, colonialistas, machistas, xenófobas e homofóbicas, apanágio, diz, do Estado Novo. 

Daqui decorre o apelo a que os professores tomem uma "posição mais activa" quando abordarem as obras em causa. Isto em prol, evidentemente, do espírito crítico dos alunos. Termina com a pergunta: "a disciplina de Português serve para quê? Para homenagear autores ou para transmitir a paixão pela leitura às próximas gerações?" 

Passados poucos dias, respondeu, no mesmo jornal, à futura professora, um professor de Português e Latim e eleitor do mesmo partido político. E se não mexêssemos nos programas de Português?

Nota a expressão ‘identificar-se’, dizendo que está "muito na moda no que se refere a uma determinada visão da Educação" e explica o problema que se lhe cola.
É sinal de um pensamento que encara o currículo escolar como um conjunto de conteúdos que não causem nenhum estranhamento ao aluno, como se o estranhamento não fosse, entre outras virtualidades, um caminho para o conhecimento, com tudo o que esta palavra deve implicar, incluindo o exercício do espírito crítico (em tempos de proscrição de palavras e conceitos, é estranhamente fundamental reafirmar o óbvio).

Evitando-se este estranhamento e apostando-se na identificação...

... o aluno só deveria encontrar a sua própria identidade, como se a Escola fosse um simples espelho e não um território onde deverá encontrar desafios minimamente controlados. Ainda por cima, esta ideia de uma identificação é redutora sob variadíssimos pontos de vista, desde logo porque parte do princípio de que os alunos são um todo uniforme por pertencerem a uma mesma geração.

As implicações na "questão dos valores" não são despiciendas, pois...

... atribui[em-se] defeitos a obras de outras épocas com base num sistema de valores que não lhes era subjacente. Estamos diante de um duplo erro: reduz um texto literário aos valores (explícitos ou implícitos) e suprime o contexto em que o mesmo texto literário é produzido (um a-historicismo que impede, ainda, a identificação de valores de outras épocas, sabendo-se que muitos desses valores, à luz da actualidade, podem até causar repulsa, o que é utilíssimo do ponto de vista pedagógico).

Em sequência nota, e bem, que a futura professora...

... consegue escrever sobre textos literários sem recorrer a contributos dos estudos literários e da história literária (...). Permitir o contacto dos jovens com o património literário do país é uma obrigação da Escola. As razões para que isso aconteça são variadíssimas. 
Em primeiro lugar, permite saber que houve milhares de escritores, o que, parecendo que não, é importante, quanto mais não seja por uma questão de simples humildade: nem todos esses escritores eram gigantes, mas estamos em cima dos ombros de muita gente que, antes de nós, escreveu de tantas maneiras (...) e sobre tantos assuntos actuais ou ultrapassados. 
Depois, temos a importância da alteridade, da não-identificação, que é um desafio fundamental na formação de qualquer pessoa: no que se refere à literatura, o percurso cronológico permite perceber as mudanças linguísticas, notar as sucessivas alterações de valores, saborear expressões tão diferentes das nossas e, no entanto, nossas. 
Finalmente (...) é a partir de textos que nos desafiam que podemos ajudar os alunos a construir (...) valores, o que se deve fazer em confronto e não como bons selvagens a quem escondessem os negros males de tanta literatura perfidamente do seu tempo – e é claro que não é possível estudar literatura sem fazer constantes ligações à sexualidade, à religião, ao poder, ao colonialismo, enfim, à violência inerente à História Humana.

Este professor termina o texto com um esclarecimento crucial, que urge ser reiterado no espaço público, dada a lamentável tendência de alguns representantes das várias esquerdas europeias, que se querem afirmar como progressistas, para negarem o conhecimento escolar. 

Conhecimento que tem de ser o mais erudito que o ser humano (não importa quem) conseguiu construir, que tem poder para transformar o sujeito e o mundo. A esquerda deveria acarinhá-lo com especial cuidado e a bater-se para que permaneça na Escola ao acesso de todos, pois é ele que conduz à igualdade, à liberdade, que faculta a fraternidade (esse valor da modernidade tão esquecido) e, em última instância, sustenta a democracia.

Para mim, ser de esquerda implica uma sociedade em que todos tenham acesso a bens culturais que estiveram reservados, durante séculos, a alguns privilegiados e esse acesso faz-se também através da Escola Democrática e ser de esquerda nunca poderá implicar a ideia de que devemos proteger os jovens do passado, escondendo-o por ser feio – em vez disso, devem conhecê-lo e a discuti-lo de modo crítico e informado. Ser de esquerda não me impede de ficar maravilhado com uma catedral, mesmo sabendo que muitos se sacrificaram ou foram sacrificados para que ela exista.

Teve o primeiro texto o mérito de desencadear o segundo. E, se o autor deste me permite, a minha sugestão é que continue a escrever o mesmo até que seja compreendido.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não adianta andarmos com muitos subterfúgios: os grandes valores do Estado Novo eram os valores cristãos do catolicismo da época.
A Verdade Revolucionária da estudante universitária, militantes do Bloco de Esquerda, partido apoiado por 4,4 % dos eleitores portugueses, não passa, pelo menos no campo da educação, de um embuste.
A Literatura, seja burguesa ou proletária, é uma Arte, que se deve continuar a estudar nas escolas. Não é para ser escondida ou mutilada.
Fazer explodir, à bomba, os Budas do Afeganistão, como aconteceu realmente, ou, projetar, eventualmente, o arrasamento das pirâmides do Egito e das catedrais góticas europeias, ou o Mosteiro da Batalha, em Portugal, só porque foram mandados construir por homens que tinham alguns valores diferentes dos atuais valores revolucionários, são vandalismos da mesma ordem que é a censura, com introdução de correções politicamente corretas, de esquerda ou de direita, em passagens das obras de Eça de Queirós, ou de Fernando Pessoa.

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