Por Cátia Delgado
Em alguns momentos, o professor foi um mestre.
Mas passou a tirano, a opressor.
Diz-se que o conhecimento que transmite formata as crianças e os jovens, pois a instrução é fastidiosa, corta-lhes as asas da criatividade.
Organizações cheias de boa-vontade vêm defendê-los, limitados e sobrecarregados que estão pelo sistema. Quem diz sistema, diz professor, tão vincadamente tradicional que se tornou retrógrado.
E, contudo, as crianças e os jovens querem aprender.
Mas não assim, não da forma como o professor ensina!
Querem uma educação ativa, moderna, mas o professor não lhes serve.
Então, buscam-se soluções para esta tão grande divergência.
A OCDE antecipa que a educação pode fazer-se sem professores [1].
Mas a sua visão é considerada um exagero, um quase devaneio futurista.
Isto declara a UNESCO, que quer transformar os professores: devem ser mentores, organizadores de encontros pedagógicos partilhados (antigas “aulas”), mediadores de diálogo [2].
Ambas dizem não haver motivo para preocupações porque o papel do professor está salvaguardado.
Outras entidades entram em cena. A exemplo, a Teacher Task Force, sob a alçada da mesma UNESCO, com a colaboração da OCDE, afirma ser preciso proteger os professores e, para tal, pede auxílio, sob a forma de investimento, a fundações e empresas com interesses nos vários impérios mercantis, sobretudo no digital [3].
Ações concertadas são mais benéficas, nunca perniciosas e... “acredita-se” que o professor continuará a merecer o seu lugar.
Multiplicam-se as plataformas de formação de professores, que prometem certificação para a docência em tempo recorde e com pouco esforço [4].
Não, assegura-se, elas não retirarão protagonismo às instituições de ensino superior "credíveis", que terão o seu valor preservado e o seu lugar garantido.
Proliferam, também, as plataformas e academias de aprendizagem que, redondamente, propagandeiam: sem professores é que é!
Sem eles, a aprendizagem é mais democrática, mais equitativa, chega a ser mais inclusiva.
Neste "não-lugar", dizem, cada um aprende à sua maneira, consoante os seus gostos, interesses e preferências. E muito mais individualmente, comodamente, colaborativamente...
E proficuamente: chega-se a todos, respeitando as peculiaridades de cada um, pois a cada um cabe definir o seu próprio trajeto [5].
Esta é uma realidade próxima, mais próxima do que supomos, mas só será de "qualidade" para alguns, para um nicho, certamente, e daí não passará.
Enquanto isto, o que cai em desuso é a proeza de ser professor.
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NOTAS: [1] “O profissional docente desaparece nesta sociedade onde ricas oportunidades de aprendizagem estão disponíveis a qualquer hora e em qualquer lugar e os indivíduos tornam-se ‘prosumers’ (consumidores profissionais) da sua própria aprendizagem” (OCDE, 2020; OCDE, 2022).
[2] “Os professores e educadores devem tornar-se mentores das crianças que ensinam” (UNESCO, Global Education Coalition, s.d.).
“Os professores, como mestres organizadores de encontros educacionais”; “mestres organizadores de ambientes, relações, espaços e tempos educacionais” (...) “serão naturalmente protagonistas centrais na construção de processos de diálogo e inovação, aproximando e convocando outras pessoas e grupos” (UNESCO, Reimagining Our Futures Together, 2021, pp. 90, 92, 152).
[3] “Para que os sistemas de ensino se transformem no período pós-pandemia, são necessários investimentos significativos no fortalecimento da profissão docente”; “a International Task Force on Teachers for Education 2030 apela urgentemente aos governos nacionais, à comunidade internacional e aos financiadores da educação – públicos e privados – que invistam” (TTF, 2021).
[4] “Oferecemos o seu curso através de uma plataforma online onde pode fazer login a qualquer momento.” / “Uma solução acelerada” (Teacher Ready, University of West Florida).
“Projetado para ser rápido, flexível e acessível, o programa de certificação de professores da American Board é totalmente online e individualizado” (American Board for Certification of Teacher Excellence).
[5] “Uma nova forma de aprendizagem, para o hoje e amanhã.”/ (...) “rompemos definitivamente com as práticas do passado para oferecer uma educação conectada com as necessidades e desafios do século XXI.” / “Aprenderá de todos e com todos, pois todos temos algo a aprender e a ensinar. Aqui, não vemos o tutor como quem mais sabe, mas sim como quem orienta e guia o jovem para descobrir e assim crescer.” (Open Learning School).
“Da mesma forma como não nos referimos aos nossos alunos, como alunos, também não nos referimos aos nossos professores, como professores.” / “Os coaches de aprendizagem são os mentores que orientam e apoiam os alunos no seu processo de aprendizagem.”/ “Eles inspiram, apoiam o processo de aprendizagem autodirigido” (Brave Generation Academy).
2 comentários:
Sendo públicas, por um lado, e obrigatórias, por outro, as escolas básicas e secundárias portuguesas não são, e nem para lá caminham, oásis de felicidade na Terra para a maioria dos seus frequentadores. Porém, a sociedade entende, ou entendia, que as escolas existem porque são necessárias. É verdade que sem escolas não há desenvolvimento cultural, social e económico dos indivíduos, mas se as escolas forem apenas antros de desordem, violência e droga, deixam de servir para ensinar e aprender, as razões da sua criação e existência.
O Ministério da Educação, aparentemente, deixou cair o tema da indisciplina nas escolas, porque, provavelmente, na sua saga em prol das aprendizagens essenciais fáceis, valoriza relações “disruptivas” entre os diferentes elementos da comunidade escolar, em contexto de sala de aula, e desdenha as boas maneiras associadas à educação tradicional burguesa europeia. Porém, a indisciplina e violência na escola, que impossibilita o ensino e a aprendizagem, ainda é o principal fator de desilusão dos professores com a sua profissão, a caminho da proletarização.
Caro Leitor, a indisciplina nas escolas, substituída pelo chavão da inclusão, é, hoje em dia, quase um tabu tão grande quanto o insucesso. Quando existe, é camuflada. Os professores foram perdendo a sua liberdade também a este nível, sob pena de serem acusados de inflexíveis ou autoritários (sobretudo pelos pais dos alunos) ou, ainda, de não serem capazes de desempenhar as suas funções e "permitirem" determinados comportamentos. Instituiu-se a "espiral do silêncio", na qual os grandes lesados são, em última instância, os próprios alunos, destituindo-se o adulto do seu dever de educar.
Savater apresenta o cerne da questão: "quando a família socializava, a escola podia ocupar-se de ensinar. Hoje, quando a família deixa de cumprir plenamente o seu papel socializador, a escola não só não pode efectuar a sua tarefa específica nos mesmos termos em que o fazia no passado, mas começa a ser objecto de novas exigências para as quais não está preparada" (2010, p. 66). Estou de acordo quando diz que será esta a principal causa do desgaste, desânimo e vontade de abandono dos professores, impossibilitados de desempenhar o papel para que se formaram.
Cumprimentos, Cátia Delgado
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